quarta-feira, 26 de julho de 2023

 

E se o dólar deixar de ser a moeda global?

Hegemonia monetária internacional favoreceu o imperialismo e aventuras militares dos EUA. Mas abusos – como sequestros de reservas e sanções – forçaram Sul a articular alternativas. É preciso entender os impactos da desdolarização

  

Por Gerald Epstein em entrevista a C.J. Polychroniou para Truthout | Tradução: Maurício Ayer

Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, e especialmente depois que Washington impôs sanções abrangentes a Moscou, vários países em todo o mundo – incluindo Brasil, China, Índia, Irã, Arábia Saudita e África do Sul – têm resistido à hegemonia do dólar americano na economia global. À medida que esse movimento de desdolarização ganha força, somos forçados a perguntar: o domínio do dólar americano está ameaçado? Acabar com a hegemonia do dólar americano beneficiaria o mundo?

O economista progressista Gerald Epstein lança luz sobre o debate da desdolarização nesta entrevista concedida com exclusividade para Truthout (traduzida para o português por Outras Palavras). Ele explica o papel que o dólar desempenha como moeda internacional na manutenção da hegemonia global dos EUA, discute como o imperialismo ajuda a aumentar o papel do dólar como moeda e analisa se a desdolarização está realmente acontecendo e como a perda do estatuto de moeda de reserva do dólar pode afetar os EUA e a economia mundial. Epstein é professor e co-diretor do Political Economy Research Institute (PERI) na University of Massachusetts Amherst, e autor de um livro a ser publicado pela University of California Press intitulado, Busting the Bankers’ Club: Finance for the Rest of Us [Detonando o Clube dos Banqueiros: Finanças para o resto de nós].

C.J. Polychroniou – O dólar americano tem sido a principal moeda de reserva do mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, graças a um acordo alcançado pelos EUA e seus aliados em Bretton Woods em 1944 para criar um regime cambial internacional no qual o dólar estava atrelado ao ouro. Os EUA cortaram unilateralmente os vínculos entre o dólar e o ouro em 1971, encerrando efetivamente o sistema de Bretton Woods, mas o dólar ainda continua sendo a moeda de reserva internacional, embora outras moedas de reserva (não-dólar) tenham aumentado substancialmente nos últimos 10 a 15 anos. Qual é hoje o papel real do dólar como moeda de reserva primária para a economia global?

Gerald Epstein – O dólar americano é a “moeda internacional” dominante, usada em grande parte do mundo. Tem dominado pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial, e provavelmente um pouco antes. Primeiro, devo explicar os papéis que a “moeda internacional” desempenha.

Como a “moeda doméstica” (ou moeda nacional) – o bom e velho dólar americano usado nos EUA, por exemplo –, a moeda internacional exerce vários papéis diferentes. Serve como um “meio de troca” nas transações cotidianas; ou seja, você o usa quando compra um pedaço de pizza ou um carro novo. Uma segunda função é como uma “reserva de valor” para guardar algumas de suas economias. Por exemplo, se você tem um cofrinho, provavelmente tem notas de dólar ou moedas nele. Terceiro, é usada como uma “unidade de conta”; ou seja, as unidades nas quais os preços são anunciados. Por exemplo, estamos usando o dólar como unidade de conta quando dizemos: “essa banana custa 1 dólar e 75 centavos” ou “essa casa custa 1 milhão e 750 mil dólares”. ou “Devo 25 mil dólares em empréstimos estudantis que ainda devo pagar por causa da Suprema Corte”. A moeda internacional também é usada como “meio de pagamento”; ou seja, é usado para pagar os juros e o principal das dívidas.

A moeda internacional também tem algumas funções adicionais importantes que a moeda doméstica não cumpre. As mais importantes são: como uma “moeda de intervenção”, que é quando é usada pelos bancos centrais para comprar e vender moedas internacionais a fim de afetar sua taxa de câmbio internacional (por exemplo, quando o banco central mexicano compra pesos mexicanos com dólares americanos para sustentar o valor do peso em relação ao dólar); e como “moeda âncora”, que é quando um país deseja vincular o valor de sua moeda ao valor de outra moeda (por exemplo, quando a Namíbia deseja manter o valor de sua moeda igual ao rand sul-africano). Da mesma forma, a maioria dos bancos centrais mantém “reservas” (reservas cambiais) compostas por moedas estrangeiras e, em alguns casos, ouro, a fim de intervir nos mercados de câmbio e ter moedas estrangeiras para pagar importações e atender empréstimos estrangeiros, quando necessário.

