quarta-feira, 27 de março de 2024

DA BANCADA RURALISTA, ENTENDA O PERFIL DE CHIQUINHO BRAZÃO NO CONGRESSO

 

REPORTAGEM

Da bancada ruralista, entenda o perfil de Chiquinho Brazão no Congresso

Deputado com atuação pouco expressiva na Câmara, Brazão não se destaca pela apresentação de projetos

27 de março de 2024

12:37

Por Gabriel Máximo

PODER

Câmara dos Deputados Marielle Franco milícia violência

O gabinete 507 do Anexo IV da Câmara dos Deputados amanheceu trancado na segunda-feira (25). Seu titular, o deputado Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), havia sido preso pela Polícia Federal (PF) na manhã do dia anterior. Chiquinho é um dos três suspeitos de mandar matar a vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e o motorista Anderson Gomes em 14 de março de 2018. O irmão do parlamentar e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Domingos Brazão, e o ex-chefe da Polícia Civil fluminense Rivaldo Barbosa completam a lista de acusados de serem os mandantes de um crime há seis anos sem solução.

Na segunda (25), o gabinete de Chiquinho Brazão no Congresso estava de portas trancadas

O perfil de Chiquinho na Câmara

Chiquinho Brazão foi vereador do Rio de Janeiro por quase quatro mandatos, de 2005 a 2018, e foi colega de Marielle na Câmara Municipal carioca. De acordo com o deputado federal Tarcísio Motta (PSOL-RJ), que integrou o legislativo carioca de 2017 a 2023, Brazão sempre fez questão de presidir a Comissão de Assuntos Urbanos e minar a participação da esquerda. “No trato, era alguém que se você passasse por ele nunca havia algum tipo de ofensa, nunca fez nada, mas sempre ficava muito irritado quando a gente mantinha uma posição ideologicamente maior contra os projetos dele”, disse à Agência Pública.

Em 2018, seis meses depois do assassinato de Marielle, Brazão foi eleito deputado federal pelo Avante, com 25.817 votos, e reeleito em 2022, dessa vez pelo União Brasil. Na Câmara dos Deputados, tem atuação pouco expressiva. Um deputado ouvido pela Pública sob reserva afirmou que Brazão sempre foi um colega tranquilo no cotidiano da Câmara e que, embora houvesse havia algum tempo o rumor de seu envolvimento no assassinato de Marielle e Anderson, jamais poderia imaginar que ele seria capaz disso.

Nos registros de presença, consta que durante o primeiro mandato (2019-2022) Chiquinho Brazão só teve 13 ausências não justificadas, das 458 sessões deliberativas realizadas no período. Na atual legislatura, do total de 96 sessões até o momento, o deputado participou de 87.

Foi relator de apenas oito projetos de lei, sendo que nenhum deles foi aprovado até o momento. Entre eles, estão a proposta que aumenta a pena para profissionais do futebol envolvidos em manipulação de resultados e a que cria mecanismos para auxílio na compra e reconstrução de imóveis afetados por desastres naturais. O deputado não ocupou cargos importantes na Casa, tendo sido vice-líder do Avante algumas vezes em 2019 e 2020. 

Brazão não se destaca pela apresentação de projetos. Ele é mencionado como autor de 769 propostas, mas na maior parte delas o deputado está na condição de coautor. Ele é um frequente apoiador da criação de frentes parlamentares, independentemente se a proposição é de direita, como a de defesa das guardas municipais, ou de esquerda, tal qual a que sugere defender o Pantanal. A característica é típica de políticos do chamado Centrão, partidos sem coloração ideológica e que servem a diferentes governos.

Chiquinho Brazão foi colega de Marielle na Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Seis meses depois do assassinato de Marielle, Brazão foi eleito deputado federal

As propostas de Brazão 

Nos projetos dos quais Brazão é o principal autor, a maioria foi apresentada no primeiro mandato e se refere a questões econômicas ou medidas de enfrentamento das consequências da pandemia. No entanto, as propostas não se resumem a esses temas. Em 2021, o deputado apresentou um projeto de lei (PL 146/2021) para estabelecer que o poder público forneça ferramentas tecnológicas a mulheres vítimas de violência para fortalecer o combate à prática.

Outra proposta alinhada à pauta feminina é a que altera a Lei do Incentivo ao Esporte para obrigar que 50% dos recursos arrecadados com patrocínios e doações sejam destinados às modalidades femininas dos esportes. “As seleções femininas sofrem com a falta de dinheiro e de estrutura, apesar de contarem com expoentes da categoria, como a brasileira Marta, eleita tantas vezes a melhor jogadora do mundo pela Fifa. O mercado está se abrindo, mas o futebol ainda é um ambiente em que a atuação das mulheres é menos incentivada”, justifica no texto.

Da Bancada ruralista

O deputado integra, desde 2019, a poderosa Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), mais conhecida como bancada ruralista. Teve posição favorável em várias votações importantes do grupo, como o projeto de lei que flexibilizou as regras para o registro de agrotóxicos e o PL da “grilagem”, que regulariza a ocupação indevida de terras públicas, ambos aprovados durante o governo Bolsonaro (2019-2022). Na atual legislatura, ele apoiou o projeto que definiu a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. 

Em nota enviada à Pública após a prisão de Brazão, a FPA informou que decidiu expulsá-lo do grupo “diante das graves denúncias” e manifestou solidariedade às famílias das vítimas. Essa foi a segunda expulsão em razão do caso, já que no domingo (25) a executiva nacional do União Brasil aprovou por unanimidade a expulsão do deputado. 

Chiquinho Brazão era integrante da bancada ruralista

Prisão

Em 23 de março, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou a prisão preventiva de Chiquinho Brazão, concretizada na manhã seguinte pela PF e confirmada pela Primeira Turma da Corte na última segunda-feira (25). Por se tratar de um deputado federal, que tem foro privilegiado, é necessário que a Câmara confirme a manutenção da prisão. Para isso, os parlamentares precisam votar a medida em plenário, onde precisa ser aprovada por maioria absoluta, ou seja, 257 votos.

O caso foi levado para análise preliminar da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) nesta terça-feira, sob relatoria do deputado Darci de Matos (PSD-SC), que defendeu em seu parecer a manutenção da prisão. No entanto, após a leitura do relatório, os deputados Gilson Marques (Novo-SC), Fausto Pinato (PP-SP) e Roberto Duarte (Republicanos-AC) pediram vista, o que dá aos parlamentares até duas sessões para analisar o relatório. Na prática, a votação só deve ocorrer após o dia 9 de abril, já que não haverá sessões na Câmara na próxima semana em razão da janela partidária. Até lá, Chiquinho Brazão seguirá preso. 

Após o pedido de vista, o clima na reunião, que já estava tenso, piorou. Houve discussões entre parlamentares da oposição e do governo, sobretudo do PSOL, partido de Marielle Franco. O deputado Gilson Marques questionou “a pressa, o afogadilho” para decidir sobre a prisão de Brazão, ao que foi rebatido pela deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP): “São seis anos esperando por justiça, e vocês passando pano para miliciano!”. 

Presente na sessão, o advogado de Chiquinho Brazão, Cleber Lopes de Oliveira, argumentou que a decisão de Moraes ocorreu “ao arrepio da Constituição Federal”, uma vez que, segundo ele, não teria ocorrido uma prisão em flagrante, condição para que uma pessoa com foro privilegiado seja presa. Do presídio federal de Brasília, Brazão participou da sessão virtualmente. Ele disse ter uma “ótima” relação com Marielle Franco e que, apesar das divergências políticas entre eles, não vê o “elo” para ser acusado de seu assassinato. 

Domingos Brazão, seu irmão Chiquinho Brazão e Rivaldo Barbosa. Os três foram presos pelo assassinato da vereadora Marielle Franco

Rio das Pedras, milícias e os Brazão

Em delação premiada à PF, Ronnie Lessa, um dos executores confesso da morte de Mariele, indicou como motivo do crime “o fato de a vereadora Marielle Franco estar atrapalhando os interesses dos irmãos [Chiquinho e Domingos Brazão], em especial, sua atuação junto a comunidades em Jacarepaguá, em sua maioria dominadas por milícias, onde se concentra relevante parcela da base eleitoral da família Brazão”.

Nesse ponto, o relatório final PF insere os Brazão em um contexto maior de violência e dominação de território. “Neste sentido, constata-se que a interação da Família Brazão com grupos paramilitares é intensa e se destaca na Zona Oeste do Rio de Janeiro, notadamente nos bairros de Jacarepaguá, Tanque, Gardênia Azul, Rio das Pedras, Osvaldo Cruz e arredores. […] Neste sentido, observa-se que Família Brazão goza de especial influência na comunidade de Rio das Pedras, um enclave geográfico controlado por organização criminosa do tipo milícia há mais de duas décadas.”

