quinta-feira, 14 de novembro de 2024

 

Eleições americanas: traições doem mais do que mentiras

Quando se anunciou que os Estados Unidos teriam como candidata à presidência uma mulher negra, o teólogo Ronilso Pacheco alertou: “É um erro essa ideia de uma identificação automática com a Kamala Harris pela comunidade negra. Ela sempre teve muita dificuldade de diálogo com a comunidade negra, por causa do histórico dela como procuradora”.

E explicou: “De maneira geral, para a comunidade negra, onde o encarceramento é em massa, há violência policial, e todos esses temas são muito caros, ela tem um histórico controverso que é um pouco difícil de ser absorvido”.

As urnas parecem dar razão a Ronilso no que se refere ao eleitorado negro. Kamala Harris perdeu 11 pontos percentuais na preferência entre homens negros e 5 pontos percentuais entre as mulheres negras em relação a candidata democrata em 2016, Hillary Clinton, e um pouco menos em relação a Joe Biden. 

Sim, os democratas continuam tendo a preferência do eleitorado negro: Kamala teve 84 pontos de vantagem entre as mulheres e 56 pontos entre os homens negros. Mas a perda de pontos onde ela poderia ter crescido contribuiu para sua derrota (os afro-americanos representam 11% do eleitorado), principalmente entre os jovens. 

Nas eleições de 2020, por exemplo, a vitória nas eleições da Geórgia impulsionada pelo voto negro foi crucial para Joe Biden - e Kamala Harris foi derrotada neste ano. Harris perdeu ainda mais popularidade entre os latinos: enquanto Biden obteve 33 pontos a mais do que Trump, Harris conseguiu apenas 6 pontos de vantagem nesse eleitorado. 

Acho apressado, porém, o argumento, difundido na imprensa americana e papagueado por aqui, de que esse resultado apontaria para uma redução do peso da questão racial para os eleitores negros e latinos (aliás, também não concordo com análises que colocam no mesmo saco grupos étnicos com histórico e questões bem diferentes).

Recorrendo novamente a Ronilso Pacheco, a questão racial é primordial nas eleições americanas, e parte do poder de atração de Donald Trump vem de seu identitarismo racista, branco, masculino e cristão, abraçado por seus seguidores - majoritariamente brancos, é bom frisar. 

 Se ele é o “maioral entre o white trash”, como lembra Ronilso, isso não se deve apenas à economia ou competição por empregos, mas porque os brancos querem “ter seu país de volta”, como diz, o que já foi fartamente documentado pela imprensa americana.
Pacheco também cita pesquisas que apontam para o crescimento do ressentimento racial pós-Obama, que teria sido “mais determinante para a escolha de Donald Trump para ganhar a nomeação do Partido Republicano para as eleições de 2016” do que em 2012 e 2008.

Também não me convence o argumento de gênero, de que os homens negros a teriam rejeitado por ser mulher, já que o machismo atravessa todo o eleitorado desde sempre. O apoio dos homens brancos a Trump é bem maior.

Tendo acreditar que o fato de Harris não ter conseguido convencer os homens negros, principalmente os jovens, nasce de sua postura na promotoria, como apontou Ronilso, e não foi revertida durante a campanha eleitoral pela candidata, que não apenas não destacou sua identidade étnica com receio de afastar eleitores brancos como enfatizou sua atitude linha-dura na promotoria para se contrapor às condenações de Trump. 
 
Em um país com a maior população carcerária do mundo - em torno de 2 milhões - em que os negros representam mais de 60% dos presos e a possibilidade de encarceramento entre jovens negros é quatro vezes maior do que entre brancos, o gabinete de Harris aumentou o número de condenações e ela própria se manifestou contra a redução de prisões e rejeitou iniciativas que poderiam reduzi-las como a descriminalização da prostituição e da maconha.

Também deu forte apoio à polícia, apesar das altas taxas de violência policial, sobretudo contra os negros, e se recusou a reexaminar prisões injustas apontadas pelo Innocence Project, mesmo em casos em que a alegação de inocência estava apoiada em provas e testemunhos. Ainda que depois tenha revisto algumas dessas posições, ela não se colocou de maneira clara a respeito desses temas na campanha eleitoral deste ano.

O mesmo aconteceu em relação a outros assuntos igualmente explosivos em que a candidata recuou a ponto de quase não se diferenciar de Donald Trump, como a emergência climática. Defendeu a exploração de petróleo e voltou atrás na proibição ao fracking (a exploração subterrânea de gás) e simplesmente não deu a ênfase necessária ao clima como discutimos no penúltimo episódio do podcast Bom Dia, Fim do Mundo

Por fim, mas não menos importante, Kamala foi omissa em relação ao genocídio dos palestinos na Faixa de Gaza, sustentando o enorme apoio militar de Biden a Israel, apesar de lamentos retóricos contra a morte de milhares de civis perpetrada por Israel com a participação de armas e tropas americanas. Sem falar na participação de seu marido, Doug Emhoff em grupos pró-israelenses, como comentei na coluna da semana passada. 

Essa postura também pode ter afastado o eleitorado jovem (basta lembrar dos protestos maciços nas universidades reprimidos pelo governo do qual era vice-presidente) e os árabes-americanos, que sempre votaram nos democratas. Na cidade de Dearborn com 100 mil habitantes majoritariamente árabes, por exemplo, o sentimento de traição em relação aos democratas foi bem documentado pelo especial da Globo, o que contribuiu para a derrota de Harris em mais um estado-chave para as eleições, o Michigan. 

De maneira similar ao que vem acontecendo com candidatos progressistas em todo mundo, inclusive no Brasil, a tentativa de camuflar bandeiras com potencial de afastar parte dos eleitores (e a mídia) resultou em uma campanha morna e pouco sincera que contrasta com os aguerridos seguidores do assumidamente racista, machista e autoritário Trump, empoderados pelas redes sociais. 

Quem luta por ideais precisa mobilizar as pessoas para lutar por eles ou de nada vale ganhar (ou perder) as eleições. Se não acreditam nas mentiras do republicano, para parte do eleitorado historicamente prejudicado pelo status quo pode ser ainda mais difícil superar a traição dos progressistas à necessidade de mudança. E isso também vale para nós. 


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org 

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