O dólar dos EUA desempenha um papel dominante em muitos desses usos como moeda internacional em muitas partes do mundo. O grau em que desempenha essas funções varia de acordo com a função, área geográfica e ao longo do tempo. Mas, no geral, não há outra moeda que desempenhe tantos papéis em tantos lugares quanto o dólar americano. Devido a esse domínio, o dólar americano costuma ser chamado de “moeda-chave” internacional.

Mas o dólar americano não é a única moeda que desempenha esses papéis. As mais importantes, nestes últimos casos, incluem o euro, a libra esterlina, o iene japonês, o franco suíço e, em algumas partes do mundo, o renminbi (ou yuan) chinês.

Observe como apenas algumas moedas desempenham esses papéis. As moedas da maioria dos países quase não desempenham nenhum papel como moeda internacional. Por exemplo, a maioria dos países não pode nem mesmo tomar empréstimos nos mercados de capitais internacionais em suas próprias moedas. Quando o Equador toma empréstimos de bancos estrangeiros, os empréstimos são denominados em dólares ou euros, por exemplo. Quando o Equador tem que pagar seu empréstimo, tem que ter dólares suficientes para isso. Quando os Estados Unidos tomam empréstimos da Arábia Saudita, eles só precisam pagar em dólares, uma moeda que os EUA imprimem. Facinho, facinho.

Assim, embora se fale muito da diferença entre a “moeda-chave” (o dólar americano) e todas as outras, talvez a mais importante demarcação da desigualdade e hierarquia no mundo é entre as chamadas moedas fortes [hard currencies] (moedas que também servem como dinheiro internacional) e moedas fracas [soft currencies] (moedas que não servem como dinheiro internacional). Os países com moedas fracas estão em grande desvantagem porque devem adquirir moedas fortes para sobreviver na economia global.

Agora posso dar uma perspectiva histórica quantitativa sobre isso.

Em 1950, os EUA produziam 62% da produção industrial mundial. Em 1975, quase 80% das reservas cambiais oficiais do mundo eram mantidas em dólares, e os EUA representavam 43% da produção manufatureira mundial. Em 2022, os EUA responderam por menos de 20% da produção industrial mundial – cerca de 22% do PIB mundial. Mas 60% das reservas internacionais oficiais do mundo ainda eram mantidas em dólares americanos.

Até que ponto o papel preponderante do dólar americano na economia global está ligado ao tamanho e à força da economia americana?

Como sugerem os números que apresentei acima, na época em que os EUA ultrapassaram a libra esterlina britânica na época da Primeira Guerra Mundial, o tamanho e a força econômica dos EUA foram muito importantes para determinar o papel internacional do dólar. Mas, na virada do século 21, o tamanho relativo e a força da economia dos EUA caíram muito (na verdade, a economia chinesa agora é ou em breve será a maior economia do mundo), mas o papel geral do dólar americano como moeda internacional permaneceu dominante.

Existe uma conexão entre a resiliência do papel do dólar como moeda global e a dinâmica da financeirização e/ou os mecanismos da hegemonia imperialista dos EUA?

Sim, para ambas as perguntas. Embora os Estados Unidos tenham se tornado muito menores no mundo em termos de produção industrial e até mesmo na produção de serviços não financeiros, eles continuaram financeiramente como uma grande potência global. O dólar americano é usado em 60% dos empréstimos e depósitos bancários do mundo; responde por quase 70% da dívida global emitida em moeda estrangeira (por exemplo, empréstimos internacionais do Brasil em moeda estrangeira); e o dólar americano está envolvido em quase 90% das transações cambiais globais, a maioria das quais referem-se a vários tipos de negociação e especulação financeira.

Em suma, os EUA se tornaram um dos países mais “financeirizados” do planeta e esse domínio financeiro sustenta o papel internacional do dólar. É importante ressaltar que a causalidade também ocorre no sentido inverso: ter o dólar como a principal moeda internacional também aumenta o papel, os lucros e o poder das finanças dos EUA no mundo.