A relação entre voto e áreas controladas por milícias no relatório incluiu duas citações a uma reportagem da Pública de 2019, que deu dimensão às atividades políticas dos Brazão. Dias antes da publicação da reportagem, em fevereiro de 2019, Domingos Brazão havia sido alvo de operação da PF para averiguar tentativas de atrapalhar a elucidação da morte de Marielle e do motorista Anderson Gomes. A apuração e os dados levantados pela Pública mostram como os irmãos Brazão ampliaram sua influência política na área, tornando-se campeões de votos nas eleições de 2010, 2012, 2014 e 2016. 

“Neste sentido, observa-se que Família BRAZÃO goza de especial influência na comunidade de Rio das Pedras, um enclave geográfico controlado por organização criminosa do tipo milícia há mais de duas décadas”, diz o relatório da PF, seguido do infográfico da Pública com os dados da votação das quatro eleições.  

Quando o inquérito da PF foi aberto, em 21 de julho de 2023, já haviam se passado cinco anos e quatro meses desde o crime. Uma investigação anterior da Polícia Civil fora “sabotada” por membros da própria corporação, segundo a PF e pelo menos três pessoas que poderiam esclarecer pontos do plano do homicídio foram assassinadas depois do crime contra Marielle.


Edição: Thiago Domenici

domingo, 24 de março de 2024

 

Indígenas na redação

Foram quase dois anos de preparação para a Agência Pública receber nesta semana uma turma de formação em jornalismo investigativo. Se valeu a pena, Tumi Matis, Puré Juma, Helena Corezomaé, Cocokaroti Metuktire, Maikson Serrão e Yolis Lión poderão dizer neste próximo domingo. De nosso lado, o aprendizado, as surpresas positivas e a fé na qualidade dos trabalhos que virão dali têm superado as expectativas.

A ideia de oferecer oficinas de formação para jornalistas e comunicadores de povos originários veio depois de 18 meses de trabalho com dez microbolsistas indígenas no moldes do programa que fazemos desde 2012 para dar oportunidade a jornalistas de realizar sua “pauta dos sonhos” – até o ano passado, foram 83 microbolsas ofertadas. Mas o programa para os indígenas começou dez anos depois, em 2022. 

Vou contar como eles entraram nessa história. Como nossa equipe produz muitas reportagens sobre a questão indígena e tem uma rede de contatos nas aldeias, em 2019 recebi um zap de um jovem da Terra Indígena Ituna/Itatá, a mais desmatada naquele primeiro ano de governo Bolsonaro, perguntando se ele poderia se inscrever em um de nossos concursos de microbolsas.

“Moro na terra indígena mais desmatada do Brasil”, escreveu, reforçando a importância de participar. “Mas não sou jornalista”, explicou.

Perguntei se ele já tinha feito alguma reportagem antes – afinal, o programa de microbolsas até então era dedicado apenas a profissionais de jornalismo. Além disso, a experiência como repórter, o risco para a segurança do profissional e a viabilidade da pauta estavam entre nossos critérios de seleção. Nos três quesitos, a proposta não se encaixava. 

Por outro lado, o pedido era tão justo que prometi pensar em um projeto específico, adequado à realidade dos comunicadores indígenas – que nem sempre têm experiência em jornalismo, correm riscos ao fazer denúncias, sobretudo se vivem no território, mas desempenham um papel informativo importante dentro de comunidades e associações. 

A diretoria da Pública abraçou o desafio com entusiasmo. Sabíamos que teríamos um aliado fundamental para elaborar esse projeto, o que o tornava mais viável: o jornalista e doutor em antropologia Spensy Pimentel, amigo de longa data e editor da primeira grande investigação socioambiental que realizamos, o “Amazônia Pública”, de 2012. 

Spensy é coordenador do curso de jornalismo da Universidade Federal do Sul da Bahia, onde o sistema de cotas facilitou o ingresso de estudantes indígenas daquela região. Também é convidado frequente dos congressos de jornalismo, em que orienta os profissionais que cobrem o tema – quase 100% não indígenas e sem conhecimento da complexidade de culturas e realidades. Uma ponte entre muitos mundos. 

Nosso amigo se empolgou de imediato, e depois de meses de trabalho, que envolveu o empenho de muita gente da Pública, conseguimos realizar o primeiro concurso de microbolsas para comunicadores indígenas, com cinco selecionados em 2022 e mais cinco premiados em 2023. Apesar das dificuldades vividas no decorrer desse período – de barreiras culturais a distâncias gigantes e ameaças no território –, quase todos os trabalhos foram publicados (um foi retirado do ar a pedido do autor, que foi ameaçado, e o outro não pôde ser concluído por dificuldades logísticas).

A partir do que aprendemos nessa experiência, decidimos avançar um passo, ou, como prefere o Spensy, recuar para uma primeira etapa, e assim aprimorar o processo de aprendizado mútuo: antes de sair para realizar as pautas, teríamos oficinas presenciais de uma semana para os seis microbolsistas selecionados – três homens e três mulheres de idades e regiões diferentes – na sede da Pública, em São Paulo. 

Ministradas por profissionais da Pública e parceiros na área do direito, da documentação audiovisual e da segurança digital, as oficinas, que começaram na segunda-feira, têm como objetivo afinar pautas e métodos antes do processo de apuração das reportagens, quando mentores e indígenas trabalharão juntos até a publicação dos trabalhos em nosso site. 

Em resumo: se as primeiras reportagens são como “gritos de socorro” de comunidades indígenas, a intenção agora é que eles se apropriem das técnicas do jornalismo investigativo para qualificar as denúncias, apontando responsáveis e cobrando o poder público assentados em bases sólidas: evidências, dados, depoimentos, documentos. 

Ainda tem muita água para rolar debaixo dessas pontes, mas o certo é que essa turma já tem nos ensinado muito sobre resistência cultural, racismo, estereótipos e outras violências e nos presenteado todos os dias com novos olhares – e uma curiosidade infinita – sobre autonomia indígena e o jornalismo como ferramenta de justiça social e conhecimento.

Também aprendemos muito sobre o valor da convivência solidária – não apenas em relação a nós, “brancos”, mas entre eles. Afinal, a mesma sala de aula reune indígenas que atuam com sucesso no mercado formal de trabalho e comunicadores que nunca pisaram em uma redação ou sequer saíram de sua região. Pois é assim que tem funcionado esse processo de aprendizado – e muito bem. 

Leio nos jornais que também nesta mesma semana, na sede do CNPq, em Brasília, aconteceu o 1o Encontro Internacional de Pesquisadores Indígenas entre Aldeias e Universidades. Além de pesquisadores indígenas de cinco países da América Latina, participaram representantes do governo federal, professores, estudantes, cientistas e personalidades como o cacique Raoni. A ideia é unir conhecimento tradicional e ciência acadêmica para encontrar respostas globais e locais para a emergência planetária dentro dos princípios da justiça climática. 

Os indígenas já romperam barreiras na universidade, na ciência, nos tribunais, no Congresso, até no Executivo. Sempre com avanço para o desenvolvimento do conhecimento e da democracia em todos esses campos. 

Está na hora de ocuparem as redações para o bem do jornalismo e de todos nós. 



Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org 

quinta-feira, 21 de março de 2024

ESTRANGEIROS CONTROLAM NO BRASIL ÁREA EQUIVALENTE A UM ALAGOAS INTEIRO

Estrangeiros controlam no Brasil área equivalente a um Alagoas inteiro

Dados do Incra mostram expressivas propriedades de grupos estrangeiros em estados de agro, garimpo e mineração fortes

20 de março de 2024

04:00

Por Caio de Freitas Paes

EMPRESAS SOCIOAMBIENTAL

agronegócio conflitos no campo garimpo mineração política

Dados inéditos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) revelam que pelo menos 2,7 milhões de hectares do solo nacional estão oficialmente registrados em nome de pessoas ou empresas estrangeiras. Ou seja, uma área do Brasil equivalente ao estado de Alagoas inteiro está sob controle de grupos do exterior, segundo o governo federal.

O recente levantamento do Incra contradiz uma das principais narrativas da extrema direita – a que sugere a tomada da maior floresta tropical do mundo por grupos do exterior. Dos cinco estados com mais terras sob controle estrangeiro no Brasil, apenas um, Mato Grosso, tem uma porção da Amazônia Legal. Os dez estados com mais terras registradas por pessoas e empresas do exterior respondem por 80% do total dessas terras e têm forte influência do agronegócio, garimpo e mineração em larga escala.

POR QUE ISSO IMPORTA?

Investimentos internacionais em terras por vezes têm agravado conflitos agrários e inflacionado o mercado fundiário

Especialistas indicam que falta de fiscalização camufla realidade de área bem maior sob posse de estrangeiros

As informações foram extraídas do Sistema Nacional de Cadastro Rural no último dia 30 de janeiro. O órgão excluiu dados desatualizados de imóveis com áreas inconsistentes ou iguais a zero e de detentores de terras com CPF inválido, que constem na base de dados da Receita Federal como brasileiros ou sem nacionalidade informada. No caso de empresas, apenas imóveis com áreas inconsistentes ou iguais a zero foram excluídos.

