quarta-feira, 26 de abril de 2023

 

O teto, o arcabouço e o sapo

Manter EC 95 seria a morte súbita do governo. Porém, ao impor uma dieta ao Estado, proposta de Haddad capitula à mesma lógica de “austeridade” em um momento político decisivo. Sem perceber, Lula pode ser cozinhado em fogo brando…

A proposta de Novo Arcabouço Fiscal (NAF) de Fernando Haddad tem sido o centro dos debates. Posto um falso problema, “a dívida pública”, debate-se a falsa solução.

A esquerda perdeu o debate de fundo sobre o que é deficit publico e dívida pública de um Estado com moeda soberana. A versão dos neoliberais se tornou tão hegemônica que contagia amplos setores da esquerda. Uns que buscam saídas para o falso problema dentro do receituário liberal, outros com retórica à esquerda, sonham com a reedição de um Plano Collor com nova suspensão do pagamento da dívida.

Os liberais, no entanto, sabem exatamente o que querem. Tem completa noção que a dívida não é problema, mas buscam iludir os incautos para obter vantagens. Usam o espantalho da “necessidade de controlar os gastos públicos”, não porque achem necessário reduzir a dívida pública, mas porque lhes é funcional um Estado com baixa capacidade de investimento.

Um governo popular com liberdade de definir seu nível de gastos buscará nivelar estes gastos num patamar capaz de se aproximar do pleno emprego da força de trabalho. Nesta situação, o Trabalho melhora muito seu poder de barganha em relação ao Capital, conseguindo ganhos salariais acima do crescimento da produtividade e consequentemente avançando sobre a parcela da renda doCcapital.

Um Estado com capacidade de gastos poderá avançar na universalização do atendimento de saúde com qualidade, reduzindo o espaço da saúde privada e dos planos de saúde, portanto limitando um espaço para a reprodução ampliada do Capital.

Um Estado com capacidade de gastos poderá universalizar a educação pública em todos os níveis, reduzindo o espaço da educação privada.

Um Estado com capacidade de gastos poderá assumir os investimentos necessários em infraestrutura, eliminando o espaço para as Parcerias Público Privadas (PPP).

A ofensiva buscando cercear a capacidade de gastos do Estado foi pesada. Ganharam a opinião pública com a generalização da “economia da dona de casa”, colonizaram parte da esquerda, impuseram uma autolimitação à União, sempre com nomes e adjetivos pomposos: Lei de Responsabilidade Fiscal, austeridade, responsabilidade, dever de casa e, por fim, aplicaram o garrote com a Emenda Constitucional 95 do Teto de Gastos.

Face à óbvia falência do Teto, só sustentada até aqui pelo desmonte da gestão pública e pelo brutal arrocho salarial ao funcionalismo, tornou-se necessária a sua revisão.

A disputa que se abre agora definirá os rumos políticos dos próximos anos. A proposta de Fernando Haddad é péssima. Ao estabelecer que o gasto da União só poderá crescer até 70% do crescimento da arrecadação, mesmo assim subordinado a um teto de 2,5%, Haddad constrói uma dieta de emagrecimento da União para os próximos anos. Ano a ano, a participação do setor público no PIB diminuirá.

Pior ainda, com esta velocidade limitada a 70% do crescimento do PIB, ficam inviabilizados os pisos constitucionais da Educação e da Saúde que estão previstos aumentar na proporção de 100% da arrecadação. Haddad e o Secretário do Tesouro já avançaram sinalizaram que pretendem mudar (reduzir) estes parâmetros.

O salário mínimo, cujo compromisso de campanha era que crescesse no tamanho da variação do PIB dos 2 anos anteriores, também não poderá crescer desta forma porque ele indexa a maior parte das aposentadorias e pensões, sujeitas ao Teto de 70% .

Expectativas modestas, que o governo Lula pudesse repetir a expansão da Rede Federal de Ensino como ocorreu nos governos anteriores do PT, não poderão se realizar.

Investimentos públicos em infraestrutura terão que ser feitos via PPP.

Se vier uma crise mundial como a de 2008 , que Lula enfrentou expandindo o gasto da União em 9%, melhor será rezar para Deus, porque a União só poderá aumentar seu gasto em algo entre 0,6 % a 2,5%

Como o NAF precisa ser aprovado para que o Teto de Gastos (a Emenda Constitucional 95 da morte súbita) seja revogado e a matéria seja desconstitucionalizada, passando a ser regulada por lei complementar, e não mais com quórum qualificado de 60%, o caminho é a esquerda aprovar, e travar o debate, a mobilização e a luta parlamentar em torno de emendas.

Se é fato que estamos num período defensivo, e o simples fato de precisarmos ter um Arcabouço Fiscal já o demonstra, é fato também que esta proposta de Haddad é desastrosa.

Se o Teto de Gastos vigorando hoje, seria a morte súbita do governo Lula, o NAF é uma panela de água levada ao fogo com um sapo dentro. O aquecimento gradual faria com que o sapo não percebesse que estava sendo assado vivo.

O sapo é o governo Lula. Precisamos salvá-lo.

 

Lula 3: É tempo de corrigir a trajetória

Governo coleciona feitos importantes. Mas deriva liberal, comandada por Haddad, impede-o de cumprir compromissos de campanha – daí a perda de popularidade e de iniciativa. E em tempos turbulentos, os erros precisam ser revistos sem demora

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Título original:
Tentação liberal e recuo precoce: dilemas de Lula 3

1. COMO É POSSÍVEL que um governo eleito pela mais ampla frente política da História da República, que tomou posse em meio a forte esperança de mudança, que teve a capacidade de derrotar e isolar a extrema direita nos atos golpistas de 8 de janeiro e na denúncia do genocídio Yanomami e que é chefiado por um dos poucos líderes de dimensões planetárias, como é possível que esse governo tenha entrado numa situação defensiva a poucos dias de completar quatro meses de mandato? A que se deve o recuo precoce? O quadro é reversível, diante da ferocidade da extrema-direita e da antipatia crescente da mídia corporativa?

