Por
Douglas Belchior
O fascismo do governo Temer, a mídia golpista e setores conservadores
da sociedade, para além dos retrocessos nos direitos sociais, prometem
ataques permanentes à democracia nos espaços educacionais. A absurda
proposta da Escola Sem Partido tem como alvo não apenas as escolas
públicas de nível fundamental e médio, mas também as universidades
públicas.
A prova real temos agora, com a intervenção autoritária,
desrespeitosa quanto à sua própria autonomia e a serviço do governo
golpista, caracterizada pela postura da Reitoria da UFABC, que
pressionada pelo ministro da Educação do atual governo ilegítimo, pela
Confederação Israelita do Brasil (Conib) e pela revista Veja, modificou
os termos do edital de um concurso para a área de relação raciais,
eliminando a menção ao sionismo, que foi interpretada e denunciada pelo
Conib como “edital antissemita”.
Destilando ódio em um texto mal escrito, o blogueiro da
Revista Veja Reinaldo Azevedo, amplificou o argumento defendido pelo Conib – e que foi objeto de
reunião entre os Israelitas e o Ministro da Educação, que resultou na alteração do edital. O desprezível Azevedo chega escrever que
“Dá para fazer picadinho de cada item” do edital, chama de
“delinqüência intelectual”
o ítem que trata das óbvias “Conexões da branquidade e dos regimes
racistas: apartheid, nazismo, sionismo” e, entre outros absurdos, chama
de detestável “Os Condenados da Terra”, de Frantz Fanon.
O
edital 145/2016 de 21 de Junho,
tem como objetivo selecionar a partir de concurso público, professores
para as áreas e sub-áreas de relações raciais, desigualdades de raça,
gênero e renda, diáspora negra, direitos humanos e racismo. São 4 vagas,
com reserva (cota) de uma vaga para negra/o. Como sabemos, a
universidade brasileira tem caminhado a passos lentos no sentido de
promover conteúdos relativos às questões raciais e de gênero, bem como a
uma maior participação de professores negros em seus quadros decentes.
Sem dúvida que o ataque a esse edital, que traz uma elaboração de
conteúdo profundamente avançado do ponto de vista da diversidade e
relações raciais, está relacionada ao momento de ataques que vivemos em
todas as esferas.
Sobre a acusação feita pelo Conib, de que o edital seria antissemita,
em Carta Aberta à Comunidade, que segue abaixo em sua íntegra, os
professores Muryatan Santana Barbosa e Paris Yeros registram que
O ponto do edital referente ao estudo comparativo de
regimes racistas (4.3.1.4), incluindo apartheid, nazismo e sionismo, se
refere a um corpo de pesquisa já estabelecido e a um dos assuntos que
mais preocupou a Assembleia Geral da ONU, resultando na Resolução No.
3379/1975 que tipificou a opressão do povo palestino como racismo. A
resolução foi anulada em 1991, porém o assunto continua a polarizar,
como o fez na III Conferência sobre o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias
Correlatas, realizada na cidade de Durban em 2001.
Registro aqui total solidariedade aos professores Muryatan Santana
Barbosa e Paris Yeros, bem como ao professores que compõem a Associação
dos Docentes da UFABC, que se dedicam diuturnamente a fazer da UFABC uma
universidade plural e democrática.
Abaixo segue manifestações de professores da UFABC:
Carta aberta à Comunidade Acadêmica
Carta aberta à Comunidade Acadêmica em relação ao Edital 145/2016 (“4×4”)
Como membros do GT do CECS para o concurso sobre Relações Étnico-Raciais (Edital 145/2016,
www.ufabc.edu.br/index.php…) vemos, por meio desta, esclarecer alguns pontos fundamentais a respeito.
- O estudo das relações étnico-raciais é um campo estabelecido
mundialmente, constituído por uma ampla agenda de pesquisa e diversidade
de abordagens.
- O estudo das relações étnico-raciais no Brasil se desenvolveu
insatisfatoriamente na academia, como resultado do tipo de racismo
vivido no país, que se negou a reconhecer sua própria existência como
fator estruturante da sociedade brasileira. Este fato foi reforçado ao
longo do tempo pela ausência quase total de pesquisadores(as) negros(as)
nas universidades brasileiras.
- A importância do estudo e do ensino das relações étnico-raciais no
sistema de educação brasileiro foi tardiamente reconhecida pelo Governo
Federal na década passada, começando pela Lei 10.639/2003 sobre o ensino
da História e da Cultura Afro-brasileira e Africana e pela Resolução
No. 1 do Conselho Nacional de Educação, que instituiu as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais.
Juntamente com leis posteriores, especialmente a Lei 10.645/2008, o
processo de reconhecimento tomou corpo no Plano Nacional de
Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das
Relações Étnico-raciais, que inter alia exigiu da educação superior um
esforço sistemático para contribuir à formação de jovens
pesquisadores(as), professores(as) e cidadãos(ãs) conscientes das
realidades brasileiras.
