terça-feira, 23 de abril de 2024

CONFLITOS NO CAMPO ATINGEM MAIOR NÚMERO JÁ REGISTRADO NO BRASIL DESDE 1985

 Conflitos no campo atingem maior número já registrado no Brasil desde 1985
Novo levantamento aponta aumento de ocorrências de despejo judicial e violências causadas por governos estaduais

22 de abril de 2024
09:00
Por Gabriel Gama
SOCIOAMBIENTAL VIOLÊNCIA
Amazônia conflitos no campo direitos humanos política violência
O Brasil teve 2.203 conflitos no campo em 2023, o maior número já registrado desde 1985, quando começaram os levantamentos da Comissão Pastoral da Terra (CPT). No ano passado, os despejos judiciais no meio rural quase triplicaram e as violências causadas por agentes dos governos estaduais mais que dobraram, embora empresários e grileiros continuem liderando as agressões.

Os dados são do relatório “Conflitos no Campo 2023”, da CPT, divulgado nesta segunda-feira. A publicação destaca o número recorde de conflitos no campo no Brasil, que envolveram 950 mil pessoas no ano passado. Até então, a maior quantidade de ocorrências havia sido registrada em 2020, com 2.130 casos. A região Norte lidera com 810 conflitos, seguida pela Nordeste (665), Centro-Oeste (353), Sudeste (207) e Sul (168).

POR QUE ISSO IMPORTA?
O levantamento de conflitos no campo feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) é uma das únicas bases de dados desse tipo no país. Ele serve como indicador para violência no ambiente rural, realidade que afeta milhares de famílias no Brasil

Do total de ocorrências, 78,2%, ou 1.724 conflitos, foram relacionados a disputas pela terra; 11,4% foram motivados pela água; e 10,4% tiveram relação com o trabalho. Com mais de 187 mil famílias atingidas, a quantidade de conflitos pela terra também é a maior da série histórica.

O estado que mais teve conflitos agrários foi a Bahia, com 202 casos. O Pará fica em segundo lugar, com 183 registros. Na terceira posição, vem o Maranhão, com 171 conflitos. Na sequência, Rondônia registrou 162 violências pela terra e Goiás ocupa o quinto lugar da lista, com 140.


“Desde 2017, estamos vivenciando um período de acirramento da violência no campo, que se intensificou durante o governo Bolsonaro e se manteve no primeiro ano do governo Lula. Esse período é marcado pela violência contra as comunidades na tentativa de expulsá-las do território, visando barrar a luta pela conquista de novas áreas”, avalia Andréia Silvério, coordenadora nacional da CPT.

Apesar do recorde de conflitos, as ações de resistência também se intensificaram. Foram concretizadas 119 novas ocupações e retomadas de territórios, um crescimento de 60,8% em relação a 2022. Um aumento ainda maior foi verificado na quantidade de novos acampamentos de posseiros e sem-terra, com 17, ou 240% a mais do que no período anterior.

Violências causadas por governos estaduais mais que dobram, mas fazendeiros ainda são maiores agressores
A quantidade de violências perpetradas por agentes dos governos estaduais mais que dobrou em um ano, passando de 63 em 2022 para 132 em 2023. A maior parte envolveu ações policiais de intimidação armada e ameaças variadas, com 103 episódios.

Os estados de Goiás e Bahia estiveram à frente nesse recorte, seguidos por Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão e Rondônia. A CPT denuncia que esses governos têm intensificado a repressão policial contra acampamentos, assentamentos, comunidades quilombolas e terras indígenas.

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No mesmo período, as violências causadas pelo governo federal caíram 27%, com 175 ocorrências em 2023, primeiro ano da gestão Lula. Elas chegaram a 240 no ano anterior, último do mandato de Bolsonaro.

Apesar dessa queda e da ampliação do diálogo do governo atual com os movimentos sociais, por meio da reestruturação de ministérios como o do Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos e Justiça e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a CPT avalia que “isto não se refletiu em avanços na conquista de direitos pelas populações camponesas e tradicionais, como a reforma agrária e a demarcação das terras indígenas”.

Ainda assim, os maiores causadores de violência no campo são fazendeiros, empresários e grileiros. Juntos, eles respondem por 59,9% de todos os conflitos por terras em 2023. Foram 495 causados por fazendeiros, 313 por empresários e 144 por grileiros.

Despejo judicial no campo quase triplica em um ano
As ocorrências de despejo judicial no campo dispararam 194% entre 2022 e 2023, passando de 17 para 50 casos concretizados, que desalojaram mais de 5 mil famílias. As ameaças de despejo tiveram aumento de 32,6%, com 183 registros em 2023, 45 a mais do que no período anterior, e deixaram 21 mil famílias sob a expectativa de não ter um local para viver.

De acordo com o relatório, a Bahia é líder isolada em número de famílias efetivamente despejadas, com 2,9 mil – mais da metade do total do país.

Segundo a coordenadora da CPT, o grande número de despejos nesse estado é decorrente da ofensiva contra os sem-terra. “É possível apontar também a recorrente violência contra comunidades tradicionais e povos indígenas, sendo a grilagem uma prática instituída através de esquemas que envolvem os órgãos de terras, cartórios e até mesmo o Judiciário, já há muitos anos denunciada”, afirma Silvério.

“Na Bahia se identificou uma forte articulação do movimento invasão zero, constituído majoritariamente por fazendeiros, grileiros e jagunços, que visa retaliar violentamente as novas ocupações e retomadas de territórios indígenas, a exemplo do que ocorreu na região sul do estado já em 2024, culminando com assassinato da liderança indígena Nega Pataxó”, complementa.

Quando o recorte é a quantidade de famílias ameaçadas de despejo, Rondônia assume o primeiro lugar, com 7,1 mil famílias, seguido pela Bahia, que tem 3,4 mil famílias nessa condição. Somados, esses estados concentram 48% da população ameaçada por despejos no campo.


A CPT atribui esse crescimento ao fim da suspensão de despejos coletivos, instaurado pela Arguição de Descumprimento de Poder Fundamental (ADPF) 828, que esteve em vigor entre 2020 e 2022. A medida tinha o objetivo de evitar impactos maiores da pandemia da covid-19 entre as populações vulneráveis.

Assassinatos de mulheres aumentam
Trinta e um assassinatos foram registrados em conflitos no campo no Brasil em 2023, o que corresponde a uma redução de 34% em relação ao ano anterior.

A situação, no entanto, não é uniforme. Na região da tríplice fronteira entre Amazonas, Acre e Rondônia, conhecida como Amacro, houve oito assassinatos, o mesmo número observado em 2022, sendo cinco causados por grileiros.

“Prometida como ‘modelo’ de desenvolvimento com foco na sociobiodiversidade, [a região de Amacro] tornou-se epicentro de grilagem para exploração madeireira e criação de gado, com altas taxas de desmatamento, queimadas e conflitos”, afirma o relatório.

Quando se analisam os assassinatos de mulheres no campo, a tendência é de crescimento. Sete mulheres foram executadas em 2023, 16,7% a mais do que no período anterior. Um dos casos que ganhou maior notoriedade foi o de Mãe Bernadete, líder quilombola morta a tiros em agosto passado, na Bahia.

Indígenas são os mais afetados por conflitos envolvendo projetos de crédito de carbono
Entre os conflitos pela terra, os indígenas continuam sendo a categoria que mais sofreu violências, com 470 ocorrências, ou 29,6% do total registrado em 2023. Também são o grupo mais assassinado no meio rural, com 45% do montante de vítimas.

Os conflitos que envolvem projetos de créditos de carbono, destinados a compensar as emissões de empresas poluidoras, atingiram 23 localidades diferentes naquele ano, implicando uma área de 9,7 milhões de hectares do território nacional. Pará e Rondônia concentram 94% desse total.

Grande parte dessas áreas, ou 88,4%, faz parte de terras indígenas. Em segundo lugar, aparecem as unidades de conservação, com 7,6%, e por fim os assentamentos (3,4%).