2. O GOVERNO LULA III viveu em seu início uma tensão interna sobre rumos a seguir. De um lado, o ministério da Fazenda apresenta um projeto de ajuste fiscal ao gosto do mercado, que funcionará como trava ao crescimento, apesar de seus defensores alegarem nele características contracíclicas. De outro, há promessas de desenvolvimento, industrialização, emprego e renda feitas pelo presidente desde a campanha. Os dois caminhos são excludentes e fatalmente um dos discursos acabaria por se impor. É o que está ocorrendo. Primeiro, vamos aos sintomas.

3. UM DESGASTE PRECOCE apareceu na pesquisa de opinião Genial Qaest, divulgada no último 15 de abril. Como aponta Felipe Nunes, “a avaliação positiva do Governo Lula recuou 4 pontos percentuais desde fevereiro, de 40% para 36%. A avaliação negativa avançou de 20% para 29%”. A aprovação entre os jovens também teve queda significativa. É algo preocupante para uma gestão que ainda está naquela fase tradicional do namoro com a opinião pública, própria dos primeiros 100 dias. É o período no qual esperanças e expectativas das urnas ainda não se dissolveram em decepções naturais, em qualquer governo. Embora o patamar de ótimo e bom seja alto, o que se deve mirar é o quadro tendencial da sondagem e a intensidade da queda dos indicadores.

4. A MARCA DOS 100 DIAS não é aleatória. Foi estabelecida por Franklin Roosevelt ao tomar posse, em março de 1933, ainda sob os efeitos da crise de 1929. O presidente percebeu, numa situação de descrédito e desesperança, que deveria aproveitar o início do mandato para dizer a que viera. Apresentou de uma só vez 87 projetos de investimentos estatais, que iam de infraestrutura a serviços variados, passando por frentes de trabalho e programas de alimentação para os pobres. Rapidamente o governo toma a agenda nacional em suas mãos e desata um programa desenvolvimentista capitaneado pelo único ator capaz de gastar a fundo perdido em tempos de crise: o Estado. Perder o bônus dos 100 dias – ou do início do governo – é erro grave. O governo Lula parece ter perdido, premido pela agenda neoliberal.

5. NÃO VALE A PENA acusar a frente eleitoral para explicar a queda. O governo foi eleito para derrotar o fascismo. Fez isso nas urnas e agora está diante de verdadeira guerra. Não adianta dizer que o outro lado usa táticas desleais. Sabia-se sobejamente que enfrentamos um inimigo articulado, agressivo e que não mede expedientes para provocar novo golpe. Foi essa gente que derrubou Dilma, prendeu Lula e apoiou a maior regressão política e social desde o fim da ditadura. Por isso, o Lula III não pode ser um governo de tempos normais. A conjuntura pede senso de urgência e disposição de enfrentamento.

6. LULA TEVE UMA VITÓRIA ÉPICA em outubro. Na contramão do ciclo ultraconservador que toma conta da Europa, aqui a centroesquerda venceu a duras penas uma gigantesca máquina de dinheiro, mentiras e chantagens, embalada na sanha da barbárie e da antipolítica. A diferença de 1,8 % não reduz o feito; ao contrário. O resultado eleitoral colocou como tarefa primordial retirar o bolsonarismo e as políticas ultraliberais do horizonte político.

7. O PARTIDO DOS TRABALHADORES e a frente que nucleou não apresentaram um projeto claro para o país para além da reimplantação de programas sociais, defesa da democracia, crescimento, reindustrialização e o mote da volta da picanha e da cerveja na mesa dos brasileiros e brasileiras. São pontos muito importantes, mas genéricos e fragmentados. Não formam um projeto que mostre como cada tópico se articula com formulações abrangentes para reativar a economia.

8. LOGO APÓS A VITÓRIA, Lula começou a apresentar seu ministério. Para além da ideia de que este seria o governo de uma ampla coalizão, o presidente indicou para posto- chave gente de sua estrita confiança e comunhão política. Assim, em 9 de novembro, ele colocou em cena seus primeiros escolhidos: Fernando Haddad na Fazenda, Flávio Dino na Justiça, Rui Costa na Casa Civil, José Múcio na Defesa e Mauro Vieira no Itamaraty. Nenhuma das indicações resultou de pressões de partidos ou de quem quer que seja.

9. SEM DEIXAR CLARAS AS IDÉIAS para a economia, Lula deu carta branca a Haddad para elaborar seus planos. A história é conhecida. Em quase quatro meses, o ministro da Fazenda não deu sequer uma entrevista para falar de reindustrialização, emprego, crescimento ou desenvolvimento. Mas apresentou um plano, o novo arcabouço fiscal (NAF), que é a antítese de tudo o que foi anteriormente brandido como metas do governo.

10. CUMPRINDO O ROTEIRO DE QUALQUER titular de governos conservadores, Haddad fez périplo por entidades e instituições do mercado financeiro, deu entrevistas aos grandes meios de comunicação e apressou-se a “acalmar o mercado”. Em conversa na GloboNews, em 2 de abril, o ministro afirmou que “os investimentos privados, em um nível mais alto do que o ano passado, serão o caminho para a economia voltar a crescer”. A frase não encontra amparo na literatura econômica e nem na História. Em qualquer tempo e lugar, o motor do desenvolvimento é o investimento estatal, que cria demanda e incentiva o capital privado a vir atrás gerando novos negócios. O mantra neoliberal não poderia ser explicitado de forma mais clara.