Desde a crise financeira de 2007 o mercado global de terras está superaquecido, atraindo multinacionais e grandes investidores do setor financeiro em busca de grandes áreas em países em desenvolvimento, como o Brasil. Na prática, esse cenário agrava os conflitos agrários e aumenta os preços das terras, estimulando grilagens e incentivando o desmatamento de áreas nativas para a abertura de novas fazendas – como a Agência Pública tem denunciado há anos.

Para especialistas ouvidos pela Pública, não é exagero dizer que o total de terras sob controle estrangeiro no Brasil seja maior do que os 2,7 milhões de hectares já identificados pelo Incra.

“Acredito que este valor está subestimado por questões de ordem técnica, como incongruências no cadastro das informações nos sistemas fundiários do governo, e pelo fato do Incra lidar com a ideia de propriedade estrangeira segundo a legislação atual – que nem sempre inclui companhias registradas no Brasil, mas controladas, direta ou indiretamente, por sócios no exterior”, disse Sérgio Pereira Leite, professor titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Com base em dados oficiais, o grupo de pesquisa da UFRRJ produziu um levantamento preliminar, apresentado em setembro de 2023, indicando que empresas controlariam pelo menos 9,1 milhões de hectares do território brasileiro até 2021 – área maior que a dos estados de Espírito Santo e Rio de Janeiro somados.

“Considerando nossas pesquisas, eu diria que os dados [do Incra] estão ‘tímidos’, porque o controle sobre terras pode ser direto – com títulos de propriedade e escrituras –, mas também indireto, por meio de empresas nacionais de fachada, controladas por fundos imobiliários, holdings e sócios estrangeiros que definem o rumo dos investimentos e o uso dessas terras. Identificamos pelo menos 245 empresas controladas direta ou indiretamente por sócios estrangeiros – e 42 delas estão focadas especificamente no plantio e comércio de soja”, disse o professor.

Não há dados consolidados a dispor do Incra sobre companhias sediadas no Brasil, mas controladas por sócios estrangeiros. Por isso, não há estimativa oficial das terras registradas em nome de empresas desse tipo.

17,14% das empresas estrangeiras estão focadas especificamente no plantio e comércio de soja, segundo Sérgio Pereira Leite

“Há pontos de similaridade entre nossos dados e os do Incra, apontando para a soja no país, como no oeste da Bahia, em Goiás e Mato Grosso. Em São Paulo, temos o setor canavieiro e, em Minas Gerais, há regiões visadas por mineradoras, além de regiões do país na mira de companhias de energia renovável – que dependem de muitas terras para implantação de parques eólicos, por exemplo”, avaliou Sérgio Leite.

A Flourish table

Apurações sobre aquisições se arrastam há oito anos

Se existem fazendas registradas por empresas sediadas no Brasil controladas por sócios no exterior, elas podem ser consideradas terras sob o domínio de estrangeiros pelo governo. Atualmente, o Incra investiga casos desse tipo – que, se confirmados, podem até resultar no cancelamento dos registros, com retorno dos títulos de terra aos antigos proprietários.

Segundo apurado pela Pública, o Incra tem cinco processos abertos para apurar supostas compras ilegais do tipo. Todos os processos foram instaurados entre maio e julho de 2016, mesma época do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). 

Um dos casos sem desfecho foi revelado pela Pública ainda em 2021: as rumorosas compras da Brasilagro, que vende suas ações em bolsas de valores no Brasil e nos Estados Unidos. A principal acionista da empresa é a ruralista argentina Cresud, e diversos fundos de aposentadoria dos EUA são sócios com poder de voto nas assembleias gerais. 

A Brasilagro tem negócios milionários no chamado Matopiba, com estimativa de controle sobre uma área de mais de 300 mil hectares de terras – até 2016, ano de abertura do caso no Incra. À época, a empresa alegou à Pública que era “uma empresa brasileira com ações listadas no segmento do Novo Mercado da B3”, e “que todas as operações e transações realizadas pela companhia estão em regularidade com a legislação aplicável”.

Indefinição jurídica

Os processos do Incra apuram compras realizadas após agosto de 2010, em especial operações envolvendo empresas sediadas no país, mas supostamente controladas por sócios do exterior – sendo, assim, equiparadas a companhias estrangeiras.

O Incra usa essa data como marco para investigar possíveis compras ilegais devido a um parecer emitido pela Advocacia-Geral da União no dia 19 daquele mês, no qual foi determinado que vendas de grandes áreas para grupos estrangeiros (ou equiparados a estrangeiros) só poderiam ocorrer com aval do Congresso ou do Incra.

A prática é regulada por uma lei criada na ditadura militar, que limita compras e arrendamentos a estrangeiros para áreas de até 50 módulos fiscais. O Incra define a medida de módulo fiscal – que varia entre 5 e 110 hectares – para cada município brasileiro.

A mesma lei também determina que nenhum município pode ter mais do que 25% de seu território sob controle de pessoas ou empresas estrangeiras, nem que oriundos de um mesmo país detenham mais que 10% da área de um mesmo município.

Um projeto de lei que pode mudar as regras atuais até avançou durante o governo Bolsonaro, mas está parado no Congresso. Proposta pelo senador Irajá de Abreu (PSD-TO), a iniciativa teve a relatoria do atual presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que emitiu um parecer favorável a ela.

O plenário do Senado aprovou o projeto em 2020, enviando-o à Câmara dos Deputados – onde aguarda, desde 2021, pela formação de uma comissão especial para a análise da matéria, dada a sua complexidade.

O projeto, de autoria do senador Irajá (à esq.), teve parecer favorável com emendas do relator, senador Rodrigo Pacheco

Compras de terras por estrangeiros também moveram discussões no Supremo Tribunal Federal (STF). No fim de abril de 2023, o ministro André Mendonça suspendeu, por meio de liminar, todos os processos judiciais em trâmite sobre compras de terras por empresas brasileiras com a maioria societária de pessoas e companhias do exterior – ou seja, empresas equiparadas a estrangeiras. Menos de duas semanas após a decisão, o caso foi julgado por todos os ministros, que acabaram derrubando a liminar e autorizando a retomada dos processos na Justiça.

A decisão, vale dizer, respinga em outro caso já relatado pela Pública: o das parcerias internacionais do grupo Cosan, do paulista Rubens Ometto. A companhia aliou-se ao principal fundo de aposentadoria de professores dos Estados Unidos, o TIAA-Cref, em compras de fazendas no Matopiba, envolvendo-se até com suspeitos de grilagem.

Fiscalização é possível, mas exige adequações

Para o professor Sérgio Leite, da UFRRJ, para ter controle e dimensão real da propriedade de terras por estrangeiros, seria necessário refinar a metodologia de cadastros do Incra. “Sem contar mudanças em outros campos, como nas perguntas do Censo Agropecuário, do IBGE, inserindo questões sobre a propriedade do estabelecimento rural ser ou não estrangeira – algo que poderia ajudar”, avalia.

Leite destacou ainda a importância de integração dos dados fundiários com informações financeiras, citando o Fundo de Investimento do Agronegócio (FIAgro) – que permite a ruralistas acesso a créditos do mercado financeiro para a expansão de seu agronegócio, incluindo compras de novas fazendas.

Já outro especialista, um servidor público com décadas de experiência no tema, que pediu para não ser identificado, afirmou à Pública que seria possível fiscalizar melhor as vendas de terras a estrangeiros cruzando dados fundiários e fiscais, “muito por conta do crescente papel do mercado financeiro na agricultura, com o aumento de recursos captados nas bolsas de valores”. 

“Temos duas ‘frentes’ neste debate: o processo de aquisição de terras por pessoas físicas do exterior, por relações para além da produção – como alguém que compra uma chácara ou casa de praia, por exemplo – e as compras de terras por empresas internacionalizadas – como vemos cada vez mais na agricultura, no segmento de papel e celulose, de produção de energia”, afirmou.

Como exemplo, o servidor mencionou iniciativas encampadas pela área econômica do governo, como o Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (Sinter). Lançado em 2022 pela Receita Federal, o programa integra “dados cadastrais, geoespaciais, ambientais, fiscais e jurídicos, relativos aos imóveis urbanos e rurais, produzidos por órgãos públicos e cartórios” no Brasil.