Da mesma forma, o imperialismo ajuda a sustentar o papel de moeda chave do dólar dos EUA e esse papel de moeda chave facilita o poder político e militar global dos EUA – ou seja, o uso do poder internacional para extrair recursos de outros países para o benefício principalmente dos capitalistas dos EUA e do 1% [mais rico da sociedade].

Há muitas evidências, começando com o trabalho de meu ex-aluno de pós-graduação, Roohi Prem, que identifica a importância da atuação militar e poder diplomático como base primeiro da libra esterlina e depois do papel-chave do dólar americano. Os países que dependem dos EUA para apoio militar e venda de armas e que fazem parte de alianças diplomáticas e militares dos EUA têm maior probabilidade de manter dólares americanos como reservas monetárias. Isso era muito evidente no caso da Alemanha Ocidental durante a década de 1960, que era totalmente dependente da defesa dos EUA, mas aparece nos dados hoje de maneiras mais sutis. Mais uma vez, a causalidade ocorre em várias direções. Os países usam suas reservas em dólares como um sinal de que fazem parte do “campo” dos EUA e os americanos veem a posse de dólares como um sinal de apoio.

O que os EUA ganham com tudo isso?

Há um debate entre economistas e cientistas políticos sobre isso. Alguns economistas, como Robert McCauley, ex-Bank for International Settlements (BIS), e Paul Krugman, do City College, dizem que a resposta é: não muito. Mas, se isso fosse verdade, como se poderia explicar tudo o que o governo dos EUA faz para proteger e promover o papel do dólar? Por exemplo, o Federal Reserve e o Tesouro dos EUA se envolvem em grandes operações de resgate financeiro em tempos de crise, como a crise financeira de 2008 e a crise da covid-19 de 2020, para oferecer a salvação em dólares para bancos centrais estrangeiros, para que possam estabilizar o uso do dólar pelos bancos desses países e outras instituições financeiras. Eles usam capital diplomático para garantir que a principal rede global de sinalização de transações (SWIFT) seja favorável ao dólar, etc. Alguns argumentaram que os EUA fizeram grandes esforços para garantir que os preços do petróleo continuem sendo denominados em dólares.

O fato é que ter o dólar como a principal moeda mundial dá ao governo dos EUA um poder significativo para dar as ordens financeiras na economia global; dá uma vantagem às instituições financeiras americanas na economia global porque elas têm acesso fácil a dólares americanos do Federal Reserve; e torna mais fácil financiar o enorme déficit orçamentário dos EUA e os empréstimos externos.

O dólar americano vem enfrentando desafios do renminbi e do euro nos últimos anos, a tal ponto que há crescentes apelos de países como o Brasil e vizinhos chineses do Sudeste Asiático para que o comércio seja feito em outras moedas além do dólar americano. De fato, a Rússia e a China desenvolveram seu próprio gateway de pagamento e cada vez mais países buscam alternativas ao dólar americano. Você diria que a desdolarização é real? E isso é bom?

Como você disse, há tentativas de reduzir a dependência mundial em relação ao dólar americano. Existem áreas, particularmente na Ásia, onde o renminbi passou a ser mais usado como denominação comercial; também na Europa, o comércio tem sido faturado mais em euros e menos em dólares. Portanto, há um impulso em algumas áreas para desdolarizar. No entanto, como já indiquei, a força geral do dólar permaneceu muito alta. Parte do motivo é a força financeira e militar/política dos EUA. E parte do motivo é simplesmente a inércia. Uma vez que muitas pessoas no mundo falam inglês, o inglês continua sendo a língua internacional; uma vez que muitos países usam o dólar, eles continuam a usar o dólar.

A desdolarização seria uma coisa boa? Depende, até certo ponto, do que venha a substituir o dólar. Se, como previu o economista John Maynard Keynes, uma moeda global administrada por um banco central global que refletisse melhor os interesses e as necessidades da população mundial substituísse o dólar, sim: isso provavelmente seria uma coisa muito boa. Se o renminbi o substituísse? Ou se houve um compartilhamento mais amplo de várias moedas, como é a evolução mais provável? Sim. Isso quase certamente seria melhor. O domínio das finanças dos EUA e do aventureirismo militar global dos EUA que é auxiliado pelo dólar não é saudável para o mundo. Um papel mais compartilhado para a defesa global seria, a meu ver, um resultado muito mais justo, com esperanças de que seja mais pacífico.