Edição: Bruno Fonseca
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Gabriel Gama
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sexta-feira, 19 de abril de 2024

 

No Capitalismo Indigno, raiz da extrema-direita

Ao suprimir a solidariedade, sistema produziu uma ralé descartável e o salve-se quem puder. Vem daí a corrosão de caráter que nutre os fascistas. Eles só recuarão quando novas transformações expuserem a miséria do indivíduo indiferente

Arte: Adam Baker
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O cenário global atual conforma um daqueles momentos da história no qual nos sentimos sem rotas de fuga evidentes e com a sensação de estarmos vivendo em uma era de transição, na qual o passado ainda não sucumbiu totalmente e o futuro ainda não se mostrou. Em tais momentos, recorrer ao passado histórico e às pistas que a teoria social nos apresenta pode ser um caminho seguro, de modo a não ficarmos presos às ilusões do presente, do qual muitas vezes não conseguimos ter distanciamento afetivo e cognitivo. Para tanto, é preciso identificar as questões e consequentemente as discussões mais urgentes de nosso tempo, dentre as quais a que me parece mais importante é a ascensão da extrema direita em escala global nos últimos anos.

Ao revisitar criticamente as principais transformações estruturais do capitalismo global, desde a década de 1970, vemos que a ascensão da extrema-direita não se compreende simplesmente através dos debates de “conjuntura”, como tem sido feito atualmente. Com isso, tal fenômeno, tanto nos países centrais quanto nos periféricos, só pode ser compreendido profundamente se reconstruirmos as suas origens ao longo da “grande transformação” sofrida pelo capitalismo global nas últimas cinco décadas. Este é o cenário histórico que procurarei reconstruir aqui a partir do conceito de “capitalismo indigno”.

Como indigno, percebo a forma de capitalismo que se estruturou no mundo, desde os anos de 1970, tendo como característica principal a naturalização, em escala global, do desvalor da vida humana como um todo, e especialmente da vida daqueles mais necessitados, os “sobrantes” (Robert Castel), ou seja, uma “ralé global”.1 Este é o principal produto do capitalismo indigno em escala global, que tem como marco inicial central o fracasso do welfare state em países centrais como Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha.2 A naturalização do desvalor dos mais pobres e necessitados, ou seja, aqueles que “sobraram” ou que nunca conseguiram se inserir no sistema do trabalho digno e produtivo, sempre foi um marco nos países periféricos, como mostrou Jessé Souza (2009), por exemplo, no caso brasileiro. Atualmente, o desvalor da vida humana nas classes populares, o que já ameaça as camadas mais baixas da classe média, também afeta os países centrais, como uma ferrugem que corrói o sistema por dentro, deixando claro que o capitalismo jamais promoverá justiça social, explicitando assim sua lógica intrínseca e inevitável. Este novo cenário global é o que eu estou provocativamente chamando de capitalismo indigno, ou seja, um sistema global cuja marca central é a generalização, institucionalização e naturalização da indignidade da vida sofrida das classes populares, cuja realidade consiste em vagar entre o não emprego sistemático e a realização de ocupações indignas. Outro traço central deste novo sistema é a indignidade das relações entre as classes, inclusive nos países centrais, marcadas pelo desrespeito e a intolerância, típicos de contextos nos quais predominam a radicalização da desigualdade socioeconômica.3

Neste contexto, a sociologia do trabalho normalmente recorre ao conceito de trabalho precário para tematizar as condições de trabalho produzidas pelo capitalismo atual. Ainda que tenha provocado e servido de base para um grande número de importantes pesquisas empíricas, o conceito de trabalho precário apenas descreve situações de trabalho que são obviamente ruins. Em contrapartida, proponho a ideia de trabalho indigno, (Maciel, 2021) para pensar o tipo de trabalho realizado pela ralé brasileira e global, o que é essencialmente igual tanto no centro quanto na periferia. Neste contexto, o conceito de trabalho indigno nos permite tematizar o sofrimento e a humilhação social, ou seja, a dimensão moral da condição de subocupado ou simplesmente de desempregado estrutural. A dignidade da pessoa humana é um dos princípios centrais de nossa hierarquia moral de valores no Ocidente, o que pode ser visto no ditado que diz que “todo trabalho é digno”, mas que apenas obscurece a realidade de descartabilidade e inutilidade vivida por milhões de pessoas no mundo hoje. Esta realidade, que sempre foi a marca central de países periféricos como o Brasil, agora corrói também o seu centro, lançando todo o sistema global em uma condição indigna, estruturada pelo capitalismo indigno, o que pôde ser visto com toda a nitidez nos piores momentos da pandemia.

A ausência do estado de bem-estar como base para a extrema-direita

Diante disso, farei uma análise em dois movimentos, que precisam ser articulados, de modo a compreendermos como o capitalismo indigno proporcionou a ascensão da extrema-direita, tanto no Brasil como em outras realidades nacionais. Primeiro, é preciso compreender o grande ciclo deste capitalismo em escala global, a partir da década de 1970. Uma de suas características centrais é seu refluxo dos vetores econômicos, fazendo com que agora os países centrais também sintam o gosto amargo de algumas das principais realizações negativas do sistema, relegadas sempre à sua periferia. É isso que vai explicar, por exemplo, o fortalecimento da extrema direita em países como França e Alemanha.4

No caso da última, a obra de Klaus Dörre permite compreender a adesão da classe trabalhadora à extrema-direita no cenário recente. Para tanto, o autor vai usar a metáfora da “fila da espera”, recorrendo à obra de Arlie Hochschild, de modo a tematizar o aumento da precariedade e da consequente angústia social na Alemanha nos últimos anos, o que conforma um contexto propício para a adesão a sentimentos autoritários. Neste sentido, o autor percebe uma profunda conexão entre racismo, populismo e a questão do trabalho (Dörre, 2018). Ademais, as motivações que levam boa parte da classe trabalhadora ao encontro de sentimientos autoritários foram tema de pesquisa do autor por vários anos. Dentre elas, o medo diante da situação de instabilidade crescente se encontra entre os principais aspectos.

Na mesma direção, encontra-se a análise de Arlie Hochschild sobre o caso dos Estados Unidos. Neste sentido, a autora realizou uma pesquisa no interior de alguns dos estados mais conservadores do país, de modo a compreender como o coração de pessoas comuns foi seduzido pelo movimento que levou à eleição de Donald Trump (Horschild, 2018). A autora tematizou esta complexa situação com a metáfora do “estranho em seu próprio país”, se referindo ao sentimento do cidadão americano mediano diante do estrangeiro, que no atual contexto é visto como aquele que vem para “roubar” os empregos. Não por acaso, a apropriação de Trump do slogan de Ronald Reagan “Make American great again” vai fazer bastante sucesso nesta direção.

Outra importante análise no contexto alemão foi feita por Wilhelm Heitmeyer. Para o autor, presenciamos agora um novo tipo de radicalismo de direita. Este caracteriza-se como um novo radicalismo nacional autoritário, representado pelo AfD e com articulação em movimentos como o PEGIDA e alguns milieus intelectuais. Trata-se ainda de um populismo de direita difuso, mobilizando instrumentalmente a contradição entre “elite” e “povo”, e posicionando-se como se falasse “pelo povo”. Neste sentido, este novo tipo de populismo, para o autor, apresenta três características centrais. Primeiro, o “autoritário” se torna o paradigma de controle contra a política e a sociedade. Segundo, o “nacional” passa a acentuar a posição excepcional do povo alemão e de sua identidade. Por fim, o “radical” passa a ser celebrado como o estilo de mobilização por excelência, ultrapassando todas as fronteiras emocionais, éticas e morais.