11. A PRINCIPAL BATALHA política que o governo patrocinou desde o início, com competência e estridência, concentrou-se na queda da taxa básica de juros do Banco Central, a maior do mundo. E nesse enfrentamento com algo muito maior que um esbirro bolsonarista colocado à testa da instituição, Lula investiu pessoalmente contra a pedra de toque da alta finança, do mercado, da Faria Lima e dos investidores internacionais.

12. O PRESIDENTE CONSEGUIU FORMAR uma coalizão contra o garrote que estrangula nossa economia. Durante mais de um mês, a partir do início de fevereiro, o ex-metalúrgico ocupou todos os espaços possíveis numa corajosa cruzada. Mostrou prejuízos que sofrem a indústria, o comércio e o emprego. Coesionou sua base social, conseguiu adesão de setores e lideranças organizadas do movimento popular e até de frações da burguesia. Dois dias antes da segunda reunião do Copom deste ano, em 22 de março, alguns economistas de peso internacional – com destaque para Joseph Stiglitz – engrossaram o coro de Lula. Mas a tática não deu certo.

13. É POSSÍVEL DEFINIR A DATA em que a administração federal perdeu a iniciativa política e em que suas tensões internas a desarmaram – por enquanto – para o enfrentamento em curso. O dia é o já mencionado 22 de março, quando o BC anunciou a manutenção da Selic em 13,75% ao ano. O Comitê de Política Monetária (Copom) foi além e decidiu arrogantemente pontificar como a administração federal deveria se comportar em outras áreas da economia. Foi uma espécie de 8 de janeiro dos abutres. Ali o vandalismo mercantil percebeu que a investida governamental contra a alta dos juros e a atuação da autoridade monetária não era para valer, mas apenas jogo para a plateia. Vamos recapitular.

14. A INVESTIDA CONTRA OS JUROS não foi uníssona e sequer ficou claro o objetivo pretendido. O que se almejava, a queda da taxa, a demissão do presidente do BC ou o fim da independência do Banco Central? A algaravia entre membros da administração era confusa nesse aspecto. Contudo, algo mais grave ocorreu.

15. NUM JOGO POSSIVELMENTE COMBINADO com o presidente, o titular da Fazenda, Fernando Haddad, tentou se aproximar de Roberto Campos Neto, presidente do BC, para debater as regras fiscais que o ministério estava elaborando, como ele mesmo revelou em entrevistas. Isso, enquanto o verbo presidencial corria solto. Haddad parece ter pretendido levar o chefe da política monetária na conversa, prometendo a ele um forte aperto fiscal por parte do Executivo, que poderia resultar na redução da selic, embora a teoria econômica seja rarefeita em estabelecer nexos entre coisa e outra.

16. UMA DAS ARMAS EFETIVAS nas mãos do governo era a possibilidade de elevar as metas de inflação na reunião do Conselho Monetário Nacional, em 17 de fevereiro. Como se sabe, na lógica neoliberal, o aumento das metas justificaria uma política monetária menos agressiva, pois o BC parece considerar toda o surto inflacionário recente resultado de uma pressão de demanda. Para surpresa geral, o ministro da Fazenda fez questão de declarar previamente que essa não seria a pauta do CMN, sem dar maiores explicações sobre a decisão.

17. O ENCONTRO DUROU APENAS 28 minutos e dali não saiu nada de significativo. O governo tem dois  votos no CMN e o BC um. A mudança seria líquida e certa, mas a linha oficial foi recuar. Ao mesmo tempo, o titular da Fazenda garantiu que duas vagas existentes na diretoria do BC seriam preenchidas por quadros “técnicos”. Em bom português, por nomes do mercado, que não seriam contraponto às pressões da alta finança.

18. HADDAD DEIXOU PATENTE ali que o verbo inflamado de Lula era palavra ao vento. A Faria Lima entendeu e trucou pesado, apoiando a decisão de se manter os juros na estratosfera. O governo sentiu a trombada e perdeu o discurso, no 22 de março. Como afirmou o economista Paulo Nogueira Batista Jr., o saldo daquela semana foi: Lula ladra, mas não morde; Campos Neto ladra e morde e Haddad não ladra e nem morde.

19. ALI NÃO SE SACRAMENTOU apenas uma derrota pontual, numa batalha na qual o governo em tese teria se empenhado ao máximo. Roberto Campos Neto  humilhou e desmascarou uma tática usual do lulismo: a de apresentar dois discursos em situações de tensão. O governo acusou o golpe e perdeu os argumentos. Lula terceirizou responsabilidades e declarou que o responsável por resolver a parada seria o Senado, “que colocou Roberto Campos Neto lá”. O ministro da Fazenda, por sua vez, saiu-se com um prosaico “é preocupante…” Reclamações posteriores sobre a ação do BC, a partir desse momento, não passaram de reclamações.

20. A AMBIGUIDADE OFICIAL SE repetiu na viagem presidencial a Pequim. Lula afrontou os Estados Unidos com falas a sobre uma eventual rejeição ao dólar nas transações internacionais, exaltou possíveis investimentos chineses no Brasil e atacou o FMI. Mas, na mesma viagem, o governo decidiu não aderir à Nova Rota da Seda, integrada por 147 países, que amarraria o que foi dito através dos microfones ao mundo real. Por que?

21. DIAS DEPOIS, DIANTE DE CRÍTICAS de Washington, de dirigentes da União Europeia e da mídia brasileira a Lula, por ter denunciado corretamente que tanto Kiev quanto Moscou são responsáveis pela guerra na Ucrânia, tanto o presidente quanto a diplomacia brasileira deram vários passos atrás. Em Portugal, Lula apressou-se a externar que nunca falou em responsabilidades equivalentes e orientou Celso Amorim – o chanceler de facto – a visitar Kiev nas próximas semanas, repetindo o périplo realizado por este último à capital russa, em 29 de março.