É claro que o papel do dólar per se não é a fonte de todos os males, nem domesticá-lo será a solução para todos os males. Mas pode ajudar.

O argumento mais comum que se ouve contra a desdolarização é que, na realidade, não há alternativa confiável, embora se diga frequentemente que, se os países começassem a negociar uns com os outros em suas próprias moedas, haveria um aumento do risco cambial e flutuações potencialmente selvagens nas taxas de câmbio. Esses não são argumentos sólidos contra a desdolarização?

Há alguma verdade nisso, talvez. Mas, por outro lado, o problema já persiste para os países em desenvolvimento: o capital especulativo de curto prazo entra e sai ainda mais rapidamente. O problema-chave aqui são os fluxos especulativos descontrolados do capital internacional, não a existência de um sistema multimoeda.

O que aconteceria se o dólar americano fosse destronado como a principal moeda de reserva do mundo? Como isso afetaria a economia global, bem como a economia dos EUA e as classes trabalhadoras?

Como sugeri, pode reduzir o aventureirismo militar dos EUA. Também pode reduzir, no entanto, a capacidade dos EUA de incorrer em grandes déficits orçamentários e déficits em conta corrente. O primeiro ponto acarretaria que a classe trabalhadora precisaria construir e utilizar mais força política para exigir que as prioridades do governo atendessem às necessidades das pessoas, em vez do 1% do topo, bancos, empreiteiros militares e empresas de combustíveis fósseis. Déficits em conta corrente também podem aumentar a produção local nos EUA, o que, nas circunstâncias certas, pode ser um benefício para o emprego doméstico.

Quanto ao resto do mundo, pode transferir parte do poder financeiro e político global para outros lugares. Se os trabalhadores do mundo ou os capitalistas do mundo fora dos EUA irão capturar esse poder é uma grande questão, que não tenho como responder aqui.

sábado, 22 de julho de 2023

POR QUE CONTINUAR INVESTIGANDO O CASO SAMUEL KLEIN

 

Imagens mostram do protesto contra homenagens à família Klein realizado na quinta, 20/7, em São Caetano do Sul (SP)


Bom dia,


Foi a primeira vez que vi reportagens da Pública serem usadas como cartazes de protesto em uma manifestação.

As reportagens eram as que detalham as denúncias de exploração sexual de meninas e mulheres por Samuel Klein, fundador das Casas Bahia. E as manifestantes eram um grupo de mulheres que se reuniu na última quinta-feira em frente a uma loja das Casas Bahia em São Caetano do Sul (SP) para protestar contra as homenagens à família Klein.

No ato, as manifestantes colaram adesivos com a palavra "pedófilo" na placa que sinaliza a Rua Samuel Klein, em referência às denúncias de um esquema de exploração sexual de meninas que o fundador das Casas Bahia teria mantido por 30 anos.

A Pública revelou este caso em 2021 – mas era só a ponta do iceberg. Agora, queremos retomar as investigações e fazer um podcast sobre esse caso, e por isso estamos pedindo a ajuda do público para arrecadar os recursos necessários para este projeto.

Lançamos esta campanha de arrecadação no dia 14 de julho e, no mesmo dia, por coincidência, um dos filhos de Samuel, o também empresário Saul Klein, foi condenado por explorar sexualmente e submeter à condição análoga a escravidão mais de 100 mulheres. O caso de Saul Klein havia sido revelado pelo UOL.

A manifestação na sede das Casas Bahia ilustra bem por que precisamos continuar investigando esses casos. Os crimes que teriam sido cometidos no passado seguem ecoando no presente. As dezenas de mulheres que ouvimos para a série de reportagens seguem carregando as marcas do que aconteceu com elas. E outras tantas nos procuraram desde então para compartilhar suas histórias.


Enquanto isso, Samuel Klein segue sendo lembrado como o "rei do varejo", um "self made man", um empresário de sucesso.

Ainda há muito mais a descobrir sobre os casos de Samuel e Saul Klein. O Brasil tem o direito de conhecer a história completa sobre os abusos que teriam sido cometidos pelo patriarca e por outros membros da família Klein. Por isso, a Pública pede sua ajuda para retomar as investigações e lançar um novo podcast sobre elas. Contribua para a verdade vir à tona. Doe hoje para a Pública.