Edição: Ed Wanderley

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Caio de Freitas Paes

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segunda-feira, 11 de março de 2024

 

Uma notícia sobre Gaza que não deve ser ignorada 


“Flood the zone with shit” ou “ou inundar a opinião pública de merda” é um dos mantras de Steve Bannon, um dos principais gurus da extrema direita populista global. Steve foi um dos que percebeu que, na era digital em que produzir conteúdo é tão barato, em vez de esconder a verdade, a melhor maneira de manipular a opinião pública é oferecer tanta, mais tanta informação, que o ruído causado pela enxurrada impede que a maioria das pessoas entendam o que de fato é importante.   
A estratégia é apenas uma reedição de um clássico das Relações Públicas, a criação de “cortinas de fumaça” destinadas a desviar a atenção de determinada notícia que, se veiculada, causaria enorme prejuízo; vale para empresas, políticos, organizações ou países.   

Guardadas as devidas proporções, também assistimos a essa enxurrada de informações vindas dos dois fronts de guerra que se desenrolam atualmente, na Ucrânia e em Israel.  

A arte da guerra sempre dependeu também da disputa narrativa, e também se vale do fato de que inundar o debate público de informações desencontradas é, hoje, extremamente barato. 

Na cacofonia do excesso de informações digitais, lances importantes sobre o desenrolar dessas fronteiras digitais acabam se perdendo. Chamo a atenção para um deles. 

Na semana passada, a agência de notícias Reuters publicou uma matéria de extrema importância para quem segue o teatro da guerra de Israel. Um relatório feito pela agência da ONU encarregada de atender os refugiados em Gaza, a UNRWA, descreveu que funcionários da agência foram detidos por forças israelenses e sofreram torturas, como espancamentos, “waterboarding” – forma de tortura que simula afogamento –  e ameaças aos seus familiares, para que confessassem terem ligações com o Hamas. 

“Os membros da equipe da agência foram sujeitos a ameaças e coerção pelas autoridades israelenses durante a detenção e pressionados a fazer declarações falsas contra a agência, incluindo que a agência tem afiliações com o Hamas e que membros da equipe da UNRWA participaram das atrocidades de 7 de outubro de 2023”, diz o relatório.

A matéria da Reuters avisa que a UNRWA  “negou-se” a dar as transcrições das entrevistas para serem revisadas pelo jornalista – um pedido que em si só demonstra cabalmente como tudo que vem da Palestina é tido como mentira a priori.

Eu não vi o tal relatório, e menos ainda as transcrições, e acho que ele deve ser lido com ceticismo, assim como as alegações de Israel. Mas chamo a atenção a ele, justamente porque o ceticismo, nesta guerra, tem dois pesos e duas medidas. 

Toda a história envolvendo as acusações contra a agência da ONU tem sido utilizada como uma narrativa militarizada a favor de Israel. Uma narrativa que, como veremos, tem sido distribuída em momentos estratégicos em que o Estado israelense quer desviar a atenção.  

Lembremos. A denúncia de Israel a respeito de doze funcionários da ONU que teriam participado do atentado terrorista do ano passado passou a ser ventilada no mesmo dia em que o Tribunal Penal Internacional em Haia emitiu uma decisão provisória sobre acusações de genocídio feitas pela África do Sul. O Tribunal ordenou que Israel agisse para evitar a prática de genocídio pelos seus soldados e que permitisse a entrada de ajuda humanitária. 

O ministro de Defesa de Israel, Yoav Gallant, passou a aparecer em canais e dar declarações a jornais, despejando a conta-gotas detalhes das acusações. Falou à Fox News no dia 10 de fevereiro; no dia 15, o seu ministério publicou os nomes dos doze acusados a toda a imprensa, alimentando um ciclo noticioso.   

Ao receber a denúncia, o comissário-geral da UNRWA , Philippe Lazzarini, imediatamente demitiu os funcionários e iniciou uma investigação sobre o caso. Isso não impediu dezesseis países de suspenderem o financiamento para a agência.

Na guerra informacional, timing é tudo.  
   

A notícia tornou-se o escândalo da vez e “flodou” o noticiário. 

A agência da ONU chegou a publicar um esclarecimento que ninguém leu sobre como verifica se seus funcionários têm qualquer ligação com facções políticas:

Assim como qualquer outra organização da ONU, a UNRWA realiza verificações detalhadas de referências para qualquer funcionário que a Agência recrute. 

Além disso, a UNRWA compartilha os nomes, números de funcionários e funções de todos os membros da equipe a cada ano nas cinco áreas de operações com as autoridades locais (Líbano, Jordânia, Síria e Autoridade Palestina) e, para a Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, e Gaza, com Israel como potência ocupante. Isso significa que, a todo momento, os estados anfitriões e Israel estão totalmente informados e cientes dos detalhes de todos os membros da equipe que trabalham para a UNRWA. Outros Estados-Membros da ONU também recebem essas listas mediante solicitação.

Os nomes das doze pessoas contra as quais foram feitas alegações foram compartilhados várias vezes com Israel e outros Estados-Membros. Até janeiro de 2024, a UNRWA não havia recebido nenhuma indicação das autoridades relevantes sobre qualquer envolvimento de seus funcionários em grupos armados ou militantes. Além disso, a Agência verifica seus funcionários semestralmente em relação à Lista Consolidada de Sanções do Conselho de Segurança da ONU.


Mas de que se tratam tais acusações? Com base no dossiê entregue por Israel ao governo americano, o New York Times, escreveu uma reveladora reportagem

Segundo ela, dos doze acusados, sete davam aulas em escolas da UNRWA em Gaza, ensinando disciplinas como árabe e matemática. Outros dois trabalharam nas escolas, na área administrativa. 

A acusação mais detalhada, segundo o New York Times, diz respeito a um conselheiro escolar que é acusado de ter coordenado com o próprio filho para sequestrar uma israelense. 

No entanto, a reportagem afirma que o jornal só conseguiu corroborar a identidade de um dos acusados. 

A UNRWA é uma das maiores empregadoras em Gaza, com mais de 13 mil funcionários, em sua maioria palestinos. É, também, a agência que consistentemente denuncia, com dados confiáveis, a situação de calamidade em Gaza. Seu último boletim relata que 1,7 milhão de pessoas, mais de 75% da população de Gaza, tiveram que sair de suas casas. 162 funcionários da agência já morreram devido aos bombardeios. 

Mais de um mês depois, a dúvida sobre a veracidade daquelas acusações permanece.   

Agora, o Canadá e a Suécia anunciaram que retomarão o financiamento à agência. A retomada também recebeu pouca atenção na imprensa.  

Nos Estados Unidos, por sua vez, país que era o maior doador da agência, será difícil voltar atrás em um ambiente tão polarizado. Um exemplo disso é o fato de que o comitê de assuntos internacionais da Câmara dos Deputados votou por aprovar uma nova lei que proibiria permanentemente qualquer financiamento à UNRWA. 

Ou seja: mesmo que se descubra que as acusações eram infundadas – e, quem sabe, o relatório da ONU estava certo – o dano está feito.

Seja qual for a verdade.  

 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública
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BRASIL É DENUNCIADO NA ONU POR CASO DE TORTURA EM PRISÃO FEMININA DE MINAS GERAIS

 Brasil é denunciado na ONU por caso de tortura em prisão feminina de Minas Gerais

Agência Pública teve acesso exclusivo a relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos, na Suíça

11 de março de 2024

06:00

Por Leandro Aguiar

INTERNACIONAL JUSTIÇA

direitos humanos sistema prisional tortura

Soraia Livramento, 32 anos, é uma mulher negra de baixa renda nascida em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Convivendo há anos com a esquizofrenia e o abuso de drogas, ela vivia nas ruas, onde se envolveu numa briga para defender o ex-namorado, esfaqueando o agressor. Foi presa por homicídio em janeiro de 2023, com dois meses de gravidez, e encaminhada ao Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, também na RMBH.

Soraia teria sido separada do filho recém-nascido contra a própria vontade, e  enviada à penitenciária Belo Horizonte 1, onde teria apanhado de agentes prisionais e sofrido uma série de violências. O caso dela foi denunciado à ONU, na 55a Sessão do Conselho de Direitos Humanos em Genebra, Suíça, no 8 de março, Dia Internacional da Mulher.

A Agência Pública teve acesso à denúncia com exclusividade. Segundo a advogada mineira Isabela Corby, à frente do caso, o relato de Soraia “é um paradigma do que acontece nas prisões brasileiras, constituindo não uma exceção, mas quase uma regra”.

“Violações sexuais, as chamadas faltas disciplinares e as transferências de prisões são os instrumentos para silenciar as presas que denunciam torturas. O Ministério Público e o Poder Judiciário brasileiros guardam silêncio ante essas denúncias”, discursou Corby, sob os olhares da comunidade internacional reunida no Conselho de Direitos Humanos.

Corby é uma das fundadoras da Assessoria Popular Maria Felipa (APMF), dedicada, entre outras coisas, a combater a tortura nas prisões brasileiras. Ela chamou atenção para os casos de suicídio envolvendo denunciantes de tortura com histórico de sofrimento mental – como aconteceu com Soraia, que chegou a tentar suicídio após ter sido separada do filho.