22. O DUPLO DISCURSO funcionou bem em tempos de vacas mais gordas, entre 2006-10, durante o boom das commodities. Essa situação possibilitou um breve jogo de ganha-ganha com o setor financeiro e com o topo da pirâmide social, no qual os de baixo melhoraram de vida sem que os de cima perdessem privilégios. O jogo agora está com validade vencida.

23. O GOLPE DE 2016, AS CONTRARREFORMAS Trabalhista, da Previdência, do Ensino Médio e a independência do BC formam o Tratado de Versalhes que os ricos brasileiros impuseram à sociedade. O tratado original, firmado em 1919 ao fim da I Guerra Mundial, como se sabe, selou a paz punitiva dos vencedores (Grã-Bretanha e França) sobre o vencido (Alemanha), comprometendo seu desenvolvimento e bem estar por mais de uma década. Os privilegiados estabeleceram a regra do “eu ganho-você perde”, sem conversa mole. A historinha de good cop e bad cop não funciona em períodos nos quais a turma do dinheiro não quer acordo algum.

24. NESSE AMBIENTE PESADO, a orientação da equipe econômica acabou se tornando dominante, criando um cenário de instabilidade, perda de iniciativa política e desgaste para o governo. Como se sabe, o arcabouço fiscal impõe constrangimentos ao investimento público, limitando seu crescimento ao percentual a 70% do aumento da receita corrente líquida dos últimos 12 meses. Em caso de descumprimento das metas fiscais, a proporção cairá para 50%. Uma segunda regra estipula que o gasto público pode crescer numa banda de 0,6% a 2,5% do ao ano. Os bancos públicos estão incluídos na mesma restrição e um membro da equipe de Haddad já especula que nova PEC deverá acabar com os pisos vinculantes aos investimentos de Saúde e Educação, parâmetros estabelecidos pela Constituição de 1988. Por fim, o objetivo de se zerar o déficit primário da União em 2024 só será obtido com aperto maior nas contas ou um improvável aumento de arrecadação. Uma trombada no desenvolvimento, na indústria, no emprego e na demanda. Vale perguntar: por que foram definidos limites tão apertados?

25. NÃO HÁ EXPLICAÇÃO PLAUSÍVEL, a não ser a vontade da equipe econômica. A Emenda Constitucional 32/2022, resultante da PEC da Transição apresentada ao final do ano, estabelecia apenas o seguinte: “Art.6º O Presidente da República deverá encaminhar ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico”.

26. OU SEJA, HAVIA GENERICAMENTE a obrigação do governo produzir uma nova regra fiscal que substituiria o teto de gastos. Nada indicava sua intensidade, grau de restrição ao investimento ou dinâmica de funcionamento. Poderia ser algo muito mais brando e factível a uma política expansionista do que o texto apresentado. Como o projeto de lei complementar do NAF não foi debatido nas instâncias do PT e nem pelos economistas do partido, fica evidente que a proposta surgiu no interior da administração, em articulações com o chamado mercado, como Fernando Haddad já deixou transparecer.

27. ANTES MESMO da nova regra ser apresentada, a Fazenda entrou em campo para impedir qualquer soluço expansivo. Assim, foram mitigadas ou adiadas promessas de campanha como aumento real do salário mínimo, isenção do imposto de renda para ganhos mensais de até R$ 5 mil e o projeto de renegociação de dívidas para pessoas de baixa renda. Além disso, o governo cortou parte do subsídio à gasolina e derivados de petróleo, antes de ser cumprida outra promessa, a de acabar com a paridade de preços internacionais (PPI) da Petrobrás. Os valores nos postos se elevaram de imediato. E, por fim, tivemos os desencontros sobre a taxação de compras online acima de US$ 50 feitas no exterior. Todas essas medidas atingem em cheio o bolso dos pobres.

28. É BEM VERDADE QUE A NOVA GESTÃO promoveu dezenas de ações de impacto e alterações significativas ocorreram no país nesses quase quatro meses. Além da já citada denúncia do genocídio Yanomami, o governo promoveu a volta de programas sociais como Bolsa-Família e Minha Casa Minha Vida, concedeu reajustes para funcionários públicos, adotou medidas de combate a todo tipo de preconceito, expandiu campanhas de vacinação, entre muitas outras. O governo também tomou a iniciativa política em viagens internacionais (Argentina/Uruguai Estados Unidos e China), amarrou inúmeros acordos comerciais e de investimentos, além de ter desanuviado o clima fascistizante que tomara conta dos país nos últimos quatro anos.

29. A AÇÃO CONTRA A ARMAÇÃO golpista de 8 de janeiro – apesar de incompleta – foi rápida ao evitar a armadilha de decretar uma GLO (Garantia de Lei e Ordem). Corajosamente, o governo interveio na Secretaria de Segurança do DF e, uma semana depois, destituiu o comandante do Exército, envolvido até a tampa na sedição. O STF também se mostrou célere em intervir no governo do DF e abrir – juntamente com a PF – processos e decretar prisões dos golpistas. Houve vacilações sérias, que geram o atual imbróglio no GSI, gestos que merecem melhor explicação e análise.

30. É IMPORTANTE TER EM MENTE um vetor fundante para a nova gestão: Lula foi eleito com imensa expectativa popular de mudança de vida por parte de milhões de brasileiros. Alguns ministros chegaram a declarar que a população deveria ter calma, pois estamos apenas no começo e temos ainda quatro anos pela frente. Trata-se de argumento raso: mais do que nunca há uma dissonância entre o tempo político e o tempo cronológico. Não se pode pedir paciência a quem está na fila do osso, na fome e no desespero. Há projetos com fase de maturação longa. Mas salário mínimo, renegociação de dívidas e manutenção de subsídios em setores sensíveis podem ser implantados imediatamente.

