quarta-feira, 13 de novembro de 2024

 

Com vitória de Trump, Baku terá teste da resiliência do Acordo de Paris

Já não ia ser fácil. A expectativa para as próximas duas semanas, quando será realizada a 29ª Conferência do Clima da ONU (COP29), era de que os países caminhariam em um terreno espinhoso. Com o objetivo principal de definir um novo mecanismo financeiro para mobilizar recursos para o combate ao aquecimento global nos países em desenvolvimento, a COP já corria o risco de fracasso. Agora as chances aumentaram.

Com o retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, o país que historicamente mais contribuiu para o aquecimento global e hoje ainda é o segundo maior emissor de gases do efeito estufa do planeta deve pular fora desse esforço. Trump já disse que vai sair do Acordo de Paris. Mesmo que a delegação americana nesta COP ainda esteja sob o comando de Joe Biden, não tem muito o que eles podem fazer. Trump certamente vai desfazer assim que assumir a presidência.

A conferência que começa nesta segunda-feira (11) na capital do Azerbaijão, Baku, tem sido chamada de COP do financiamento, justamente porque tem como missão definir o que, na sopa de letrinhas habitual desse tipo de evento, recebeu a sigla NCQG, ou novo objetivo quantificado de financiamento climático. 

Em bom português: vai ser preciso definir quanto dinheiro vai ser colocado na mesa para ajudar os países mais pobres a fazerem tanto suas transições para reduzir as emissões de gases de efeito estufa quanto as adaptações necessárias para os efeitos que já estão sendo sentidos e que ainda virão com as mudanças climáticas.

Esse é o grande nó dessas cúpulas basicamente desde que elas começaram a ser realizadas. Em 2009, na COP de Copenhague, foi definido que os países desenvolvidos mobilizariam US$ 100 bilhões por ano, a partir de 2020. Essa meta foi incorporada ao Acordo de Paris, em 2015, quando se combinou também que ela valeria por seis anos (até 2025) e depois, teria de ser revista. Exatamente o que precisa ocorrer em Baku.

Mas em 2020 e 2021, os dois primeiros de vigência, o valor não chegou nem perto de ser alcançado e há dúvidas das nações em desenvolvimento se ele realmente foi entregue em 2022, apesar de isso ter sido apontado em um relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) neste ano. 

Segundo a entidade – controlada pelos países doadores –, a meta teria sido até ultrapassada em 2022. Mas há desconfiança entre as nações em desenvolvimento sobre essas entregas, pois falta transparência e se considera que muita coisa é computada pelos ricos como ação climática, quando, de fato, não é. Nas últimas conferências, isso já foi sentido nas negociações e tende a se refletir de modo ainda mais intenso nas próximas duas semanas. 

Agora é preciso ir além. Muito além.

Com o avanço da ocorrência de eventos extremos mundo afora e com a conclusão de que as emissões continuam em alta, os custos para mitigação e adaptação cresceram, sem falar nas chamadas perdas e danos, que consideram o estrago já feito, sem possibilidade de adaptação. Alguns cálculos estimaram a necessidade de mais de um trilhão de dólares. 
Além disso, parte dos US$ 100 bi foi entregue na forma de empréstimo – o que aumenta a dívida dos países. A demanda das nações em desenvolvimento é que o tal NCQG estabeleça que a maior parte do novo recurso seja na forma de doação ou concessional (com condições melhores do que de empréstimos regulares). 

Mas imagine a situação. Se nem os US$ 100 bilhões foram alcançados direito, qual é a confiança de que vai se pagar mais? Com o agravante de que hoje um dos enroscos do debate é que os US$ 100 bi eram de responsabilidade apenas dos países desenvolvidos, que estão pressionando para que se aumente a base de doadores, incluindo os em desenvolvimento que estão mais bem na fita, como a China. Possibilidade fortemente rechaçada por essas nações. 

“Essa é uma discussão que eu considero razoavelmente inútil, porque o G77+China [bloco dos países em desenvolvimento no âmbito das negociações das COPs] está absolutamente fechado com relação à essa possibilidade”, afirmou o embaixador André Correa do Lago, chefe dos negociadores brasileiros, em entrevista à imprensa há algumas semanas.

Não que eles não estejam dispostos a colocar dinheiro na mesa, mas só querem fazer isso de forma voluntária, não obrigatória. Isso, dizem, é responsabilidade de quem mais contribui para as mudanças climáticas – as nações ricas.

Na mesma entrevista, a secretária de Clima do Ministério do Meio Ambiente, Ana Toni, frisou a importância dessa negociação. “Eu vejo o financiamento como pilar de confiança do Acordo de Paris. Quando ele foi finalizado, [o fato de se concordar] que viria dinheiro dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento foi fundamental para que o acordo acontecesse. Então é quase um fiel da balança de confiança no próprio Acordo de Paris”, disse.

Este já era o difícil contexto em que se desenrolaria a COP de Baku. Aí Trump ganhou as eleições nos EUA. 