Ademais, para o autor, presenciamos atualmente a ascensão de um capitalismo autoritário e de uma perda de controle múltipla, o que é decisivo para a compreensão do fortalecimento da extrema-direita. Com isso, ele percebe o ressurgimento do radicalismo nacional autoritário não apenas como um problema relacionado a erros de desenvolvimento do sistema político das democracias liberais, mas sim como uma mudança de relações entre processos econômicos, sociais e políticos, os quais conformam a “ambivalência da modernidade” (Bauman) e as velozes transformações em curso na globalização. 5

Assim, a política nacional vai sofrer a perda de controle, diante da vitória do controle do capitalismo autoritário, por exemplo, com a política de desregulação, produzida pelo próprio sistema político. Além disso, a perda de controle social e individual de vários cidadãos será percebida por estes como perda de controle político, o que vai levar à perda de confiança nos partidos políticos estabelecidos e até mesmo na democracia como um todo. Algo bastante semelhante pode ser visto no caso brasileiro. No geral, o que estes autores estão mostrando é o triunfo do capitalismo indigno, pavimentando o caminho para a ascensão de sentimentos, articulações e políticas de extrema-direita no cenário atual.

Por outro lado, é preciso compreender que os ciclos do capitalismo periférico não necessariamente acompanham os ciclos do centro. Neste sentido, é preciso tematizar o que aconteceu no Brasil recente, ou seja, como o capitalismo indigno possui um ciclo específico recente entre nós e como ele nos trouxe a um contexto autoritário, que reflete em grande medida o cenário global. Na década de 1960, quando o capitalismo “social” começa a mostrar sua verdadeira face no Atlântico Norte, expondo os limites do estado de bem-estar e sofrendo várias críticas sociais e estéticas (Boltanski & Chiapello, 2009), o Brasil sofreu um golpe militar, no contexto da guerra-fria, sob o pretexto de “garantir a ordem”.

Na década de 1980, como consequência da crise estrutural do capitalismo na década anterior, os governos Reagan e Thatcher inauguram seu neoliberalismo perverso e anti-social, o que se reflete nas dificuldades com a inflação que marcam nossa “década perdida”. Na década de 1990, com o neoliberalismo estabelecido enquanto modelo político inquestionável do Ocidente, verdadeira face do capitalismo indigno, o Brasil curiosamente inicia um ciclo ambíguo que marca nossa nova dependência já no governo de Fernando Henrique Cardoso, inesquecível por suas privatizações e integrando por baixo o país na nova ordem global. Apesar de neoliberal, nossa década de 1990 pavimenta parcialmente o caminho para a era do lulismo.

Assim, se quisermos compreender o que de fato aconteceu no Brasil recente precisamos romper com as ilusões da conjuntura e fazer uma reconstrução estrutural de ordem maior. Neste sentido, é preciso ir além da novelização da política na qual fomos imersos, ou seja, tematizar as verdadeiras razões obscuras do capitalismo indigno, que estão sendo sistematicamente escondidas pela grande mídia, cuja especialização maior atualmente é o foco na teatralização do campo político.

Diante deste complexo cenário, é preciso compreender o que aconteceu no Brasil durante os anos do lulismo. Estes podem ser entendidos como um esboço de welfare state entre nós, apesar de toda as limitações estruturais impostas pelo capitalismo indigno a países periféricos e dependentes.6 Neste sentido, é preciso escapar de leituras apressadas que têm sido feitas no Brasil atual, de modo a culpabilizar a esquerda e seus erros na conjuntura anterior, como se isso explicasse o aumento de nossa desigualdade e violência recente. Com isso, o antipetismo se tornou um dos principais paradigmas analíticos da política contemporânea durante o governo Bolsonaro, fundamentado muito mais no discurso da grande mídia do que em pesquisas acadêmicas especializadas.

Se não quisermos reproduzir este argumento superficial, precisamos compreender a ação efetiva e obscura do capitalismo indigno entre nós. São as suas transformações estruturais profundas que se encontram por trás do golpe de 20167, que abortou nosso ensaio de bem-estar social e colocou no poder um governo de legitimidade questionável, pavimentando o caminho para uma série de reformas anti-sociais que romperam nosso pacto social.8 Apesar de um movimento crescente no Brasil, na conjuntura anterior, no sentido de minimizar os efeitos do capitalismo indigno, as forças externas que refletem o fracasso do sistema em escala global, especialmente a partir da crise de 2008, sempre estiveram presentes nas decisões dos assuntos nacionais.

No movimento que inaugura a complexa conjuntura atual, boa parte da elite brasileira, em consonância com o movimento global do capitalismo indigno, reproduziu o discurso seletivo da corrupção, bem como a linguagem política do anti-petismo, dominante no Brasil dos últimos 20 anos, e com isso apostou na eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Não por acaso, o discurso do expresidente é ultra meritocrático, legitimando toda a ação neoliberal devastadora do capitalismo em países periféricos como o Brasil. Também não é casual que Lula tenha vencido a última eleição para presidente, confirmando que sua imagem enquanto líder popular e sua conexão afetiva com grande parte das classes populares no Brasil conseguiu sobreviver ao golpe de Estado sofrido por seu partido em 2016 e à sua controversa prisão, em 2018, quando ele liderava as intenções de voto, o que deixou o espaço livre para a ascensão de Bolsonaro na reta final. Além disso, boa parte da população brasileira, incluindo parte da elite, não conseguiu evitar o descontentamento com o governo Bolsonaro que, além de sua tonalidade explicitamente autoritária, também demonstrou incompetência na condução do país como um todo. A trágica administração da pandemia pelo governo, culminando em mais de 600 mil mortes, fato conhecido e bastante criticado na mídia internacional, é a principal prova empírica desta afirmação.

Conclusão

Como conclusão, gostaria de propor uma interpretação de como a estruturação do capitalismo indigno nas dimensões da economia política, da moralidade, da ideologia e da cultura vai explicar a ascensão da extrema-direita hoje em escala global. Trata-se de uma articulação teórica entre estes quatro níveis, de modo a contribuir para uma compreensão ampla de como chegamos até aqui. Desde os anos de 1970 presenciamos a grande transformação do capitalismo global em todas estas dimensões, o que vai naturalmente intensificar a desigualdade nos países periféricos, além de iniciar nos países centrais um processo de indignidade das condições de trabalho e das relações entre as classes aparentemente sem volta.

Assim, no plano da economia política, o que presenciamos é o espectro da indignidade em escala global, o que se conforma como a principal marca do período pós-welfare state nos países centrais e o aprofundamento da desigualdade estrutural nos países periféricos. Isto significa uma indignidade ainda conjuntural nos países centrais e estrutural nos países periféricos. Entretanto, a naturalização do desvalor da vida humana dos mais necessitados, ou seja, a produção de uma ralé global, é uma marca do capitalismo indigno como um todo. Isso é o que Robert Castel (1998) vai tematizar com as noções de “sobrantes” e “vulnerabilidade” e Richard Sennett (2006) com o conceito de “descartabilidade”. Esta situação, ainda que conjuntural nos países centrais, foi suficiente para alimentar os sentimentos de medo, angústia e insegurança, tanto material quanto ontológica, que levam em grande medida à simpatia e adesão a movimentos de extrema-direita, como pudemos ver a partir das obras de Klaus Dörre, Arlie Hochschild e Wilhelm Heitmeyer.

Além disso, a tese da “sociedade do conhecimento”, de André Gorz (2005), na qual o conhecimento tecnológico se torna uma força produtiva sem precedentes, pode ser atualizada para a compreensão do capitalismo digital e de plataformas, bem como sua capacidade em aprofundar a indignidade do trabalho e consequentemente a desigualdade de classe. Neste sentido, a dimensão tecnológica do capitalismo indigno criou mecanismos ainda mais invisíveis e impessoais de reprodução da desigualdade do que em períodos anteriores, o que pode ser visto em toda a sua voracidade na ação de empresas como a Uber e o I-Food em países como o Brasil, no qual o número de pessoas vulneráveis que recorrerão a este tipo de trabalho indigno digital, ou seja, uma nova ralé digital, é bem maior do que nos países centrais.