Em 40 páginas, a denúncia apresentada à ONU detalha cada etapa da trajetória de Soraia no sistema carcerário, traçando as relações entre a sua condição e “um padrão estadual e nacional de violação à integridade pessoal e à igualdade de gênero, racial, social e de saúde nas unidades prisionais no Brasil”.

Entre as mais de 300 pessoas atendidas em todo o Brasil pela APMF em 2023 (cujo público prioritário são mulheres e pessoas LGBTQIA+), 81% são mães, e a maioria tem três filhos ou mais; 74% são pretas, 70% já sofreram violência policial ou doméstica, 31% não concluíram o ensino fundamental e 19% são compostos por analfabetas.

A intenção da APMF com a denúncia é estimular a ONU a pressionar o governo brasileiro a adotar um programa de proteção às vítimas de tortura no sistema prisional mais efetivo, que abarque, entre outros pontos, a garantia do direito à prisão domiciliar humanitária, a estruturação de um serviço de saúde mental e reprodutiva da mulher e o estabelecimento de canais dentro das unidades prisionais para denunciar tortura.

O documento apresentado à ONU é um “apelo urgente”, mecanismo semelhante ao usado pela defesa do presidente Lula (PT) quando tentou reaver seus direitos políticos nas eleições de 2018 – em 2022, o órgão das Nações Unidas considerou que o petista teve os seus direitos políticos desrespeitados.

Caso a ONU atenda ao apelo da APMF, juízes brasileiros, embora não sejam obrigados a acompanhar as orientações do Conselho de Direitos Humanos da ONU, teriam de reportar-se à decisão, ainda que para rebatê-la.

O caso de Soraia

Na penitenciária Belo Horizonte 1, Soraia contou à equipe da APMF que sofreu surtos psicóticos, que teriam sido interpretados pelos agentes penais como atos de desrespeito. Ela afirmou ter apanhado dos agentes, recebido jatos de spray de pimenta nos olhos e ter sido levada, duas vezes, para o confinamento solitário. Em cada uma dessas vezes, de acordo com o relatório, ela teria permanecido 20 dias separada das demais detentas numa cela escura, sem ventilação ou colchão, materiais de higiene pessoal e os cinco diferentes remédios psiquiátricos de que faz uso diariamente. Sua saúde mental, por óbvio, deteriorou-se.

A APMF pediu a prisão domiciliar humanitária de Soraia. Ela ficaria na casa de um parente que ofereceu acolhimento. Mas, em setembro de 2023, o pedido foi negado. A alegação de maus-tratos análogos à tortura foi desconsiderada na decisão do juiz.

Procurada pela Pública, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) de Minas Gerais afirmou serem “improcedentes” as denúncias feitas por Soraia. De acordo com a Sejusp, “não houve registro” dos supostos fatos por ela relatados. A secretaria rechaçou as alegações de que as presas cumpririam pena em cela solitária sem colchão, medicamentos e materiais de higiene.

Ainda segundo a Sejusp, a penitenciária Belo Horizonte 1 está equipada para receber presas em estado de puerpério, e a unidade conta, também, com o acompanhamento do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental.

Outras denúncias

O relatório de inspeção do sistema prisional de Minas Gerais, produzido por cinco peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que foi publicado em agosto de 2022, foi anexado à denúncia do caso de Soraia, enviado à ONU. 

O relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura refere-se a seis unidades prisionais de Minas Gerais: a Professor Jacy de Assis e a Penitenciária Pimenta da Veiga, ambas em Uberlândia, a Professor Jason, voltada ao público LGBTQIA+, em São Joaquim de Bicas, a Francisco Sá 1, no município Francisco Sá, o presídio José Drumond, em Ribeirão das Neves, e a Belo Horizonte 1, de onde saíram as denúncias de Soraia. Ele compila exemplos que apontam ilegalidades – desde escassez de trabalho para as detentas à má qualidade da comida (na penitenciária onde está Soraia, lesmas já teriam sido encontradas na salada). 

Cela na penitenciária Belo Horizonte 1

O relatório aponta também falta de protocolos para a denúncia de maus-tratos e diversos relatos de violência contra presos e presas levada a cabo por agentes de segurança responsáveis por sua custódia – que incluem espancamentos com o uso de soco-inglês e afogamentos no sanitário das celas do presídio José Drumond, em Ribeirão das Neves, e violência psicológica em todas as unidades vistoriadas.

Segundo a APMF e outros grupos ligados à defesa dos direitos humanos em Minas Gerais, como a Plataforma Desencarcera e o Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade, grande parte das irregularidades apontadas no relatório de 2022 não foi sanada pelo governo de Minas. Na Plataforma Desencarcera, criada para denunciar violações de direitos nos presídios mineiros, 1.100 relatos de tortura foram recebidos desde 2018.

Questionada se os problemas apontados no relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura já foram equacionados pelo governo estadual, a Sejusp respondeu que o Departamento Penitenciário de Minas “já contestou ponto a ponto todo o relatório” e que a unidade prisional em questão “passou por diversas obras de reforma e foi uma das que recebeu recursos para melhorias estruturais”.

Sobre as denúncias referentes ao estado dos alimentos, desde a inauguração de uma cozinha-escola na penitenciária, garante a Sejusp, a comida ofertada às custodiadas tem sido “de excelente qualidade”. 


Edição: Mariama Correia

sábado, 9 de março de 2024

 

Chega de aplaudir assassinos de farda

Fevereiro não foi apenas o mês do Carnaval, da dengue e do cerco aos golpistas militares e civis do governo Bolsonaro (incluindo o próprio ex-presidente). Distante do noticiário no descanso das férias, a violência policial me veio como um tapa na cara na volta à realidade. 

Em São Paulo, a Polícia Militar do governo Tarcísio de Freitas matou 38 pessoas em menos de um mês na Operação Verão – continuação da malfadada Operação Escudo, que já havia tirado a vida de 28 pessoas na Baixada Santista no ano passado.

Para além da letalidade fora do controle, ambas as operações tiveram como mote a vingança pela morte de um policial. Não se trata de uma guerra de policiais contra “bandidos”, aplaudida por boa parte da sociedade, apesar dos alertas dos especialistas sobre o equívoco dessa política. Em ambos os casos, as comunidades foram invadidas e civis foram assassinados indiscriminadamente para “dar o troco”, sem poupar nem as crianças. Ao todo, somando ambas as operações, são 66 pessoas mortas. 

Nas palavras do relatório da Ouvidoria da polícia, que visitou os lugares-alvo da operação no dia 11 de fevereiro, este já é “o maior massacre do estado paulista desde a chacina do Carandiru”.
 
Oito crimes fatais, ocorridos em apenas três dias entre 7 e 9 de fevereiro, investigados pela Ouvidoria e entidades de direitos humanos, foram identificados como execução. Entre eles a morte de dois adolescentes desarmados em Itanhaém. Ao ouvir as denúncias dos moradores, uma mãe relatou a abordagem truculenta de policiais contra o filho de 10 anos de idade em São Vicente.

Aliás, como revelou uma reportagem de ontem da Pública, na gestão Tarcísio, com o capitão Derrite à frente da Segurança Pública, o número de crianças e adolescentes mortos em decorrência de operações policiais subiu 58% em um ano. O número saltou de 24 mortos em 2022 para 38 vítimas em 2023. A maior parte das vítimas é negra e diversos crimes têm características de execução.

E não só em São Paulo. No Rio de Janeiro pós-Carnaval, a “normalidade” está de volta. Na última terça-feira, nove pessoas foram mortas em mais uma operação conjunta das polícias Civil e Militar, sempre sob o pretexto de combater o Comando Vermelho (CV). Duas delas foram socorridas por pessoas da comunidade no Complexo do Alemão, como mostra um vídeo chocante postado nas redes sociais. Segundo a polícia, eles seriam membros da facção criminosa e morreram a caminho do hospital. Mais sete foram assassinados em suposto confronto com a polícia na Baixada Fluminense. 

Mais uma vez, as crianças e adolescentes das comunidades da Maré, Alemão, Penha e Morro do Trem pagaram um alto preço pelos crimes que não cometeram. Trancados em casa durante mais um dia de terror, assistiram impotentes ao fechamento de 62 escolas, que deixou mais de 20 mil estudantes sem aulas. 

Já em Minas Gerais, encerraram-se os dois anos de investigações da Polícia Federal (PF) sobre a chacina de Varginha, a maior perpetrada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) no governo Bolsonaro. De acordo com a reportagem da Pública, os agentes simularam um tiroteio para justificar o assassinato de 26 pessoas desarmadas. Pura e simplesmente execução.
 
A PF pediu o indiciamento de 23 policiais rodoviários e 16 militares, entre eles um tenente- coronel, por crimes de tortura, homicídio qualificado e fraude processual. Durante a ação policial, nenhum agente ficou ferido. Ao todo, eles dispararam 500 tiros.