31. O ATRASO EM DAR MOSTRAS CLARAS da mudança na economia se traduz na já mencionada perda da capacidade de pautar a conjuntura, ambiguidade decisória, adesão a diretrizes antidesenvolvimentistas e investidas contra a economia popular. A isso se adiciona a ausência total de uma política de comunicação, má articulação política, atritos com bases eleitorais (nas áreas de educação e movimentos populares), política externa reativa e um sentido de burocratização e administrativismo que se verifica em vários ministérios.

32. A ORIENTAÇÃO NEOLIBERAL na economia é banhada por preocupações sociais, formando um híbrido de difícil definição, que alguns classificam como social-liberalismo e outros – como a socióloga Nancy Fraser – de neoliberalismo progressista. Essa diretriz que visa aplacar a voracidade do mercado financeiro flerta com o perigo da perda de apoio popular.

33. UM INTERESSANTE LIVRO chamado “A ordem do capital: como os economistas inventaram as políticas de austeridade e abriram caminho para o fascismo”, foi lançado nos Estados Unidos no final do ano. Sua autora é a economista ítalo-americana Clara Mattei. Através de ampla pesquisa histórica ela demonstra que a austeridade não é uma decisão episódica na gestão pública, mas um modo de dirigir a economia capitalista, com perdas permanentes para os de baixo e constante concentração de renda. Foram políticas assim que geraram enorme descontentamento e empobrecimento nos anos 1920-30 e abriram caminho para o abismo da extrema-direita.

34. NUMA SITUAÇÃO DE CONFRONTO constante, minoria congressual, cerco midiático e violência de todo tipo por parte da extrema-direita, a ambiguidade lulista combinada com a queda da qualidade de vida impulsionada pelo arcabouço fiscal pode resultar em enorme frustração, erosão das bases sociais do governo e consequências trágicas para o país.

35. A SITUAÇÃO É REVERSÍVEL? Sim, mas demandará mudanças incisivas na orientação da equipe econômica e de comunicação e sentido de urgência entre os ministérios. O governo não pode mais criar atritos com movimentos organizados na área de Educação – vide caso da reforma do ensino médio – e do MST, em especial. E precisará cumprir minimamente promessas de campanha, tendo em mente o velhíssimo dito popular, “o combinado não é caro”.

36. UMA MUDANÇA desse tipo só virá com aquilo que Lula recomendou cerca de 600 dirigentes sindicais que estiveram no palácio do Planalto em 18 de janeiro, para definir regras de aumento do salário mínimo e alterações na tabela do imposto de renda. “Exatamente porque o Lula é presidente que vocês têm que fazer pressão, estou aqui para construirmos juntos. Eu sou um sindicalista que virou presidente da República”. Pressão vinda de baixo é o outro nome de mobilização social. Mencionado aqui, por último, esse é o ingrediente essencial para impulsionar qualquer governo de mudança.


terça-feira, 25 de abril de 2023

BOLSONARISTAS PLANEJARAM NAS REDES UM MOVIMENTO DE BOICOTE A PL DAS FAKE NEWS

 
REPORTAGEM
Bolsonaristas planejaram nas redes um movimento de boicote a PL das Fake News
IMAGEM ILUSTRATIVA - Pedro França/Agência Senado
É o que indica uma pesquisa exclusiva do NetLab, da UFRJ, sobre como a extrema direita domina o debate nas redes

24 de abril de 2023
16:11
Laura Scofield
Campanha foi “organizada, orquestrada e pensada” por bolsonaristas
Prestador de serviço de Daniel Silveira criou site contra PL
SOCIEDADE
TECNOLOGIA
bolsonarismo
direita
Fake news
política
redes sociais
Bolsonaristas e plataformas de redes sociais muitas vezes se vêem em lados opostos nos conflitos digitais. De um lado, a extrema direita diz que tem sido perseguida pela moderação das redes; de outro, grande parte das demandas feitas às plataformas pelas autoridades públicas e imprensa parte justamente do fato de que elas têm permitido fake news e incitação à violência — muitas vezes de autoria dos próprios bolsonaristas. Dessa vez, entretanto, os dois estão do mesmo lado, mesmo que por motivos e de formas diferentes: a união se consagra no boicote ao Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como PL das Fake News.

“A extrema direita de alguma forma está alinhada com as Big Techs por uma desregulamentação”, apontou Rose Marie Santini, doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutora pela Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha. Ela é uma das autoras do estudo que a Agência Pública obteve com exclusividade, realizado no Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab), da UFRJ, que buscou identificar como o PL das Fake News “tem sido alvo de desinformação nas diferentes plataformas”.

A pesquisa analisou publicações no Twitter, WhatsApp, Telegram, Facebook, Instagram, Youtube, TikTok e sites de desinformação entre 26 de março de 16 de abril deste ano. O estudo conclui que existem duas grandes narrativas falsas coordenadas pela extrema direita nas redes contra o projeto.


A primeira narrativa é que o “PL 2630 favorece os grandes grupos de mídia”. De acordo com o estudo, a extrema direita tem usado as redes para defender que o projeto “visa promover a manutenção do monopólio da grande imprensa como uma suposta retribuição de Lula ao apoio que esses veículos teriam lhe concedido”, o que puniria os produtores de conteúdo menores. Essa narrativa tem sido defendida desde o ano passado, de acordo com a pesquisadora.