Na dimensão da moralidade, como entendida por Axel Honneth (2015), é preciso compreender aqui a atualização do pano de fundo moral e das interações éticas em um contexto de indignidade generalizada, o que vai explicar em grande medida a adesão ao radicalismo de extrema direita. Neste sentido, o que presenciamos com o trumpismo e o bolsonarismo é o aprofundamento de uma moralidade ultra meritocrática. Isto significa que, em um contexto econômico no qual a diferença entre vencedores e perdedores no mercado de trabalho é gigantesca, teremos uma interação ética indigna entre as classes, o que se reverbera no aumento do ódio, da intolerância, da violência e do medo. Não por acaso, os discursos profundamente meritocráticos de Trump e Bolsonaro, por exemplo, são uma das principais marcas deste tipo de moralidade conservadora e intolerante, na qual os vencedores se sentem ameaçados em seus privilégios, considerados justos, e os perdedores se sentem desamparados, humilhados, esquecidos, abandonados e revoltados. Nenhum contexto é mais propício do que este para a adesão aos sentimentos autoritários, por razões distintas, entre vencedores e derrotados. Neste sentido, a revolta muda dos derrotados se transforma no sentimento antipolítica e antissistema que vai levar à adesão e identificação afetiva com os líderes da extrema direita.

No plano da ideologia, a análise de Boltanski e Chiapello (2009) sobre o terceiro espírito do capitalismo ainda se apresenta como uma das mais produtivas para esta discussão. Uma das principais características do terceiro espírito, para os autores, é exatamente a sua capacidade de neutralizar as críticas sociais e esconder todas as hierarquias do capitalismo indigno, sugerindo a existência de um novo capitalismo do bem, políticamente correto, inclusivo e preocupado com todas as questões sociais relevantes de nosso tempo.9 Nada é mais falso e perigoso do que isso. Com isso, o terceiro espírito do capitalismo precisa ser compreendido como uma ideologia, no sentido de amenizar e ao mesmo tempo justificar as contradições atuais do sistema, buscando o engajamento afetivo e prático de seus diferentes atores e classes sociais.

Assim, a desigualdade atual é vista como algo mutável, desde que as pessoas sejam flexíveis e procurem se engajar nos projetos oferecidos por este novo capitalismo, supostamente mais dinâmico e inclusivo do que em períodos anteriores. Deste modo, o fracasso na realização de projetos pessoais e a não inclusão no mercado de trabalho passa a ser internalizado mais do que nunca como culpa dos derrotados, ou seja, a ideologia do novo capitalismo de projetos esconde exatamente a sua verdadeira face profundamente meritocrática. Com isso, temos um terreno fértil para a extrema-direita, que vai se apropriar instrumentalmente da pauta trabalhista, prometendo ironicamente dignidade, como pode ser visto claramente nos discursos de Trump, Bolsonaro e Le Pen, dentre outros.

Por fim, no plano da cultura, encontramos na obra de Richard Sennett (2006) uma importante análise. O principal aspecto de sua percepção sobre o novo capitalismo flexível é exatamente o que ele vai chamar de “corrosão do caráter”10. Com isso, o autor procura descrever o tipo humano produzido e exigido pelo novo capitalismo, o qual precisa ser flexível em todos os sentidos, não se apegando a nenhum laço duradouro, de modo a poder aproveitar todas as chances que o mercado oferece. Trata-se nada menos do que um tipo humano ultra-meritocrático, ou seja, um novo self made man em sua versão mais acabada, ultra individualista e desapegado de qualquer laço de lealdade, fidelidade e autoridade. Esta cultura prática do capitalismo, produzida pelas grandes corporações, vai se espraiar para todas as esferas da vida social e com isso produzir um novo indivíduo blasé e resignado, preocupado apenas com a construção de sua trajetória pessoal e indiferente à indignidade alheia.

O que temos com isso? Para os vencedores do novo capitalismo flexível e indigno, o sistema oferece a possibilidade de melhora constante da carreira, realização pessoal, prestígio e, em uma palavra, felicidade. Esta promessa, entretanto, é quase sempre frustrada, como podemos ver em trágicas históricas de bilionários e celebridades cuja falta de sentido existencial coloca em questão todas as metas de autenticidade prometidas pelo novo capitalismo11. Por outro lado, para os derrotados, o sistema oferece frustração, humilhação, culpa, autopunição e, obviamente, insegurança material, ou seja, em uma palavra, indignidade. Seria possível impedir a ascensão da extrema-direita, com todas as suas falsas promessas, seu cinismo e oportunismo, em um cenário tão trágico como esse? A partir dos relatos empíricos que temos de vários países do mundo neste exato momento, a resposta é um trágico não. Este é o mundo da vida real de milhões de pessoas, produzido pelo capitalismo indigno, traduzido na revolta e indignação que alimenta a extrema direita.

Autor:

Professor de teoria sociológica da UFF-Campos e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UENF. Bolsista de produtividade do CNPq. Jovem Cientista do Nosso Estado, FAPERJ. Professor visitante na Friedrich-Schiller Universität Jena, Alemanha (2022).

Bibliografia

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1 Faço aqui uma adaptação do conhecido conceito de “ralé” de Jessé Souza (2009), para pensar a realidade do capitalismo global contemporâneo.

2 As obras de autores como Richard Sennett, Robert Castel e Klaus Dörre, dentre outros, sobre seus respectivos países, confirmam nitidamente a validade desta constatação.

3 No caso brasileiro, por exemplo, onde a desigualdade material entre as classes é enorme, o desrespeito, a intolerância, a indiferença e consequentemente a tensão social como um todo é visivelmente maior do que em países como a Alemanha, no qual a desigualdade entre as classes, ainda que esteja em crescimento, é visivelmente menor do que no Brasil.

4 Um debate mais recente, neste ponto, vai se remeter ao suposto fim da globalização e ao fracaso do neoliberalismo, como pano de fundo económico e político para o acirramento dos conflitos e contradições atuais.

5 Neste contexto, Ruy Braga vai contestar a tese do “ódio branco”, em seu recente livro “A angustia do precariado” (2023), mostrando que em contextos de precariedade pode haver o aumento da solidariedade e até movimentos antirracistas nos ambientes da classe trabalhadora.

6 Neste sentido, uma crítica séria e distanciada sobre o lulismo e o seu fracasso foi feita por André Singer (2018). Para ele, especialmente no governo Dilma Rousseff, houve uma tentativa de construção de um pacto desenvolvimentista e rooseveltiano, tendo o mesmo fracassado diante de forças políticas contrárias ao governo, que culminaram no processo de Impeachment da presidente. Outra crítica importante à chamada “hegemonia lulista” foi feita por Ruy Braga (2012) em seu provocativo livro “A política do precariado”.

7 Neste contexto, é extremamente importante comprender as manifestações de 2013 no Brasil. Para tanto, um excelente livro é o de Elisio Estanque, “Classe média e lutas sociais” (Unicamp, 2015), no qual o autor problematiza o papel da classe média neste cenário e faz uma interessante análise sobre a “blindagem” do sistema político.

8 Para uma análise sistemática sobre o golpe de Estado sofrido por Dilma Rousseff em 2016, ver o livro “A Radiografia do Golpe”, de Jessé Souza (2016).

9 Desenvolvi esta análise no E-Book “A ficção meritocrática: executivos brasileiros e o novo capitalismo” (Maciel, 2022), fruto de pesquisa coletiva que venho realizando há alguns anos com executivos no estado do Rio de Janeiro.

10 Este conceito do autor se afina de maneira muito interessante com a ideia clássica de caráter social, desenvolvida por Erich Fromm (1970) em seu tempo, de modo a tematizar o tipo de pessoa comum predominante em uma determinada época. O ponto em comum é que Fromm percebeu uma profunda conexão entre os imperativos da cultura capitalista e os sentimentos autoritários, o que podemos perceber também em nosso tempo. Desenvolvi uma análise sobre a obra de Fromm, neste sentido, no artigo “A patologia da normalidade: Erich Fromm e a crítica da cultura capitalista” (Sociologias, UFRGS, 2020).