É dessa crise da segurança pública que deveríamos estar tratando em vez de enviar o ministro da Justiça para Mossoró, como se a fuga de dois presos fosse o fato mais preocupante do país, ou aprovar projetos populistas que unem políticos de todos os partidos contra as saidinhas dos presos, outra medida comprovadamente ineficaz e cruel.

Até aqui, porém, a cobertura dos grandes veículos sobre segurança pública só perpetua o sofrimento da população e os equívocos nas políticas que supostamente deveriam fazer a lei prevalecer. 



Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org

sexta-feira, 8 de março de 2024

VALE X VALE - EMPRESA ENTRA EM GUERRA CONSIGO MESMA POR DANOS DA TRAGÉDIA DE MARIANA

 Vale x Vale – Empresa entra em guerra consigo mesma por danos da tragédia de Mariana
Sócia de hidrelétrica no rio Doce e da mineradora Samarco, Vale se vê em guerra interna por danos causados pela lama

7 de março de 2024
06:00
Por André Borges
JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL
Desastre de Mariana mineração Samarco Vale
BRASÍLIA – A lista de milhares de vítimas que, ainda hoje, cobram indenizações da Vale e da BHP pela tragédia que causaram em Mariana (MG) passou a incluir o nome nada trivial de uma empresa indignada com o comportamento dos donos da barragem de rejeito que rompeu em Minas Gerais em 2015: a própria Vale.

O que faz a Vale sentir hoje o peso dos 56 milhões de metros cúbicos de lama de minério de ferro e sílica que ela própria despejou sobre a região e o curso do rio Doce, matando 19 pessoas, é reflexo direto dos negócios que a companhia possui na região.

Reconhecida como uma das maiores mineradoras do mundo, a Vale é dona de metade da Samarco – a empresa que controlava a barragem que rompeu em Mariana – em sociedade com a anglo-australiana BHP Billiton. Paralelamente, a Vale também é sócia majoritária da usina hidrelétrica Risoleta Neves, erguida no rio Doce em 2004 e também atingida pela lama. Por trás do nome fantasia de “Consórcio Candonga” está a Vale, que controla 77,5% da hidrelétrica, em sociedade com a Cemig, que detém 22,5% do negócio.

Passados mais de oito anos desde aquele fatídico 5 de novembro de 2015 – quando se deu o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, a Vale se vê, hoje, dragada por um processo judicial que, na prática, ela mesma moveu, uma vez que está dos dois lados do balcão, como causadora e vítima da tragédia. E, na Justiça, a batalha é pesada.

A Agência Pública teve acesso exclusivo a detalhes do processo judicial e das acusações que o Consórcio Candonga (Vale e Cemig) impõe à Samarco (Vale e BHP), uma disputa que envolve desde a cobrança de multas milionárias até medidas impositivas contra os donos da barragem de rejeitos.

POR QUE ISSO IMPORTA?
Rompimento da barragem do Fundão, em 2015, despejou 56 milhões de metros cúbicos de lama de minério de ferro na região, matou 19 pessoas e atingiu o rio Doce, chegando até o oceano Atlântico
No meio do rio, há uma usina hidrelétrica que também foi atingida e teve suas atividades paralisadas. Tanto a usina quanto a mineradora têm como sócia a Vale, que agora briga consigo mesma
Nos processos judicial e administrativo – pilhas de papéis que correm na Justiça Federal de Minas Gerais e na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) –, os donos da hidrelétrica expõem sua indignação contra a Samarco e acusam a empresa de ser omissa.

“A verdadeira causadora do dano se furta a cumprir com suas obrigações”, dispara a dona da hidrelétrica contra a Samarco, por causa do descumprimento de vários compromissos. “Por diversas vezes, a Samarco demonstrou seu descontentamento com a obrigação que assumiu”, continua.

Os desentendimentos remontam a novembro de 2015, quando a hidrelétrica Risoleta Neves, com suas três turbinas e potência de 140 megawatts, teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama que varreu 40 municípios entre Minas e o Espírito Santo, até chegar ao oceano Atlântico. A energia gerada pela usina é capaz de abastecer cerca de 180 mil residências.

Local atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco
Em março de 2016 – há exatamente oito anos –, a Samarco assinou um Termo de Transação e de Ajuste de Conduta (TTAC), assumindo uma série de compromissos, reparações e indenizações às vítimas do desastre. Entre os contemplados estava a usina Risoleta Neves, com a promessa de ver retirado cada metro cúbico de lama que entupia seu reservatório. Nada disso, porém, foi feito e, com a usina paralisada, o plano de recuperação passou a ser alvo de disputa na Justiça.

Em dezembro de 2022, uma decisão judicial determinou que o Consórcio Candonga tinha que religar a usina, visto que continuava recebendo pagamento mensal pela geração de energia que não existia – uma conta salgada que foi bancada por anos pelos consumidores, por meio da conta de luz. A determinação foi atendida e, em maio de 2023, a hidrelétrica voltou a funcionar. Ocorre que a retirada de lama pela Samarco simplesmente não aconteceu como previsto. E a mineradora lavou as mãos.

“Desde a data do rompimento da barragem de Fundão [5 de novembro de 2015], ela [Samarco] só conseguiu retirar cerca de 5% do montante total de rejeitos do reservatório. Ou seja, no reservatório da usina permanecem mais de 9,2 milhões de m³ de rejeitos”, acusa o consórcio da Vale e da Cemig.

Sem meias palavras, as sócias afirmam que há “absoluta falta de compromisso da Samarco com o efetivo retorno operacional e com a continuidade da operação, uma vez que estão fechando os olhos para os impactos que a presença de rejeitos no reservatório causa”.

Em junho de 2023, um relatório técnico elaborado logo após a retomada das operações comprovou que a lama já estava causando estragos nos equipamentos da hidrelétrica, com efeito abrasivo acelerado nos metais e redução da capacidade de carga da usina.

Tentativas para fazer com que a Vale e a BHP cumprissem seus deveres não faltaram. O Consórcio Candonga menciona pelo menos 19 ocasiões, entre junho de 2020 e setembro de 2023 – todas registradas em documentos –, em que buscou formas de fazer a Samarco cumprir a obrigação de retirar a lama. Não teve jeito.

“A Samarco se comprometeu a retirar mais de 9,6 milhões de metros cúbicos de rejeito do reservatório da usina. Até o momento, tirou aproximadamente 500 mil metros cúbicos”, declarou o Consórcio Candonga, em documento de novembro do ano passado. “É patente que o concessionário não mediu esforços para que as condições originais do empreendimento fossem retomadas. Não obstante, em vista da desídia [comportamento negligente] da Samarco, tem-se que, até o momento, isto não foi possível.”

A concessionária formada por Vale e Cemig acentuou as queixas contra a mineradora, que se limitou a retirar o mínimo necessário de sua lama. “A Samarco, enquanto responsável pelo desastre, vem se furtando ao cumprimento de suas obrigações, sustentando a tese de que, com o retorno da operação comercial da usina, a sua obrigação já restaria cumprida. Nada mais errático”, afirma o Consórcio Candonga.

Briga na Justiça
A lama dos sócios foi parar na Justiça e a confusão se intensificou ainda mais. Enquanto donas da barragem de rejeitos, a Vale e a BHP não apenas deixaram de fazer a retirada integral dos rejeitos como buscaram os tribunais para tentar escapar dessa obrigação que elas próprias haviam assumido de fazer a dragagem e desassoreamento integral dos 9,6 milhões de metros cúbicos de lama parados no reservatório da usina.

Logo depois de ser emitida a licença ambiental que autorizava a remoção, a Samarco informou no âmbito judicial que a Fundação Renova, organização criada para reparar os danos da tragédia, apresentou um recurso administrativo para rever a exigência. A partir daquele momento, os planos da Vale e BHP passaram a definir que a remoção de rejeitos só seria feita na “hipótese de ser futuramente constatada, sob o aspecto técnico, a necessidade de adoção de tal medida”.

A postura revoltou os donos da hidrelétrica. “A Samarco tem tratado a continuidade da retirada de rejeitos do reservatório da usina como se fosse uma medida [obrigação] ainda duvidosa, hipotética, não obrigatória, restrita à manutenção do status atual do reservatório”, acusou o Candonga. “Com base unicamente na retomada da operação em um cenário precário e experimental, [a Samarco] busca induzir, de forma açodada, o entendimento de que cumpriu integralmente com sua obrigação.”

Hidrelétrica Risoleta Neves teve sua operação completamente inviabilizada ao ter seu reservatório invadido pela lama do desastre em Mariana
Ato contínuo, o consórcio da Vale e Cemig acionou a 4ª Vara Federal de Belo Horizonte pela “recalcitrante postura da Samarco”. Na Justiça, o Candonga cobrou providências para a retirada integral dos resíduos e pediu, ainda, que fosse arbitrada uma multa diária de R$ 1 milhão contra a Samarco até que atendesse o cumprimento integral da decisão judicial.