A VERDADE PRECISA VIR À TONA

terça-feira, 18 de julho de 2023

 

Conversas difíceis


Na semana passada estive na África do Sul, em um congresso organizado pela Universidade de Pretoria para discutir regulação das gigantes da tecnologia e a compensação a ser paga para os veículos jornalísticos pelo uso do seu conteúdo. Fui até lá para tentar entender como outros países conseguiram avançar com as suas próprias “Leis das Fake News” sem serem atropeladas pelas Big Techs, como ocorreu aqui. E saí com duas certezas: a primeira é que a regulação de plataformas é inevitável e o debate avança no mundo todo; e a segunda é que, para vencer o lobby pesado destas que são as empresas mais lucrativas da história do capitalismo, a imprensa de cada país precisa, primeiro, fazer a sua lição de casa. 

Conselhos de Imprensa existem tanto na Austrália quanto no Canadá, os dois únicos países em que os “códigos de barganha” viraram lei – o termo se refere à obrigação de redes sociais, serviços de mensageria e buscas negociarem com jornais e sites uma compensação financeira. 

Tais conselhos são órgãos de autorregulação dos meios e prezam pela liberdade e diversidade da produção noticiosa, sim, mas também oferecem um canal para que o público envie reclamações, seja ouvido e, se cabível, que o dano seja remediado. 

O National News Media Council, do Canadá, é um mecanismo totalmente voluntário: só entra o veículo que quiser. Foi estabelecido em 2015 com dois objetivos: servir como um fórum para reclamações contra os seus membros e promover práticas éticas dentro da indústria. O Australian Press Council é mais antigo. Foi estabelecido em 1976 é responsável por promover práticas e padrões éticos para toda a imprensa, mas também práticas de acesso a informações de interesse público e por responder a reclamações sobre jornais, revistas e canais digitais australianos. Naquele país, ser membro do Conselho é uma das exigências para que o veículo receba a compensação financeira. 

Muito mais que servirem como uma “caixinha de reclamações”, o que esse tipo de mecanismo faz é permitir uma prática constante de reflexão sobre ética, assim como um espaço democrático e seguro de conversas essenciais para a prática jornalística. No final, são órgãos que garantem que a imprensa seja responsabilizável pelos seus desvios, ampliando assim a confiança do público nos meios e no jornalismo como um todo.

 

No Brasil, estamos há léguas de qualquer coisa do tipo. Toda vez que se fala em regular os meios de acordo com o que reza a Constituição, ouvimos uma gritaria que chama todo debate sobre regulação da mídia, ou mesmo qualquer crítica, de censura.
  

(Crítica, lembremos, não é a mesma coisa que ataque ou assédio). 

Nem mesmo um mecanismo de autorregulação, totalmente separado de qualquer influência do Estado, é pauta por aqui. A mensagem que fica é que a imprensa não deve satisfações a ninguém. 

Assim, muitas conversas difíceis sobre o fazer jornalístico simplesmente não acontecem. E eu digo “difíceis” com a maior deferência e admiração pelo trabalho de meus pares. 

Citarei mais uma vez Renato Janine Ribeiro para dizer que jornalismo não é um trabalho fácil. Lidamos com a vida de pessoas, com a responsabilização de homens poderosos e de empresas, com assédio e com vinganças pessoais; temos que tomar decisões éticas a todo momento. E o público percebe isso. As críticas se avolumam e os extremistas e populistas de turno apenas se apoderam dessas críticas para atacar a imprensa como mais um poder corrupto, como se fosse seu próprio espelho. 

Na falta de um mecanismo consistente de crítica de mídia, algumas conversas difíceis têm sido palco de reportagens e projetos aqui na Pública. Por exemplo, depois de muito ponderarmos sobre o conteúdo levantado, decidimos publicar a extensa reportagem sobre o apoio da Folha à ditadura militar. O relato é robusto, traz novidades, e poderia resultar em uma conversa mais ampla sobre o papel da imprensa que apoio à ditadura – e não só a Folha – em um momento em que o fantasma das conversas difíceis não tidas sobre aquele período é um dos maiores esteios do bolsonarismo militarista e autoritário, que manipula as fantasias ditatoriais do brasileiro médio. 