11 Desenvolvi uma análise nesta direção, a partir da ideia de “reconhecimento fake”, no artigo “Reconhecimento e desigualdade: da ética da autenticidade à cultura do novo capitalismo” (Ciências Sociais Unisinos, 2017).

quinta-feira, 4 de abril de 2024

 

A participação que falta ao governo Lula

A democracia está em crise. Contra o individualismo neoliberal, novos mecanismos de cidadania coletiva são necessários e urgentes. Um deles: oferecer à população moeda educativa a ser investida, por meio de assembleias, em ações comunitárias

Foto: Upslon/Creative Commons
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Título original: Por uma participação ampla, integral e integrada

Esse texto procura chamar a atenção para alguns pontos recentes do debate publico e sua incidência sobre o atual quadro da participação no país. Comenta também sobre o seminário acontecido na Secretaria Nacional de Participação Social, entre junho e julho desse ano, onde se procurou explorar caminhos para uma participação popular ampla, ao alcance de todos. Relata, ainda, uma proposta apresentada nesta ocasião pelos autores desse texto. O intento desse relato é permitir uma discussão mais ampla, além daquela ocorrida durante o seminário. Ainda que situado em um contexto novo, de emergência da extrema direita e também de novas tecnologias, esse debate se inscreve numa controvérsia antiga, que versa sobre a centralidade do protagonismo popular na politica. Tema esse que se renova pela necessidade de ruptura de um modelo vigente de se produzir política frente a situações complexas, dotadas de elevado grau de incerteza, como as que vivemos nos tempos atuais.

A participação entre o avanço identitário e a emancipação popular

Em teoria, o sistema democrático brasileiro tem um bom desenho. O legislativo representa os territórios e a participação realiza o seu controle social. Na prática, contudo, o legislativo tem se mostrado hegemônico e o país vem flertando, e não é de hoje, com a democracia iliberal. Fortalecer a democracia nesse contexto implica em fortalecermos a participação.

A força da participação brasileira pode ser sentida nas conferencias nacionais e nos números impressionantes do Plano Plurianual (PPA) participativo, dos maiores do mundoi. Ainda assim, a impressão que se tem é que esse movimento não penetrou no âmago da sociedade. Esse paradoxo não é só brasileiro. A pergunta que fica é: a participação hoje tem expressão suficiente para sustentar a democracia e conter o conservadorismo que ainda assola o paísii? Tem-se a impressão de que, passado quase um ano, a vontade popular ainda não tem lugar no governo Lula. Um olhar atento mostra, contudo, que lugar tem, e de honra.

Pautas identitárias estão presentes na estrutura de governo e procuram uma parcela do seu orçamento e do seu poder. E é evidente que essa presença influencia a agenda publica e sua execução. Essas pautas fazem parte de agendas por direitos e disputam, tanto entre si, quanto com as demais agendas de governo. Causas populares integradoras, como o Fome Zero e o Bolsa Família, que possuem alcance transversal, ainda existem, mas não são mais novidade e tampouco empolgam da mesma maneira. Apesar de seu peso inquestionável, perderam o viço e foram incorporadas à real politik do presidencialismo de coalizão. Contemplam ainda, contudo, forte lastro institucional e operacional. São joias da coroa da nossa democracia.

É fato que é a elite do povo que tem lugar no atual governo (todo governo é uma elite). Era de se esperar que essa elite operasse como uma correia de transmissão conectando o governo a suas bases. Contudo, isso ainda não aconteceu. Ou melhor, se aconteceu, não demonstrou, pelo menos até agora, ter a força que se esperaria. Uma possível hipótese para explicar isso é que a presença popular no governo hoje representa um aglutinado de interesses, antes de mais nada identitários do que populares, amplo senso.

Esse modo de fazer politica tem uma razão de ser. Cada agenda identitária é um foco de resistência e uma clivagem. São nesses lugares que as memórias da opressão perdem invisibilidade e a história é reescrita. E são nesses lugares que a superação dessa opressão acontece, pelo avanço de direitos. E isso é fundamental e inegociável para a democracia. São outras joias da nossa coroa.

Não vimos até agora, contudo, pelo menos não dentro do governo, a formação de uma agenda aglutinadora, ampla, e capaz de unificar e mobilizar o campo popular como um todo. E assim, o povo tem mostrado sua voz como pode, por meio da representação legislativa, com todas as mazelas que isso implica no contexto de um presidencialismo de coalizão.

Em 2016 não foi muito diferente. O governo que promoveu a maior participação da história da democracia brasileira, quiçá do mundo na época, sofreu um golpe legislativo. Participação para garantir o avanço de direitos de parcelas da sociedade parece ser, portanto, diferente de mobilização de base para emancipação popular, amplo senso. Daí a necessidade de pensarmos uma participação que possa desempenhar esses dois papéis. Grosso modo, essa foi a pauta apresentada pelos dirigentes da SNPS para a construção do seminário realizado em junho e julho desse anoiii.

No decorrer do seminário, alguns pontos importantes foram aparecendo, não necessariamente na ordem aqui exposta. O primeiro é que povo do qual estamos falando inclui as classes D e E. Ou seja, inclui a parcela da sociedade que elegeu o atual presidente e salvou o país de um espetacular naufrágio politico. Como já publicado nessa colunaiv, Pochmann aponta que de 2015 para cá essa parcela cresceu, e muito. A quantidade de miseráveis dobrou e a de pobres e miseráveis, juntos, recebeu um incremento de 40%. Isso configura não só um retrocesso de bem-estar social como também uma inversão abrupta de tendência. E como aponta Aldaiza Spozatti no mesmo seminário, a interrupção desse percurso de deterioração democrática e de aprofundamento de cidadania sub-normal só é possível se estabelecermos contato com essa população. E complementa, esse grupo, que configura os “beneficiários da renda cidadã”, a despeito da determinação legalv, não tem de fato qualquer possibilidade de participação nas politicas publicas, a não ser nos períodos eleitorais.

Mas como dar representatividade e expressão a um estrato que reúne, genericamente, em uma única categoria, 1 em cada 4 adultos da sociedade brasileira? E por que a participação, hoje em curso, não atinge essa população? O Professor Wilson Gomes, no seminário, desenha uma hipótese. Lembra com humor as idiossincrasias da participação presencial e comenta sem saudades de dinâmicas participativas extraordinariamente longas, que desafiam a resistência dos cidadãos mais aguerridos. Corretamente nos faz perceber que essas dinâmicas, ainda que de valor politico inquestionável, não apresentam apelo para o campo popular e, menos ainda, para o publico jovem ou para o público iniciante na politica. E desafia: os recursos utilizados para mobilizar a população no governo anterior não poderiam ser utilizados para mobilizar a população em favor desse governo? Não seria o caso de integrar a participação a uma politica efetiva de comunicação? E deu como exemplo a mobilização de idosos e ativistas diletantes que, não só acamparam defronte aos quartéis por semanas a fio, como, foram a Brasília invadir os três poderes em 8 de janeiro desse ano.

Sedutora como possa parecer, convenhamos, essa argumentação ainda é frágil: a estratégia empregada pelo governo anterior é de adesão, e não de participação. E participação pressupões não só adesão, mas também reflexão, debate, representação (organização), e tomada de partido. É, portanto, diferente e mais complexo do que mobilizar uma massa para aderir a uma agenda pronta.

Ademais, o pressuposto de que o grosso da população está “conectada”, também é discutível. Pode estar conectada, mas que conexão é essa? Qual é a qualidade da interação e de organização comunitária que essa conexão permite? Reduzir a participação social popular a grupos de whatsaap e mídias sociais é uma estratégia que adapta a participação a expedientes de controle da circulação de conteúdos ideológicos. São os mesmos expedientes utilizados pelo capitalismo de vigilânciavi. O emprego da mídia e da tecnologia é essencial para o engajamento de massa, mas longe de ser o suficiente para promover a participação. Participação envolve o reconhecimento de diferenças, a construção de convergências, a negociação de coalizões, e ainda o elenco de prioridades coletivas. E isso tudo de modo inclusivo, não importa a tecnologia.

Existem, portanto, dois caminhos possíveis para serem percorridos por este governo, não excludentes: o caminho da adesão popular a programas desenhados pelo governo, percorrido com a participação de grupos próximos, e o caminho da ação politica de base e de construção de um movimento participativo nacional, a exemplo das conferências.