O caso segue em aberto. Em 2022, os donos da hidrelétrica já perderam um primeiro round, quando a Aneel e a Justiça decidiram que o Consórcio Candonga é o responsável imediato pela operação da usina e que deveria não só retomar as operações da hidrelétrica, como também buscar seus direitos diretamente com a Samarco. É Vale contra a Vale.

A hidrelétrica não aceita o argumento e chega a comparar a tragédia de Mariana com a pandemia de covid-19, sob a justificativa de que foi vítima de algo de que não tinha controle. Logo, não poderia ter responsabilidade por isso.

“O desastre de Mariana, sob o aspecto do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, deve ser tratado sob a ótica da teoria da imprevisão, tal como se operou com a pandemia provocada pelo novo coronavírus”, afirmou, no processo que tramita na Aneel. “A própria pandemia do covid-19 foi considerada pela Aneel como causa hábil para isentar o concessionário de penalidades por descumprimento contratual.”

A bronca sobrou também para o poder público. “Quem autorizou a Samarco a construir a barragem de Fundão e nela depositar rejeitos foi o poder público, que também sempre foi o responsável pela fiscalização da segurança do barramento”, argumentou o consórcio. “Não há como se imputar a responsabilidade à concessionária, sendo que o próprio poder público autorizou a construção da barragem.”

A Pública questionou cada um dos envolvidos na celeuma jurídica a respeito das informações contidas nesta reportagem. O Consórcio Candonga limitou-se a declarar que “não se manifesta a respeito de assuntos sobre os quais haja ações judiciais em andamento”.

A Aneel não se posicionou até o fechamento desta reportagem. A Samarco se esquivou de detalhar as razões de não cumprir o acordo de retirada integral da lama. Por meio de nota, informou que “está totalmente comprometida com a retomada das operações e com a segurança da usina”.

Da mesma forma como fez na Justiça, disse que tem cumprido sua parte no acordo. “A empresa retirou rejeitos por meio de dragagem para o retorno da usina, realizou reforços na estrutura do barramento, bem como executou as manutenções necessárias para a sua retomada, realizada no primeiro semestre de 2023.”

A Vale, sócia da hidrelétrica e da mineradora, não quis se manifestar. “A Vale não comenta ações judiciais em curso”, declarou.

A participação majoritária da Vale no Consórcio Candonga deve-se ao arranjo societário da empresa. A mineradora é dona de 50% da concessionária, enquanto a empresa Aliança Energia detém os demais 50%. Ocorre que a Vale também detém 55% da Aliança, em parceria com a Cemig, dona de 45%. Na prática, portanto, a fatia real da Vale dentro da hidrelétrica Risoleta Neves chega a 77,5%, com os demais 22,5% da Cemig. No ano passado, houve movimentação de mercado da Vale para comprar a fatia da companhia mineira na Aliança Energia.

Se o cronograma original de retirada da lama for levado adiante, tudo indica que a guerra judicial ainda está longe do fim. A Samarco, conforme plano oficial, admitiu a obrigação de retirada integral dos rejeitos em um prazo de 27 anos. Hoje, o cenário é de incógnita.

Os alertas foram feitos. “Há também o iminente risco da necessidade de interrupção da operação da usina, em vista do acúmulo de rejeitos atingir a tomada d’água da usina”, reclamou a hidrelétrica à agência reguladora. “É viável a continuidade da operação, desde que a Samarco cumpra efetivamente com sua obrigação de remoção dos rejeitos do reservatório da usina.”

Dentro do Consórcio Candonga, a Vale renova sua indignação e aguarda os próximos passos da Justiça. Dentro da Samarco, a Vale silencia.

Edição: Giovana Girardi
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André Borges
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Ed. #332 | Sexta-feira, 08 de março de 2024.
 

O jornalismo que afaga as empresas não tem limites

Depois do quinto aniversário da tragédia-crime de Brumadinho, uma sessão solene no Congresso na quarta-feira passada (06/03), homenageou as 270 vítimas fatais da Vale. Passou em brancas nuvens na imprensa. Isso apesar do “gancho” evidente proporcionado por outro fato relacionado - esse sim noticiado - que ocorreu no mesmo dia: a votação do HC do presidente da Vale à época do rompimento da barragem, Fabio Schvartsman, que pediu o trancamento da ação criminal em que é réu por homicídio doloso qualificado. 

Ou seja, o executivo sequer admite ir a julgamento apesar de estar provado no processo que a instabilidade da barragem era de conhecimento da companhia por ele presidida, que inclusive pressionou a consultoria Tuv Süd a conceder o certificado de conformidade da barragem, apesar do risco constatado. Os engenheiros da Tuv Süd e outros executivos da Vale, além de Schvartsman, estão entre os 15 réus da ação que os responsabiliza pelas decisões que resultaram nas 270 mortes.

Dois dos três integrantes da Segunda Turma do TRF-6 se manifestaram a favor do pedido do ex-presidente da Vale - um deles ainda não se pronunciou e os votos ainda podem ser alterados até 12 de março. 

Nas notícias sobre a vitória parcial de Schvartsman não se ouviu a Avabrum - a associação dos familiares das vítimas de Brumadinho - que no mesmo dia pedia Justiça logo ali, no Congresso Nacional, pelas mortes de suas “jóias”, como se referem aos filhos, pais, mães, irmãos, noivos, esposos, amigos, afogados no mar de lama que se estendeu por 300 quilômetros e afetou a população de 17 cidades.

A Vale, que faz propaganda sobre o apoio que teria dado a familiares de vítimas e comunidades atingidas pela lama, lutou - e ainda luta - na Justiça para reduzir o valor das indenizações e da reparação de danos. 

Exatamente como fez e continua fazendo com os atingidos pelo rompimento de outra barragem, em novembro de 2015, controlada pela Vale e BHP Billiton, que destruiu um distrito de Mariana e provocou a morte de 19 pessoas. Até mesmo uma hidrelétrica que tem a companhia como sócia-proprietária e teve seu reservatório invadido pela lama trava uma batalha jurídica para ser ressarcida, como revelou reportagem da Pública desta semana. 

Oito anos depois, ninguém foi responsabilizado criminalmente pela perda dessas vidas e pelos milhares de atingidos em Mariana. Esta é a estratégia que se repete no caso de Brumadinho. 

Primeiro a companhia manobrou para que o processo, que corria em Brumadinho desde 2019, fosse transferido para a Justiça Federal em Belo Horizonte, o que fez com que voltasse à estaca zero. Por isso o julgamento, do qual o ex-presidente da Vale tenta escapulir, ainda não foi realizado. O HC de seu ex-presidente é mais um capítulo dessa história pela impunidade.

Como diz a Avabrum, um crime dessa magnitude não pode ficar sem culpados. Não há dinheiro que pague as vidas perdidas ou impeça novos crimes de mineradoras. 

Boa parte das vítimas fatais trabalhava para a própria Vale; muitos morreram dentro do refeitório da companhia que, como também era de conhecimento dos executivos, estava na rota dos rejeitos em caso do acidente previsível diante das condições da barragem. Mas a Vale deixou a lama rolar. 

Schwartsman, que assumiu o cargo prometendo que nunca mais haveria outra Mariana, recebia uma remuneração tão alta quanto deveria ser sua responsabilidade. De acordo com matéria de 2018 da revista Exame (um ano antes de Brumadinho), o cargo de presidente da Vale era o segundo mais bem pago por empresas brasileiras, com salário superior a 60 milhões de reais por ano. 

Segura de seu poder e da cautela da imprensa ao tocar no nome da companhia - que é anunciante de peso e conhecida por sua extensa banca de advogados - a Vale nem se preocupou com a repercussão negativa ao tomar outra atitude de arrepiar: pediu e obteve na mesmíssima quarta-feira 6 de março uma liminar na Justiça para proibir a comunidade Kamakã, uma das seis etnias do povo Pataxó HãHãHãe, de sepultar o cacique Merong Kamakã nas terras em que viviam, reivindicadas pela companhia. 

Merong, combativa liderança indígena de 36 anos, foi encontrado morto na segunda-feira passada, em circunstâncias ainda obscuras. 

A empresa limitou-se a divulgar uma nota, em que disse lamentar o falecimento do cacique e afirmou que busca uma "solução com a comunidade que preserve suas tradições, dentro da legalidade" (grifo meu).

Mas os “ganchos” desta quarta-feira não foram suficientes para alçar os atingidos pela maior tragédia humanitária do Brasil ao noticiário. A Vale até mereceu um comentário indignado - mas a favor da companhia. 

Na última edição da “Veja”, uma matéria na editoria de Política dá ares de escândalo a uma suposta ingerência do governo na cúpula da companhia e critica: “Lula, como se sabe, vem intimidando a Vale abertamente com suas falas, o que tem provocado prejuízos para a empresa privada” (grifo meu).