- A exclusão de negros(as) foi também reconhecida, resultando, em
primeiro lugar, na adoção de cotas raciais em universidades federais,
prioritariamente em nível de graduação. Atualmente, cotas raciais são
exigidas em cursos de pós-graduação. Adicionalmente, a Lei 12.990/2014
reservou aos(as) negros(as) 20% das vagas em concursos públicos, o que
no caso do ensino superior se traduz na reserva de uma vaga em cada
três, em editais com três ou mais vagas.
- O concurso em questão é uma das primeiras iniciativas de viabilizar
tanto a Lei 12.990, como fazer avançar no Plano Nacional de
Implementação, por articular quatro bacharelados das Ciências Humanas e
Sociais Aplicadas (Ciências Econômicas, Políticas Públicas, Planejamento
Territorial, e Relações Internacionais) na alocação de uma vaga por
curso a um esforço coletivo. O processo amadureceu ao longo de mais de
um ano, passando pelas quatro plenárias, as quais também definiram os
pontos da subárea que lhes cabia separadamente. As plenárias e seus
colegiados são, portanto, responsáveis pela autoria dos pontos.
- O ponto do edital referente ao estudo comparativo de regimes
racistas (4.3.1.4), incluindo apartheid, nazismo e sionismo, se refere a
um corpo de pesquisa já estabelecido e a um dos assuntos que mais
preocupou a Assembleia Geral da ONU, resultando na Resolução No.
3379/1975 que tipificou a opressão do povo palestino como racismo. A
resolução foi anulada em 1991, porém o assunto continua a polarizar,
como o fez na III Conferência sobre o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias
Correlatas, realizada na cidade de Durban em 2001.
- O ponto do edital não pressupõe que formas de governo e ideologias
são iguais em suas características, dinâmicas e consequências. Ele exige
que candidatos tenham domínio sobre esses estudos comparativos.
- É possível e necessário debater livremente sobre o assunto e a forma
como ele foi colocado no edital, porém não cabe a uma Reitoria decretar
o que é ou não é apropriado no estudo das relações étnico-raciais. Tal
intervenção fere gravemente a liberdade acadêmica e cria um precedente
perigoso.
- Quaisquer que sejam as divergências sobre o referido ponto do
edital, vale lembrar que é apenas um dos quarenta pontos ali existentes,
que versam, em sua grande maioria, sobre à questão étnico-racial da
população negra no Brasil.
O concurso em questão é resultado de reivindicações históricas do
povo negro brasileiro por reconhecimento e inclusão efetiva na sociedade
brasileira. Como tal, deve ser defendido por todos(as) aqueles(as)
interessados(as) na formação de um país mais justo e democrático. O
mínimo que se espera, feita a retificação do referido ponto, é que se
respeite a integridade e a legalidade do concurso.
Saudações acadêmicas,
Muryatan Santana Barbosa (BCH/BRI/CECS)
Paris Yeros (BCH/BCE/CECS)
Nota da ADUFABC sobre a retificação do edital 145/2016: a universidade não existe sem autonomia
No último dia 13 de julho, a UFABC publicou no Diário Oficial da
União o edital n°160/2016 que, como afirma nota divulgada pela reitoria
no mesmo dia, “corrige uma parte do Edital 145/2016 que, de forma
inapropriada, tratou no mesmo contexto regimes políticos e
acontecimentos históricos muito diferentes entre si”.
Como todos acompanhamos, a decisão da reitoria de retificar o edital
tinha o objetivo de encerrar uma forte polêmica envolvendo um dos pontos
do referido concurso que mencionava o debate sobre “Conexões da
branquidade e dos regimes racistas: apartheid, nazismo, sionismo”. A
reação ao ponto envolveu, além de manifestações de parte da imprensa e
da comunidade judaica, uma demanda direta do próprio ministro interino
da educação.
A universidade, como qualquer outra instituição social, não existe
fora da sociedade. Portanto, é perfeitamente compreensível – e até mesmo
desejável – que seja objeto de questionamentos de forças sociais
diversas, de natureza política, econômica, cultural ou religiosa,
sobretudo considerando-se a legitimidade e a eficácia do conhecimento
produzido no seu interior.
Mas se é esperado da sociedade que questione a universidade, é
igualmente esperado que esta responda respeitando o princípio da
autonomia.
A universidade constituiu-se historicamente como instituição lutando
contra o poder político e religioso da Igreja, ainda na Idade Média. Da
mesma forma, a emergência da ciência moderna no século XVII é impensável
sem a afirmação do ideal da autonomia, materializado no expediente da
“revisão por pares”, que reconheceu como princípio basilar da moderna
produção de conhecimento, a ideia de que só pode julgar a validade de um
saber aqueles que sejam capazes, por longo processo de formação, de
compreendê-lo e avaliá-lo.
Foi reafirmando esses princípios fundamentais, e em resposta aos
traumas e retrocessos causados pelas constantes intervenções da ditadura
militar no interior da universidade, que a Constituição Federal de 1988
estabeleceu, no seu artigo 207, o princípio da autonomia universitária,
com destaque para a autonomia didático-científica.