A primeira opção descansa na metodologia do Orçamento Participativo (OP) e no uso de recursos digitais. O perigo reside justamente na agenda ser definida nas franjas das sedes dos governos, distante das populações e das suas reais necessidades. A segunda implica em realizar um pacto com a educação formativa e mobilizar a base de servidores do Estado para escutar e mobilizar as populações, no próprio território. Não são palavras nossas, mas de Frei Bettovii.

O desafio, portanto, parece ser ajustar o paradigma freireano à nova realidade social e tecnológica do país, e para tal, é preciso ir além do OP. Isso pois o OP é um espaço que coleta aportes de participação conjuntamente para todo o governo, e o que precisamos é que todas as áreas de governo sejam, em si, participativas e integradas no seu trato com o beneficiário na ponta, i.e., um meio vivo e humano de atenção permanente na ponta, subsidiando cada área de governo. Hoje, a participação, como é realizada, está restrita a um expediente paralelo, com um fim em si próprio. São espaços de disputa politica onde atuam representações do povo, ou melhor, sua elite. Sim, participação politica não deixa de ser isso, e isso é fundamental, mas não pode ser só isso, é preciso ir além.

A distância para com o povo existe, portanto, e está se ampliando. Bruno Manso, em seu novo livro Fé e o Fuzil, aponta que os partidos de esquerda perderam o toque no contato com o povo e que, frente a isso, o povo se organizouviii. Preto Zezé, em debate sobre esse assunto com Manso, endossa: a favela é autodidata, tem identidade própria e vem se organizando para construir uma perspectiva de vida melhor, não importa o partido no poder. E conta que montou uma Frente Parlamentar das Favelas “com partido de tudo o quanto é lado”. Uma agenda ampla e popular já existe e tem forma, portanto, a despeito do reconhecimento do governo. E ela envolve “o povo aprender a ler, fazer conta e administrar seus próprios interesses e empreendimentos”, conta o presidente da Central Única das Favelas (CUFA)1.

Oras, mas isso não seria Paulo Freire ministrado pelas próprias comunidades? Infelizmente, não. No esteio de um aprendizado autodidata e da ausência do Estado, ecos liberalizantes passaram a ressoar pelas comunidades. Discursos nascidos da atomização individual, da miséria e do consumo massivo de mídia, uma crença na informalidade, na parcialidade do sistema de justiça e na força do mercado que acabou por ser incorporada pelo mundo crime e pelo do pentecostalismo, registra Manso.

Isso quer dizer que o Prof. Wilson Gomes tem razão, há de fato uma lacuna comunicacional do Estado no sentido de oferecer e criar uma perspectiva democrática de vida para o campo popular. E Frei Betto vai mais longe, essa lacuna corresponde a um vácuo de autoridade formativa. Mesmo nesse vácuo, a comunicação entre as pessoas persiste. E quando isso acontece, o conteúdo circulante hegemônico se encarrega de formar o ideário popular, dando lugar para a emergência novas autoridades e valores, mostra Manso. É preciso, portanto, que o Estado restaure o campo da comunicação popular e junto com ele, restaure sua autoridade educacional e formativa sobre o território. Para isso, contanto, é preciso um método, e foi isso que ousamos propor no seminário da SNPS e que publicamos aqui para ser pensado coletivamente.

Por uma participação ampla, integral e integrada

A proposta apresentada no seminário da SNPS é um desdobramento de uma proposta anterior, elaborada durante os debates para a formulação do novo Orçamento Participativo Nacional, atualmente vigente. Esses debates foram realizados dentro da Rede Brasileira de Orçamento Participativo entre o fim de 2022 e meados de 2023. O texto abaixo resume e revê conceitos dessa proposta, e adiciona alguns pontos complementares, não expostos durante o seminário da SNPS.

É sabido que a politica de transferência de renda promove uma ativação da base econômica. É de conhecimento também, que a maior parcela dos empregos no Brasil é gerada por micro e pequenas empresas e que essas empresas são impactadas direta ou indiretamente por essa politica. Esse expediente, contudo, tem parecido ser insuficiente para mobilizar a oferta de infraestrutura e de serviços públicos onde essas politicas acontecem. Isso acontece porque o regime de alocação de recursos e controle do gasto é ainda politicamente centralizado (agenciamento politico).

Com isso em mente, pensamos em um desenho que pudesse alterar esse quadro e renovar o pacto da institucionalidade social, ou ampliando para o campo popular. Para conceber esse modelo levamos em conta três metodologias, a de painel popular2, a metodologia de Orçamento Participativo e a de montagem das conferências nacionais dos conselhos de politicas publicas.

O Brasil reúne hoje condições únicas, não encontradas em outros países: uma sólida tradição em inovação democráticaix, um sistema bancário-tecnológico robustox e um programa de transferência de renda já estabelecido e de amplo alcance. Isso torna possível implementar no Brasil uma participação ampla, integral e integrada, i.e., acessível a todos, permeando todo o governo e interligada.

Para que isso seja possível propomos a adoção de um conceito estruturante, o de cidadania coletiva. Cidadania coletiva é a inteligência social do conjunto da sociedade, que nasce do interesse comum que nos une. É a cidadania que vemos nos mutirões, e que vimos nos movimentos populares que limparam as praias brasileiras em 2019 e que mitigaram, parcialmente, a inoperância criminosa do Estado durante a pandemia de 2020. É uma cidadania suplementar à cidadania formal, centrada no individuo. É uma cidadania, ambicionamos, que tem como foco o interesse compartilhado, o sentimento de pertencimento, a preservação ambiental e a transparência. Acreditamos que esse sentimento ainda possa existir na sociedade, e possa ser a o motor de um novo pacto social. O segredo reside em mobilizar esse sentimento.

Propomos começar estabelecendo diálogo com a parcela mais vulnerável da população, aquela que mais depende de relações de solidariedade e reciprocidade para sobreviver, as classes D e E, beneficiárias de programas de transferência de renda. Seguindo essa ideia, propomos criar um beneficio coletivo, um montante complementar ao beneficio da renda mínima. Esse novo beneficio seria distribuído mensalmente, na maneira de um valor adicional, de mesmo valor para todos, depositado pelo governo no cartão do beneficiário. Coletivo, pois, esse montante, apesar de ser disponibilizado para cada um, é um recurso comunitário e como tal, é um recurso que não poderá ser sacado, só transferido mensalmente da conta do beneficiário para uma outra conta, compartilhada, pertencente a todos beneficiários de um território ou região (territórios participativos)3.

É, portanto, um beneficio coletivo, mas que é depositado mensalmente, de forma cumulativa, pelas mãos dos próprios beneficiários em uma conta conjunta da comunidade. Esses depósitos, por serem cumulativos, criam por assim dizer uma poupança coletiva, ou ainda, um baú comunitário. Esse depósito mensal, contudo, não seria feito de maneira indiscriminada, mas feitos somente por meio de rubricas correspondentes a setores do governo, que subdividem essa conta, tais quais: i.cultura; ii. saúde; iii. educação; iv. Obras (inclui transportes); v. trabalho e renda; vi. meio ambiente; vii. direitos humanos (inclui segurança), viii. segurança alimentar e ix. assistência social. Na medida que os depósitos vão são sendo realizados, esses depósitos vão formando “fundos” setoriais de um território participativo.

Por serem coletivos, nada mais natural que a evolução do saldo geral e de cada rubrica possam ser amplamente acompanhados, seja pelos depositantes ou pela sociedade em geral. No Rio Doce fizemos algo semelhante por meio de jornais4, e funcionou. Essa é uma medida que permite que populações possam, além de consumir, acompanhar o interesse existente entre elas e investir conjuntamente (pensar no futuro), utilizando-se para tal, regras de participação igualitária – uma pessoa um voto ou, no caso, um mesmo valor de depósito.