Imagino que o jornalista se refira à fala do presidente da República, de 28 de fevereiro passado, em que ele disse: “A Vale não pode pensar que ela é dona do Brasil. Ela não pode pensar que ela pode mais do que o Brasil. Então, o que nós queremos é o seguinte: as empresas brasileiras precisam estar de acordo com aquilo que é o pensamento de desenvolvimento do governo brasileiro. É só isso que nós queremos”.

Faltou a imprensa mostrar nesta semana que a Vale também não é dona do noticiário. 



Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org

quinta-feira, 7 de março de 2024

NO STF, ENTIDADES APONTAM ASSÉDIO JUDICIAL CONTRA JORNALISTAS EM MATO GROSSO

 No STF, entidades apontam assédio judicial contra jornalistas em Mato Grosso
Jornalistas dizem que governador bolsonarista Mauro Mendes (União) recorre à Polícia Civil para fazer “assédio judicial”

6 de março de 2024
15:28
Por Caio de Freitas Paes, Rubens Valente
JUSTIÇA PODER
assédio jornalismo Justiça política STF
Nesta segunda (4), um grupo de entidades de defesa do jornalismo ajuizou uma reclamação no Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de tentar garantir o direito constitucional ao sigilo das fontes jornalísticas. Os aparelhos eletrônicos de dois jornalistas de Mato Grosso, incluindo seus telefones celulares, estão em poder da Polícia Civil após uma operação de busca e apreensão deflagrada em Cuiabá em 6 de fevereiro deste ano.

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o Instituto Vladimir Herzog e o Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso (Sindjor-MT), além dos dois profissionais alvos da operação policial, assinaram a reclamação protocolada no STF.

POR QUE ISSO IMPORTA?
O sigilo da fonte é fundamental para a liberdade de imprensa, um dos pilares da democracia
Esclarecer se há abusos por parte da polícia contra jornalistas pode evitar que esse tipo de conduta se torne padrão contra a imprensa
No último dia 16, a defesa dos jornalistas de Cuiabá Alexandre Aprá e Enock Cavalcanti impetrou um habeas corpus na Justiça local a fim de trancar o inquérito e impedir uma devassa, pela Polícia Civil, nos telefones celulares e aparelhos eletrônicos apreendidos com os jornalistas. As entidades de defesa do jornalismo pediram que a questão fosse analisada com urgência e que o inquérito fosse suspenso e arquivado “com o objetivo de assegurar direito constitucional à preservação do sigilo da fonte”.

Em decisão no início da tarde desta terça-feira (5), o desembargador Jorge Luiz Tadeu Rodrigues, da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, negou o trancamento do inquérito. Ele disse não ver “plausibilidade” no pedido, pois, “pelos elementos aqui constantes, não vislumbro, de plano, o aventado constrangimento ilegal”.

A investigação policial contra os jornalistas começou a partir de uma queixa apresentada à polícia pelo governador bolsonarista Mauro Mendes (União).

Os profissionais dizem ser alvo de um “assédio judicial”, por meio da Polícia Civil, promovido pelo governador, sobre o qual fazem uma cobertura crítica sobre ele e o seu governo. Uma comitiva de jornalistas mato-grossenses também formalizou a denúncia durante o primeiro encontro neste ano do Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores Sociais, vinculado à Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) em Brasília (DF), na última sexta-feira (1º). O observatório foi criado pelo governo Lula no ano passado. O encontro foi acompanhado pela Agência Pública.


Comitiva de jornalistas durante encontro do Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores Sociais
Segundo levantamento entregue pelo Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso (Sindjor-MT) ao coordenador do Observatório do MJSP, o secretário Nacional de Justiça, Jean Uema, atualmente há pelo menos 18 jornalistas na mira de inquéritos da Polícia Civil. De acordo com o Sindjor-MT, isso representa um “flagrante uso da máquina pública” contra críticos do governo Mendes.

Mauro Mendes alega ser alvo de mentiras
Como pano de fundo do caso está a Operação Fake News 3, realizada em 6 de fevereiro passado pela Polícia Civil, que teve como alvos, além de Aprá e Cavalcanti, o empresário e comunicador Marco Polo Pinheiro.

Em nota enviada à Pública nesta terça-feira (5), a Secretaria de Estado de Comunicação (Secom) de Mato Grosso encaminhou a seguinte manifestação do governador Mauro Mendes, na íntegra: “Qualquer cidadão brasileiro, seja ele político ou não, tem assegurado o direito de processar todos aqueles que praticarem o[s] crime[s] de calúnia e difamação. O governador de Mato Grosso exerce esse direito, recorrendo ao Judiciário para processar aqueles que mentiram, difamaram e caluniaram. Isso é perseguição ou o exercício de um direito constitucional?”.

Denúncia vai além de inquérito contra jornalistas
Entre as denúncias apresentadas ao Ministério da Justiça, há o rumoroso caso de perseguição contra Alexandre Aprá.

A trama foi objeto de reportagem da Pública no ano passado e envolveria a contratação de um detetive particular supostamente responsável por forjar um falso envolvimento de Aprá com tráfico de drogas ou pedofilia.

Durante o encontro no Ministério da Justiça, a comitiva de jornalistas mato-grossenses afirmou que o governo Mauro Mendes usa o aparato investigativo e a estrutura da Delegacia de Repressão a Crimes Informáticos (DRCI) da Polícia Civil para “criminalizar” os críticos do governo.

Foi a pedido da DRCI e do Ministério Público que a Operação Fake News 3 foi desencadeada. No relatório do inquérito – base da operação, subscrito pelo delegado Ruy Guilherme Peral, da DRCI – a Polícia Civil aponta que Aprá, Enock e Marco Polo formaram uma suposta “associação criminosa” a fim de caluniar e perseguir Mauro Mendes e o desembargador do Tribunal de Justiça Orlando de Almeida Perri.


Desembargador do Tribunal de Justiça Orlando de Almeida Perri (à esq) e o governador Mauro Mendes (ao fundo)
A DRCI diz que Aprá, Cavalcanti e Pinheiro repassaram, em sites e via WhatsApp, uma reportagem do site Repórter Brasil que falava de suspeitas sobre decisões judiciais pró-garimpeiros em Mato Grosso.

Na operação contra Aprá, Cavalcanti e Pinheiro, a polícia tinha autorização para apreender telefones celulares, notebooks, tablets e até videogames dos investigados. A decisão judicial que permitiu a operação autorizou também a quebra do sigilo telemático dos equipamentos, que seguem sob a guarda da polícia. Para os jornalistas, tal fato ameaça o sigilo de suas fontes.

Na conclusão do inquérito, o delegado Peral pediu ainda a prisão preventiva de Aprá, que foi negada pelo juiz João Bosco Soares da Silva, da 10ª Vara Criminal, responsável por autorizar a Operação Fake News 3.


Jornalistas afirmam que Mauro Mendes usa o aparato investigativo e a estrutura da DRCI para “criminalizar” os críticos do governo
A comitiva mato-grossense pediu também ao Ministério da Justiça uma investigação sobre a legalidade da compra e do uso do aparelho de espionagem GI2-S, adquirido pelo governo Mauro Mendes sem licitação em 2022 – compra já detalhada pela Pública no ano passado.

O GI2-S é fabricado pela companhia israelense Cognyte, a responsável pelo programa First Mile – que a Polícia Federal suspeita ter sido usado ilegalmente pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Bolsonaro, foco do chamado escândalo da “Abin paralela”.

Conforme revelado pela Pública, o que o governo de Mato Grosso informou a órgãos de controle sobre o potencial uso do GI2-S se contradiz com a real capacidade do aparelho – que opera de modo a “não revelar para as operadoras de telefonia celular que a rede está sendo monitorada”, “permitindo atividade secreta e uso dissimulado do aparelho” celular monitorado.

O hackeamento se torna possível também porque o GI2-S, da Cognyte, permite invasões ativas via “entrega automática de um SMS predefinido para qualquer telefone que seja capturado” – técnica similar ao phishing, que é o envio de comunicações fraudulentas de modo a parecer que vêm de fontes confiáveis, invadindo proteções do aparelho com um pretenso consentimento do usuário.

Esse é um ponto relevante, pois o governo de Mato Grosso defendeu sua compra perante o Ministério Público Estadual (MPE) alegando que o aparelho de espionagem era uma “ferramenta passiva”.

Segundo apurado pela Pública, o deputado estadual de Mato Grosso Valdir Barranco (PT) enviou um ofício em outubro de 2023 ao então ministro da Justiça Flávio Dino pedindo apoio para esclarecer o uso da ferramenta de espionagem GI2-S pelo governo Mauro Mendes. O caso segue aberto, sem conclusão, no MJSP.

Edição: Ed Wanderley
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