 Já a segunda linha argumentativa é nova e diz que “Lula usa tragédias como pretexto para censura”. Os perfis analisados pelo NetLab dizem que o governo Lula estaria “usando os recentes atentados em escolas como justificativa para implantar o PL 2630 e utilizá-lo contra a oposição como forma de censura”.

Algumas publicações nas redes unem as duas narrativas, como uma da deputada Carla Zambelli (PL-SP), citada no estudo. O post, que chegou a mais de 16 mil visualizações no Telegram, critica o governo por supostamente usar os atentados para censurar seus opositores.

Reprodução
Publicação de Zambelli acusa presidente Lula de “censura contra seus inimigos políticos”
Na avaliação de Rose Marie Santini, entretanto, os argumentos e críticas feitos pela extrema direita nas redes são mentirosos e não fazem sentido.

“Não são críticas consistentes. As [críticas] que eles fazem, como ‘a rede social é o último refúgio da oposição’, ‘esse PL é um instrumento de dominação da esquerda’, ou ‘é uma forma de censura’ são completamente sem cabimento. A gente tem outras críticas, críticas técnicas, mas não essas. Críticas conceituais de uma PL e de uma regulamentação em si. Eles [bolsonaristas] não estão entrando de verdade na discussão, eles estão criticando conceitualmente a ideia de se regulamentar e não o que está se regulamentando”, explicou ela.

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O PL 2630 está em tramitação desde maio de 2020, quando foi apresentado pelo senador Alessandro Vieira (CIDADANIA-SE) e relatado por Ângelo Coronel (PSD-BA), então presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News. Depois de muita polêmica, discussão e emendas, o projeto que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet foi aprovado pelo Senado Federal em junho daquele ano e passou a tramitar na Câmara dos Deputados.

Em março de 2022, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) apresentou uma nova versão do texto, mas teve suas expectativas de aprovar o projeto antes das eleições presidenciais frustradas quando a Câmara rejeitou o regime de tramitação com urgência.

Agora, um novo requerimento de urgência será votado, ainda nesta semana. A urgência é usada para acelerar a votação de uma proposta: com ela, o projeto não precisa passar por comissões e pode ser levado diretamente ao plenário. A oposição bolsonarista e as plataformas advogam por uma comissão especial para debater mais profundamente o texto —  e atrasar a votação pela Câmara.

A mobilização nas diferentes redes
O estudo da NetLab desenvolve ainda quais são as principais narrativas defendidas em cada uma das redes sociais e apresenta exemplos de publicações “emblemáticas”.

Para Rose Marie Santini, o Twitter se destaca. “Com essa nova versão Elon Musk, o Twitter está privilegiando bastante esse tipo de narrativa e perfis da extrema direita”, explicou. O bolsonarismo domina a discussão sobre o PL na rede: 70% dos perfis fazem publicações contra a regulamentação das plataformas, dos quais 32% foram identificados com atividade inautêntica automatizada. Nos tuítes, George Soros e a Open Society Foundations são apontados como os principais articuladores da “censura da internet” no Brasil e no mundo.

Reprodução
Campo progressista está em verde e representa 30% dos perfis que falam sobre o PL 2630; extrema direita está em azul, com 70%. Pontos vermelhos têm indícios de atividade automatizada inautêntica.  Crédito: Reprodução/NetLab

Já o WhatsApp “é palco de correntes que alertam para os riscos que a democracia brasileira estaria correndo com a aprovação de um suposto controle da internet”, e no Telegram “notícias positivas do governo Lula são lidas como uma estratégia da esquerda para mascarar um plano de censura em curso”.

No YouTube e no TikTok, “influenciadores bolsonaristas afirmam que o PL 2630 seria uma estratégia para calar e perseguir a oposição a Lula”.

A pesquisa indica ainda que os influenciadores apostam na polarização entre “censura e liberdade” para defender que as plataformas não devem ser reguladas e nem ter responsabilidade sobre o conteúdo nelas publicado.

Para embasar seus argumentos, Santini aponta que são “fundamentais” as publicações de sites de desinformação, como o Jornal da Cidade Online e Revista Oeste, e veículos hiper partidários, como a Jovem Pan e a Gazeta do Povo. “Eles são a fonte paralela da extrema direita”, explica ela. “Não basta negar o que está sendo dito, você tem que colocar alguma coisa no lugar. Esses veículos têm esse papel fundamental de ir alinhando a narrativa e criando uma narrativa comum em todo esse campo da extrema direita ou de oposição do atual governo”, finaliza. O estudo aponta que veículos como esses são muito presentes no Facebook.

Entre os principais alvos das postagens estão o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que seria o “líder de um esquema de dominação esquerdista no Brasil”, além de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) como Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, e o ministro da Justiça, Flávio Dino.

PL da censura
A pesquisadora aponta que é possível afirmar que a campanha de boicote contra o PL das Fake News foi “organizada, orquestrada e pensada” pelo bolsonarismo. O boicote “abre espaço pra usos ilícitos, usos de criminosos e usos [das redes] para a manipulação de eleição e da opinião pública”, acrescenta ela.

“Parlamentares da extrema direita como Flávio Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli, Gustavo Gayer e Mário Frias e influenciadores como Leandro Ruschel, Elisa Brom e Kim Paim se destacam como principais porta-vozes da campanha contra o PL 2630 nas diferentes plataformas”, aponta o estudo. O Partido Novo e seus filiados também se destacam por terem proposto um Projeto de Decreto Legislativo para derrubar o projeto de lei.

Outra prova da coordenação bolsonarista apontada pela pesquisa seria o fato de que o site Boletim da Liberdade, que está articulando a campanha contra o projeto, foi criado por Gabriel Menegale Flumignan, que em 2019 recebeu R$ 30.000 do ex-deputado federal Daniel Silveira (PL-RJ) por “prestações de serviços de acompanhamento das redes sociais e do site do ex-deputado”.