Esse desenho propõe que o recurso do investimento social (renda mínima) possa a ser reinvestido pelas mãos dos próprios beneficiários, e direcionado à implementação de melhorias nas suas condições de vida nas regiões onde vivem e trabalham. É uma politica, portanto, de reinvestimento social, algo que carrega todo peso simbólico dessa possibilidade de escolha. É, portanto, uma moeda educativa, uma proposta que confere aspectos formativos, lúdicos, educacionais e por que não, democráticos, à participação econômica e politica.

A pergunta que se faz em seguida é, naturalmente, o que fazer com o recurso arregimentado e como priorizá-lo? Por meio da formação politico-pedagógicas e da participação social, evidentemente. Isso quer dizer que será preciso não só determinar coletivamente prioridades de desenvolvimento para o território, mas também estabelecer contato com o governo de forma organizada no intento de adquirir uma correspondência de investimento por aportes estatais de contrapartida ao montante “poupado”. Nada mais justo.

Para ser democrático, porém, esse processo de participação, massiva e igualitária, precisa ser calibrado por mecanismos que garantam a equidade. Isso implica não só submeter a massa de votação a uma gestão participativa local, como também garantir o direito de deliberação por parte de parcelas identitárias, representativas de minorias e setores de governo (conselhos de politicas publicas). Isso pois, caso contrário, invés de fortalecer o contexto democrático, esse expediente participativo acaba por fragilizá-lo, pois permite e induz a formação de ondas de populismo majoritário.

Esse acoplamento é um ponto delicado no desenho de processos participativos e, não raro, implica em tensões sociais de toda ordem. A solução que encontramos para lidar com essas tensões foi a de criar uma paridade entre o voto popular e voto representativo. Isso é, submeter o conjunto de preferências vindas do voto popular ao crivo do voto colegiado (conselhos). Um crivo que não se traduz como um direito de veto, mas em um direito de realocação de até 50% do total do beneficio anual arrecadado, na forma de uma retirada linear e proporcional de todas as rubricas, e de possibilidade de realocação desse montante conforme prioridades politicas dos conselhos.

Ciclo continuo, o passo seguinte é a adaptação da vontade expressa pelo voto popular ao novo contexto oriundo das diretrizes expressas pelos conselhos. Nossa solução para esse passo é a promoção de assembleias populares mediadas por expedientes participativos do tipo OP. Assembleias em que, não só a paridade final dos fundos é consolidada, mas em que também são formuladas propostas para cada rubrica. O desenvolvimento dessa formulação, por sua vez, pode tanto ser feita tanto por novas oficinas de OP, como por oficinas participativas promovidos pelos próprios conselhos de politicas publicas, correspondentes a cada rubrica, algo a ser decidido território a território.

Esse ciclo pode ser pensado de maneira anual ou bianual. Ao se debater a destinação de uma arrecadação de um ano, concomitantemente, ocorre a arrecadação do ano corrente, cujo saldo é objeto de deliberação no ano subsequente.

Essa arquitetura pode alcançar uma organização que possibilite diálogos em âmbito estadual e federal, a exemplo das conferencias de politicas publicas. Estamos falando, portanto, da formulação participativa de Planos de Obras, Serviços e de Atenções Sociais. Planos lastreados em montantes e propostas coletivamente arregimentadas e que os governos estaduais e federal possam reconhecer como legítimos, e corresponder com aportes de contrapartida.

Uma proposta dessa natureza implica, portanto, não só em oferecer voz, mas também organização territorial aos beneficiários de programas de transferência de renda mínima. Ainda implica em envolver e co-criar, com a rede do governo federal e seus beneficiários, um processo de emancipação tornando esses beneficiários em sujeitos políticos (educação popular). E por fim, implica em utilizar o sistema interbancário como instrumento de agregação de capital e acesso a recursos formativos para o combate a desigualdades.

No que tange à composição dos territórios participativos, cabe ainda observar que apesar das sedes municipais concentrarem o poder econômico e politico local, a demanda popular frequentemente ultrapassa esse perímetro e constitui uma mancha mais ampla, intermunicipal. Como resultado, sua representatividade fica fragmentada na escala local. Do mesmo modo, muitos serviços essenciais do território são de provimento estadual, e nesse caso, uma representação estadual implica em arregimentar diferentes representações municipais, o que também é difícil. Desse modo, o seminário propôs que considerássemos a escala metropolitana como estruturadora dos territórios participativos, por ser a que melhor permite dar expressão a sentimentos de pertencimento territorial e regional. A prof. Tania Bacelar desenvolve esse ponto na sua fala.

Diagrama 1: Sistema Integrado De Participação Social


Etapa
ProcedimentoProduto
1.Mobilização comunitária
Levantamento de setores preferenciais de desenvolvimento por voto direto
(vontade popular/crivo igualitário)
Formação político-pedagógica
Voto mensal em rubricas setoriais por beneficiários do BF
(arregimentação de capital popular, setorialmente e territorialmente priorizado)
Formação de territórios participativos
Publicação de JORNAL contendo saldos gerais e setoriais, por território e matérias registrando a luta popular por direitos




2.Crivo de conselhos (voto colegiado / crivo equitativo)Realocação de recursos entre rubricas por voto colegiado (até 50%)
(arregimentação de capital social, setorialmente e territorialmente priorizado)
Formação/consolidação de conselhos participativos
Atualização de JORNAL com saldo ajustado pelo voto colegiado




3.Formulação de planos metropolitanos (plenárias populares)Orçamento consolidado: realocação e consolidação de votos populares já levando em consideração as diretrizes oferecidas pelos conselhos
Proposição de ações para cada rubrica
Publicação de planos de obras, serviços e de atenções sociais metropolitanos




4.Formulação de planos estaduais (plenárias de representantes estaduais)Alimentação de processos de conferências estaduais e formação de conferências para setores específicos
Aglutinação de recursos em âmbito estadual
Proposição de ações em escala estadual
Publicação de planos de obras e serviços e de atenções sociais estaduais




5.Formulação de plano federal (plenárias de representantes nacionais)Alimentação de processos de conferências nacionais e formação de conferências para setores específicos
Aglutinação de recursos em âmbito nacional
Proposição de ações em escala federal
Publicação de planos de obras e serviços e de atenções sociais federal




1.Novo ciclo & Monitoramento e Avaliação (feed back positivo)Novo ciclo & Monitoramento e Avaliação (feed back positivo)Novo ciclo & Monitoramento e Avaliação (feed back positivo)

Pois bem, se considerarmos as unidades de atendimento da Caixa Econômica Federal, do Banco do Brasil e o sistema interbancário como um todo, e ainda, as unidades de referência do SUAS (com os CRAS e os Centro Pop) como portas de formação desse processo, e por fim, se considerarmos ainda o atendimento dos beneficiários do CadÚnico, estamos falando da organização de quase 100 milhões pessoas e o emprego de dezenas de milhares de servidores públicos. Isso implica em um esforço para que tanto os CRAS, como o CadÚnico, passem a ter sua área de abrangência territorializada, de modo a gerar uma linguagem comum e um diálogo interinstitucional entre eles. Expediente esse que, posteriormente, pode se estender a toda rede de beneficiários de programas sociais federais.

Muitas dessas concepções já estão presentes e foram implementadas pelo PRONAT (2003) e pelos Territórios da Cidadania (2008), politicas apresentadas por Humberto Oliveira na sua fala inaugural do seminário da SNPS. Cabe mencionar ainda que esse mesmo procedimento pode ser implementado por meio digital, ainda que isso implique em algumas adaptações ao desenho proposto acima5.

Ainda que essa proposta apresente uma “estrutura”, seu cerne é o direito conferido à população de pensar, reiteradamente, todo mês, sobre seu futuro, e como levar esse futuro a cabo, utilizando para isso meios democráticos e transparentes. É uma proposta que procura inscrever, pela ação formativa e pedagógica, uma perspectiva livre e democrática de futuro no cotidiano popular. Uma perspectiva que se renova continuamente e que, mediante implementação, só tende a crescer e se consolidar (faz parte do algoritmo da proposta).