Não que Biden seja o líder climático dos sonhos nem que Kamala Harris tenha feito da crise climática sua bandeira de campanha. Mas eles levam a sério o problema. Bem verdade também que os americanos sempre jogaram duro nessas negociações, mesmo nas gestões democratas, e eles sempre entregaram menos do que se espera e do que eles devem – visto sua contribuição histórica gigantesca ao problema. Ou seja: não havia grandes expectativas. Mas Trump vai abandonar o barco num momento crucial, o que pode azedar os humores dos demais. 

“Logicamente vai ter um impacto grande”, me disse nesta quarta Ana Toni, logo que foi anunciada a vitória do republicano. Mas ela buscou mostrar confiança no multilateralismo, lembrando que isso já aconteceu uma vez, e o sistema climático internacional resistiu. “A comunidade climática já passou por isso. Talvez a tristeza seja a mesma, mas o susto… a gente já sabe um pouco o que foi. Sabemos que vai ter um baque, mas agora a gente tem de assegurar o sistema multilateral e acreditar que é ele que vai ajudar a gente a resolver o tema da mudança do clima. Não seria de maneira unilateral”, afirma.

No primeiro mandato de Trump (2017-2021), ele também abandonou o Acordo de Paris, revogou uma centena de regulações ambientais e incentivou os combustíveis fósseis – como promete fazer de novo, com seu lema “drill, baby, drill”. Ainda assim, a transição energética no país seguiu o ritmo ditado pelo mercado, e as emissões americanas diminuíram um pouco. Só que bem aquém do necessário, já que o país continua como o segundo maior emissor de gases de efeito estufa do mundo.

Joe Biden retomou muita coisa que Trump tinha desfeito e conseguiu aprovar a Lei da Redução da Inflação (IRA, na sigla em inglês), que injetou US$ 390 bilhões em incentivos para energias limpas e veículos elétricos, o que é considerado a maior política climática que os Estados Unidos já tiveram. Ainda assim, o país bateu recorde de produção de petróleo e gás na gestão do democrata. Sim, caro leitor, é uma no cravo, outra na ferradura.

Só que veja que Trump disse que vai revogar o IRA – algo que depende da aprovação do Congresso e pode não ser tão simples–, porque mesmo os republicanos foram beneficiados com a política. Mas Trump quer acabar com incentivos para fontes renováveis e incentivar mais e mais petróleo, que ele chama de ouro líquido. Há estimativas de que as emissões americanas podem subir. 
Sem os EUA no jogo, não é só o mecanismo financeiro que pode ser comprometido. A própria meta de conter o aquecimento global em 1,5 °C estará perdida.
“Não vamos dosar a pílula. Vai ser mais difícil sem os Estados Unidos. Vai depender muito de como os outros países vão se portar sabendo que simplesmente essa é a nova realidade que todos vão ter agora que enfrentar para assegurar a manutenção e a integridade do acordo multilateral. Que tipo de acordo podemos ter sobre NCQD diante disso que agora é um fato. Todas as partes vão ter que, com muita maturidade, debater sobre a quantidade de recursos, sabendo que esse grande player não vai estar na mesa”, diz Ana Toni.

“Acho que os países desenvolvidos vão ter de pôr ainda mais dinheiro na mesa do que eles já previam ou gostariam, e os países em desenvolvimento também, pensando na expectativa que eles teriam”, complementou.

O mesmo ela acredita que vai valer para o momento crucial que vai ocorrer na COP do ano que vem, em Belém, quando os países têm de apresentar suas novas metas de redução de emissões. Hoje, sabe-se que mesmo se todos os compromissos apresentados no Acordo de Paris forem cumpridos, o mundo ainda vai aquecer 2,6°C, o que pode ser catastrófico

“No ano que vem, já com o governo Trump, que tipo de acordo é possível fazer sem uma potência? Acho que alguns outros países vão ter que aceitar a sua liderança no processo internacional. A China, óbvio, já está fazendo isso. O Brasil, também está fazendo isso. E obviamente os europeus”, defende Ana Toni. Para ela, será necessária uma acomodação das partes “a esses desvios momentâneos”.

“A mudança do clima é uma coisa permanente, já está conosco e vai ficar conosco pelo menos mais 100, 200, 300 anos. Então, as relações internacionais têm que começar a ser capazes de blindar o regime de clima desses soluços temporários, porque requer uma abordagem multilateral”, diz.

A questão, obviamente, é o tempo. Temos tempo para esses vai-e-vens? Esses atrasos de ação? Essa reacomodação necessária? Se já está difícil com todo mundo a bordo, temos disposição para aumentar ainda mais os esforços para resolver essa lacuna?

Nesta quinta-feira, sistemas de monitoramento da temperatura média do planeta – o europeu Copernicus e a Organização Meteorológica Mundial –, anunciaram que 2024 muito provavelmente vai terminar como o ano mais quente do registro histórico, batendo o recorde que tinha sido atingido no ano passado. A realidade é que a situação está piorando muito rapidamente. Vai ser preciso dar um jeito nisso, com ou sem os Estados Unidos.

Giovana Girardi
giovana.girardi@apublica.org
Chefe da Cobertura Socioambiental

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