O Boletim da Liberdade, “cujo link está sendo intensamente compartilhado nas redes sociais”, de acordo com o estudo, mantém ainda a campanha “PL da censura”. O site da campanha apresenta um placar dos deputados que supostamente seriam contra ou a favor do PL 2630 e incentiva as pessoas a cobrarem posicionamento dos indecisos.

“O site foi compartilhado por páginas bolsonaristas e filiados do Partido Novo, como Herman Guedes e o deputado federal Marcel Van Hattem, no Facebook, além de ter sido divulgado nos aplicativos de mensageria. Em 19 de abril, foi marcado um ‘tuitaço contra a censura’ no qual deputados, influenciadores e usuários comuns contrários ao PL levantaram as tags #CensuraNão e compartilharam o placar”, aponta a pesquisa do NetLab.

Há quatro semanas, o Boletim da Liberdade, que alcançou 10,4 mil visitas no mês de março, foi vendido a Paulo Ganime, ex-deputado federal pelo Partido Novo, e Sara Rodrigues, sua esposa. Os dois também participaram do tuitaço.

Reprodução
Placar do site Boletim da Liberdade, que está articulando campanha contra o PL das Fake News
“A gente sabe que são os mesmos atores, e realmente [são atores] da extrema direita, que estão tentando manipular e controlar esse debate. Eles têm uma lógica de funcionamento que a gente já conhece, e essa lógica está se repetindo, está seguindo o mesmo padrão”, explicou Rose Marie Santini à reportagem. 

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Laura Scofield
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segunda-feira, 24 de abril de 2023

 

Mais de 80% dos estudantes do país estudam em escolas públicas e são impactados pela reforma do Ensino Médio proposta ainda no governo Temer. Essas novas diretrizes são o alvo de inúmeras críticas por parte de pesquisadores e educadores de todo o país, que enxergam nelas um retrocesso com impacto considerável na qualidade de ensino público. No Pauta Pública 68, Andrea Dip e Clarissa Levy conversam com o professor e cientista político Daniel Cara, que se aprofunda no que essa reforma representa para o futuro do ensino no Brasil - e consequentemente do próprio país - e qual a urgência em sua revogação. 

quarta-feira, 19 de abril de 2023

 

Um novo arcabouço, não calabouço!

Por trás da proposta que Haddad prepara, há três séculos de debate filosófico e econômico. Ministro e sua equipe serão sensíveis aos novos ventos teóricos? Ou, de costas para o futuro, aprisionarão o país na masmorra de mitos do liberalismo?

Por Simone Deos

O ministério da Fazenda tem anunciado que está em fase final de elaboração um novo arcabouço fiscal: um conjunto de normas, regras e parâmetros desenhados com o objetivo de recuperar a credibilidade e, principalmente, a previsibilidade da política fiscal. O objetivo, segundo o Secretário de Política Econômica, é “que seja um arcabouço crível, previsível, que permita que os cidadãos brasileiros e investidores tenham um horizonte de investimentos no Brasil bem mais claro que têm hoje”. Em obediência ao disposto na Emenda Constitucional 126, o presidente da República deverá encaminhar ao Congresso Nacional, até o dia 31 de agosto de 2023, um projeto de lei complementar apresentando esse novo arcabouço. Mas os esforços são para que, muito antes disso, o Executivo torne pública a sua proposta, de forma a permitir um amplo debate na sociedade antes que ela seja votada.

A aprovação do novo arcabouço fiscal – não confundir, caro leitor e cara leitora, com um novo calabouço fiscal – será o último prego batido no caixão do Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95), que de fato cumpriu muito bem o seu papel: impedir o desenvolvimento econômico e destroçar os direitos sociais instituídos pela Constituição de 1988 e, em seu lugar, promover o retrocesso econômico, social e político do país. Tudo em nome da responsabilidade fiscal, expressão que amalgamou um princípio moral difícil de contestar – afinal, quem poderia ser contrário ao uso predominantemente responsável do dinheiro público? – com o princípio de que a política fiscal deve buscar o equilíbrio entre arrecadação e gastos. Mas o que é, efetivamente, responsabilidade fiscal?

Quando, no século XVIII, os primeiros filósofos economistas começaram a desenhar as bordas daquilo que veio a constituir um novo campo do conhecimento, a economia, eles iluminaram certos aspectos da nova sociedade em formação na Europa. Simultaneamente mantiveram, se não que totalmente ocultas, pelo menos sombreadas, as estruturas de poder mais profundas sobre as quais essa nova sociedade se assentava – como o Estado e a moeda – e sem as quais não teria sido possível nem a sua constituição, nem a sua problemática manutenção.

Na mitologia do liberalismo econômico – nascida nesse contexto para permitir a superação das instituições feudais e mercantilistas que dificultavam a emergência e o desenvolvimento do capitalismo, como observa Karl Polanyi – os mercados e sua generalização são fruto dos impulsos naturais dos seres humanos, os quais estabeleceriam suas relações sociais baseadas, fundamentalmente, no intercâmbio comercial. Nessa narrativa, Estado e moeda não desempenharam papel relevante na constituição das chamadas economias de mercado, e por sua tendência de crescer descontroladamente, o Estado gastador estaria sempre ameaçando o bom funcionamento de uma sociedade de “livres e iguais”. Daí não surpreende que na versão corrente e exacerbada dessa mitologia, o neoliberalismo, tenham sido remodelados e aperfeiçoados um conjunto de mecanismos para controlar o poder monetário estatal.