Reconhecer a autonomia da universidade não significa isentá-la de
controle e responsabilidade social, mas significa afirmar que estes se
exercerão segundo determinadas regras, inspiradas nesse princípio
constitucional.
É partindo desta reflexão que a diretoria da Associação dos Docentes
da UFABC vem por meio desta nota externar a sua profunda preocupação com
a forma como o edital 145/2016 foi retificado pela reitoria da UFABC no
último dia 13. Se havia uma demanda externa, mesmo que de origem pouco
qualificada como foi o caso, para que o edital 145 fosse retificado,
isso deveria ter sido feito à luz do princípio da autonomia e
respeitando-se as instâncias universitárias, o que, em nossa opinião,
exigia que o mesmo fosse reencaminhado de modo oficial para o colegiado
responsável pela sua formulação, com uma solicitação de avaliação do
questionamento apresentado e de eventuais esclarecimentos e, se este
julgasse necessário, de reelaboração do referido ponto do edital.
Como se sabe, a discussão sobre racismo, sobretudo nos seus pontos de
intersecção com a política e a religião, é assunto que mobiliza paixões
e gera enormes polêmicas. No entanto, é função da universidade formar
profissionais capazes de dominar criticamente os debates científicos e
acadêmicos que alimentam e analisam tais polêmicas. Aliás, é isso que
diz o edital de condições gerais de concurso da UFABC (n° 96/2013), no
seu item 11.3:
“A Prova Escrita tem como objetivo avaliar a competência do candidato
na utilização de conceitos, técnicas e suas inter-relações, de acordo
com a área/subárea de conhecimento em exame, bem como avaliar sua
capacidade de argumentação e crítica, domínio conceitual e vocabulário
da área/subárea”.
A ideia de estabelecer no edital do concurso pontos ao invés de
perguntas fechadas pressupõe a capacidade do candidato de argumentar
livremente, inclusive de forma crítica. Assim, qualquer um que
conhecesse o edital de condições gerais de concurso da UFABC, saberia
que, ao contrário do que foi dito, não se esperava um candidato que
equiparasse nazismo, sionismo e apartheid, nem que afirmasse o caráter
racista do sionismo. Parece-nos evidente que o edital esperava, na
verdade, um candidato que dominasse criticamente o debate por ele
evocado.
Vale notar que a associação entre sionismo e ideologia da
branquidade, portanto racismo no sentido sociológico do termo, é objeto
de um amplo e conceituado debate no campo das ciências sociais, com
desdobramentos muito particulares na área acadêmica e profissional das
relações internacionais. Prova disso são os constantes debates e embates
travados no âmbito da Organização das Nações Unidas para a definição ou
não do sionismo como forma de racismo.
Que a Universidade Federal do ABC forme profissionais que lidem com
esse debate de forma dogmática é inaceitável. Assim como é inaceitável
que esse debate seja interditado a ponto de não poder ser citado em um
edital de concurso, como se ele não fosse objeto de análise crítica e
objetiva das ciências sociais.
As ciências sociais, de todas as áreas da ciência moderna, são as que
mais dificuldades encontram para afirmar a sua autonomia e isso é
patente nos constantes debates que se travam no espaço público da UFABC.
Em um momento em que assistimos a uma escalada de radicalização
política e religiosa no mundo todo, a universidade deve lutar para
permanecer como espaço livre, crítico e objetivo de pesquisa e
discussão. E isso não pode ser feito sem a preservação do princípio
fundamental e constitucional da autonomia universitária. O precedente
aberto pela revisão do Edital 145/2016 é, a nosso ver, perigosíssimo.
Editais podem, sim, ser revistos, mas segundo critérios muito bem
estabelecidos de respeito à autonomia universitária e às especialidades
das diferentes áreas. Qualquer procedimento que escape a isso, flerta
perigosamente com posições anticientíficas, anti-intelectuais e
anti-modernas.
Diante do exposto, a ADUFABC solicita publicamente à Reitoria os
seguintes esclarecimentos: 1) Como chegou à Reitoria a demanda de
alterações no edital em questão? 2) Quais razões levaram a Reitoria a
ignorar as instâncias devidas, notadamente o colegiado de curso que
aprovou e referido edital? 3) Qual resposta a Reitoria pretende dar ao
veículo de imprensa que, de forma agressiva e leviana, denegriu a imagem
da UFABC e de seu corpo docente?
Por fim, a ADUFABC é solidária à Carta Aberta dos professores
Muryatan Barbosa e Paris Yeros, membros do GT responsável pelo referido
concurso, e reafirma a importância do edital 145/2016, cujo objetivo
central é contratar professores que tenham pleno domínio do debate
acadêmico-científico sobre a questão étnico-racial em suas diferentes
dimensões, mas sobretudo no que concerne ao estudo e à pesquisa do povo
negro brasileiro.
São Bernardo do Campo
18 de julho de 2016
ADUFABC
Gestão Democracia, Diversidade e Direitos (2016-2018)