Existe, subjacente ao “expediente” participativo proposto, portanto, debates, conversas de botequim, reuniões em escolas, praças e pontos de ônibus e nos CRAS, compondo toda uma gama de entendimentos que amparam o momento da deliberação, e que passam a existir no tecido do cotidiano fortalecendo todo o ecossistema politico.

Ainda que ambiciosa, essa proposta deseja expandir, mas não definir contornos para o campo da participação. Por acreditarmos que a participação é um processo pedagógico, antes que institucional, é da nossa percepção de que participação é algo que ultrapassa os “expedientes” acima descritos, e que se expressa a cada encontro pelo fortalecimento do bem comum, sejam esses encontros reconhecidos ou não pelo governo ou pelas instituições. Isso posto, esperamos que o texto acima possa ser enriquecido pelas mãos do coletivo de modo que passe refletir e incorporar uma gama cada vez maior de entendimentos do que seja participação, em especial, pelo crivo daqueles que mais podem se beneficiar dessa politica.

Essa proposta responde ainda a uma necessidade de ruptura de um modelo vigente de se produzir ciência (e politica) frente a situações complexas, dotadas de elevado grau de incerteza. Não são palavras nossas, mas de Pedro Jacobi (in Lavalle & Carlos, 2022, p13). Sendo assim, parafraseando Jacobi, essa proposta foi desenhada tendo em mente de que existe hoje a necessidade de que sejam tomadas decisões consensuais por parte dos mais diversos atores da sociedade quanto aquilo que convencionalmente era restrito às comunidades de pares, na lógica da ciência normal (ou da racionalidade politica). Isso implica, por sua vez, em reconhecer a necessidade urgente de democratização do conhecimento, de um lado, e, de outro, a necessidade de corresponsabilização da sociedade no que toca a necessária defesa de seus interesses em questões de elevada importância e complexidade, como o contexto das dinâmicas socioambientais. É, portanto, uma abordagem que reconhece a necessidade de debater os problemas comuns em conjunto com os diversos atores da sociedade, entendidos como comunidade ampliada de pares. Uma formulação que demanda por avanços nas fronteiras disciplinares e na promoção de trocas fertilizadoras no contexto de uma realidade cada vez mais complexa e indeterminada. Principalmente quando a população local – que tem amplo conhecimento sobre suas realidades e cujos dados científicos não conseguem alcançar – e as pessoas mais afetadas por problemas, contribuem na definição de problemas e das respostas que precisam ser objeto de politicas publicas, pois tem conhecimento pratico sobre o assunto.

Agradecimentos

Uma honra e um prazer fazer parte de um debate tão qualificado e ter a oportunidade de contribuir para a reflexão de temas tão desafiadores. Deixamos aqui nossos agradecimentos a Renato Simões e Valmor Schiochet e à equipe da Secretaria Nacional de Participação Social, aos nossos pares debatedores Humberto Martins, Tania Bacelar, Wilson Gomes e Aldaiza Sposatti, às mais de 20 secretarias de governo participantes do seminário, e aos colegas de pesquisa do NDAC CEBRAP, do Observatório das Metrópoles e da Rede Brasileira de Orçamento Participativo.


1 Interpretação livre dos autores, presentes no debate realizado no dia 21/9/2023, 19hs, na Livraria da Tarde.

2 Metodologia utilizada com sucesso para a escuta de populações atingidas pelo desastre da Samarco no estuário do Rio Doce (www.comriocommar.com.br)

3 A normatização desta proposta, assim como a definição de metodologia e objetivos da constituição dos territórios participativos, pode se dar por meio da regulamentação de ações de transferência de renda por meio de portaria ministerial ou interministerial. Uma minuta inicial pode ser encontrado em Valorização do cadastro único como instrumento de identificação e de localização dos sujeitos da gestação de uma ordem mais democrática, de Sposatti, Sanches, Leirner & Franceschinelli (2023).

4 Esse mecanismo de transparência, de acompanhamento de saldo de votações (painel popular) por meio de jornais populares foi testado e funciona como um incentivador à participação. Para mais detalhes ver: Adrian Gurza Lavalle e Euzeneia Carlos (orgs). Desastre e Desgoverno no Rio Doce Atores e instituições na governança do desastre (2022). Rio de Janeiro, Garamond.

5 A tecnologia social POP – Painel de Opinião Pública, incluindo a plataforma digital de código aberto beta PRIORIZE apresenta metodologia de agregação de dados e métrica compatíveis com o expediente acima exposto, e está disponível para implementação por meio de convênio com o Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento – CEBRAP.

i Leia sobre o PPA Participativo em https://jornalggn.com.br/gestao/protagonismo-popular-e-planejamento-participativo/

ii A onda politica conservadora radical é um fenômeno global. Importante considerar que o cenário internacional aponta que o conservadorismo radical poderá assumir poder nos próximos 2 ou 3 anos nos EUA, Canadá, Australia, França e ainda entrar na composição da coalizão politica Alemã atualmente no poder. Sobre a condição brasileira no cenário internacional e seu impacto no mundo, recomendamos https://americanaffairsjournal.org/2021/05/the-brazilianization-of-the-world/ .

iii Assista o Seminário da SNPS em https://www.youtube.com/playlist?list=PLlBrrHyBkR2CMKndSXt5BnqCRnyZ-gTuH

iv Saiba mais em https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/a-encruzilhada-da-cidadania-no-brasil-pos-pandemico/

v Art. 3o São objetivos do Programa Bolsa Família: I – combater a fome, por meio da transferência direta de renda às famílias beneficiárias; II – contribuir para a interrupção do ciclo de reprodução da pobreza entre as gerações; e III – promover o desenvolvimento e a proteção social das famílias, especialmente das crianças, dos adolescentes e dos jovens em situação de pobreza.

Parágrafo único. Os objetivos do Programa Bolsa Família serão obtidos por meio de: I – articulação entre o Programa e as ações de saúde, de educação, de assistência social e de outras áreas que atendam o público beneficiário, executadas pelos Governos federal, estaduais, municipais e distrital; II – vinculação ao Sistema Único de Assistência Social – SUAS, de que trata a Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993, permitida a utilização de sua rede de serviços socioassistenciais; III – coordenação e compartilhamento da gestão e da execução com os entes federativos que venham a aderir ao Programa, na forma estabelecida nesta Medida Provisória e em seus regulamentos; IV – participação social, por meio dos procedimentos estabelecidos nesta Medida Provisória e em seus regulamentos;

No artigo art. 12 da MP 1164/23 podemos verificar que “a execução e a gestão do Programa Bolsa Família são públicas e governamentais e ocorrerão de forma descentralizada, por meio da conjugação de esforços entre os entes federativos, observados a intersetorialidade, a participação comunitária e o controle social”.

Ora, após mais de 20 anos de experiência do Programa Bolsa Família, verifica-se que a participação dos beneficiários é praticamente nula, quando muito em poucos e raros casos de participação nos Conselhos Municipais da Assistência Social ou mais esporadicamente ainda nas Conferências da Assistência Social que ocorrem bienalmente.

vi Leia sobre Capitalismo de Vigilância em https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/origem-limites-do-capitalismo-de-vigilancia/

vii Veja o que diz Frei Betto em https://youtu.be/_M3OTDU6JTU & https://www.ihu.unisinos.br/categorias/628413-politicas-sociais-mudam-a-cabeca-do-povo-artigo-de-frei-betto

viii Ouça Bruno Manso discorrendo sobre esses tópicos em https://open.spotify.com/episode/40lyI1pon1ZPVKESR3eN2o?si=d242a4e7f8bb4ef4

ix O Brasil vem de um período de ouro de inovação da ordem democrática, que se inicia com a constituição cidadã e tem sequência com a implementação de conselhos, orçamentos participativos e uma forte cultura de governo digital, culminando com o Marco Civil da Internet e o participa.br.

x Para mais detalhes, ver Fonseca, C. E. C. D., Meirelles, F. D. S., & Diniz, E. H. (2010). Tecnologia bancária no Brasil: uma história de conquistas, uma visão de futuro. FGVRAE.