Já é bastante conhecido de todas e todos que a ideia de conduzir a política macroeconômica – inicialmente, a monetária – por regras, isolando-a do arbítrio do Estado, é produto do debate intelectual e político da segunda metade do século XX. Regras pré-anunciadas, segundo seus defensores, dariam mais segurança aos agentes, organizariam as expectativas de inflação e outras que houvesse, e por isso seriam mais eficazes. Como cereja do bolo, tais regras permitiriam proteger a atividade econômica dos ciclos políticos, próprios dos regimes democráticos.

No caso das regras para a condução da política monetária por parte dos bancos centrais, a proposição original foi que estes perseguissem uma meta de agregados monetários, pré-anunciada, para o controle da inflação. Tendo sido constatado, na prática, que os bancos centrais não têm a capacidade de controlar a quantidade de moeda, foi necessário reformular a teoria e a política. Nesse sentido, o regime de metas de inflação – que parte do pressuposto de que os bancos centrais têm capacidade de, indiretamente, via taxa de juros, afetar os preços correntes – passou não só a orientar, mas a dominar a atuação de grande parte dos bancos centrais ao redor do mundo, a partir da década de 1990. A ideia de que os bancos centrais devem ser autônomos, ou independentes, dos governos e da política, para melhor conduzir o regime de metas e alcançar a estabilidade de preços, que passou a ser o seu objetivo primordial, é um desdobramento desse processo.

Do lado fiscal, por sua vez, o princípio geral de uma política equilibrada, neutra, com despesas ajustando-se às receitas, foi sendo introduzido e aperfeiçoado por meio da institucionalização de metas quantitativas – de resultado orçamentário, de gastos, de endividamento – cada vez mais rígidas e muitas vezes sobrepostas. A justificativa teórica seriam os impactos positivos do orçamento equilibrado, e quiçá superavitário, sobre a inflação – via contração de demanda e/ou impacto sobre as expectativas futuras de inflação – e sobre a sustentabilidade e/ou as expectativas de sustentabilidade da dívida pública – para a qual haveria ou limites rígidos, ou limiares perigosos de serem testados, a partir dos quais os países quebrariam e uma catástrofe econômica e social seria líquida e certa. Paralelamente a estas justificativas, ou, melhor ainda, dando-lhe uma sustentação que dispensaria a comprovação das evidências empíricas, esteve sempre a responsabilidade fiscal como princípio moral.

No Brasil, a adoção do chamado Novo Consenso Macroeconômico obedeceu às prescrições dos manuais de macroeconomia, com a introdução progressiva de regras para a condução da política macroeconômica. No que diz respeito, especificamente, ao lado fiscal, a cronologia tem início em 1988, quando a Constituição Federal instituiu a Regra de Ouro, a qual define que novas dívidas emitidas em um ano fiscal não podem ser superiores às despesas de capital do período. Dito de outra forma: as despesas correntes do governo não podem ser financiadas por novo endividamento, exceção feita aos casos autorizados pelo Congresso. Um princípio baseado no bom senso (ou seria no senso comum?) e moralmente fundamentado.

Da lista de regras fiscais posteriormente introduzidas e ainda vigentes no país, destaco para comentar a Lei Complementar 101/2000, Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A referida lei reveste-se de particular importância porque, entre outros tantos pontos de relevo, em seu Art. 1º encontra-se definido o que é, no Brasil, a responsabilidade na gestão fiscal para a União, Estados, Distrito Federal e Municípios: “ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e obediência a limites e condições no que tange a renúncia da receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.” Assim, tal como definida na LC 101/2000, responsabilidade fiscal é o equilíbrio das contas públicas. Independentemente das condições da renda, do emprego, sanitárias, ambientais, educacionais e da infraestrutura do país, e independentemente do programa político com o qual comprometeu-se durante a campanha e pelo qual foi eleito, um gestor responsável do orçamento deve ter como meta equilibrar as contas públicas.

Aproximadamente duzentos e cinquenta anos após o início dessa aventura intelectual que é a reflexão sobre a dimensão econômica da vida social, o pensamento econômico dominante – para o qual “no princípio, era o mercado” – vê-se agora, novamente, obrigado a reavaliar o papel do Estado. O consenso macroeconômico que vigorou desde os anos 1990 está sendo revisto, na prática e na teoria, em âmbito internacional. A revisão teórica e das políticas é mandatória pois os acontecimentos dos últimos anos – a inflação de oferta e a transposição dos limites inimagináveis de endividamento – desafiaram o saber e a política macro consensual. Do lado da política fiscal, isso significa dizer que a orientação geral e irrestrita para que os governos tenham como meta, anualmente, resultados fiscais neutros (orçamento equilibrado) ou superavitários, vem sendo reavaliada. Há espaço para excepcionalizar despesas de investimento e excluí-las dos limites impostos para as chamadas despesas correntes. Há consenso sobre a necessidade de se avançar na transição para uma economia de baixo carbono, e que o Estado cumpre aí um papel decisivo. Adicionalmente, reavalia-se se algumas despesas correntes – educação, saúde – não deveriam ser consideradas como investimento porque, ainda que não ampliem a formação bruta de capital, certamente impactam a produtividade.

Tais espaços abertos para avançar na formulação da política, é claro, devem ser ocupados, e é isso que os eleitores do Presidente Lula e a sociedade esperam do novo arcabouço fiscal que o Poder Executivo está na iminência de apresentar. Até porque infelizmente, nem internacionalmente e tampouco no Brasil – e isso a despeito de termos um governo de centro-esquerda e uma equipe econômica que conta com quadros heterodoxos – o debate avançou a ponto de se compreender e aceitar plenamente a soberania monetária do Estado, o que realmente poderia levar a nossa discussão sobre política macroeconômica para um patamar muito mais avançado. Esperemos que ela venha num futuro não tão distante. Por ora, todo cuidado para que o necessário e possível novo arcabouço não se apresente como mais um calabouço.