Na última sexta-feira, lançamos uma campanha de financiamento coletivo para fazermos um podcast a respeito das acusações de crimes em série de Samuel Klein, o fundador das Casas Bahia, acusado de violar meninas de até 9 anos usando a sede da empresa, seus carros, seus helicópteros, compensando-as mesquinhamente com eletrodomésticos como liquidificadores e torradeiras. Nossa frustração após dois anos em que o que se ouviu foi um retumbante silêncio da imprensa, de organizações que defendem os direitos de crianças, e dos políticos, nos levou a decidir fazer, sozinhas, um podcast pra que essa história chegue a mais ouvidos. 

Passamos dois anos esperando que o assunto se tornasse uma conversa mais ampla, com seguimento pelos jornais e pela tevê. Exceto a Folha, que fez duas reportagens após ser questionada pela excelente Ombudsman Flávia Lima, e o Uol, que levantou toda a história do seu filho Saul, e que recentemente publicou uma assustadora reportagem demonstrando que uma das menores que acusaram Samuel chegou a ser presa com sua advogada como retaliação. Fora isso, nada. O que pode ser considerado um dos maiores escândalos empresariais da nossa história sequer chegou à TV aberta, cujos canais aliás sempre foram fartamente financiados pelos anúncios das Casas Bahia. 

E esses são apenas dois exemplos, que uso aqui porque foram abordadas nas nossas páginas. Outros, como o caso Escola Base, a cobertura da Lava-Jato, as reportagens que consistentemente transformam civis inocentes em suspeitos de tráfico apenas por serem pretos e viverem em favelas – nada disso é discutido de maneira consistente. 

Por outro lado, em vez de termos um fórum em que esses temas são debatidos pelo campo, fortalecendo o que nos une, como jornalistas, ampliando uma articulação mais que necessária neste momento de crise, os meios permanecem encastelados cada um no seu quadrado. É uma estratégia antiquada, cheira a naftalina, como se não estivéssemos no mesmo barco, e esse barco não estivesse afundando. 

Só receberemos o bote salva-vidas se convencermos o público do valor social do jornalismo de interesse público. 

Como conseguiremos vencer um argumento falso, como aquele que inseriu os direitos dos artistas para também receberem compensação das plataformas, no PL das Fake News, como se o papel do jornalismo e dos produtores de cultura não fosse absolutamente diferentes? 

Nada disso aconteceu em outros países onde avançou a lei – e onde existem mecanismos de “pesos e contrapesos” também para a imprensa. 

Se nós, jornalistas, não conseguimos aceitar a responsabilidade de prestar contas à sociedade sobre as consequências de nossa cobertura, como podemos convencer essa mesma sociedade que merecemos um tratamento diferenciado de plataformas como Google e Facebook? 

Há alguns meses, a consultoria da FehrAdvice, especializada em economia comportamental, fez um estudo demonstrando que usuários preferem ver conteúdos jornalísticos na busca do Google – e que sem eles, os usuários tendem a deixar a plataforma. Segundo o estudo, feito com usuários da Suíça, o site de buscas deveria pagar o equivalente a 15% das suas receitas com propaganda no país como compensação aos jornais e sites.  

Embora o termo “interesse público” não seja o foco do estudo, por trás dessa descoberta está o que torna o jornalismo diferente de todos os outros setores: sem ele, a sociedade não funciona. E a democracia, certamente, não se segura. 

Talvez, antes de partirmos para mais uma disputa que será vista como apenas financeira, seja hora de reconquistar a fé do público no nosso jornalismo. Mas, para isso, teremos que aprender a ter muitas conversas difíceis sobre nosso papel, nossos erros e nossas responsabilidades para com a sociedade.

 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

segunda-feira, 10 de julho de 2023

OS MISTÉRIOS ENVOLVENDO O "HOSPITAL DE LIRA" EM MACEIÓ

 



Olá, tudo bem? 

Numa conversa durante o aniversário de um amigo em comum, em maio, descobri que o repórter Breno Pires, da revista Piauí, assim como eu, estava há meses tentando desvendar os mistérios de um hospital em Maceió, mais conhecido na capital alagoana como “Hospital de Lira”.

Desde 2021, nós dois ouvíamos de algumas fontes que o hospital Veredas, comandado pela turma do deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, estaria sendo usado para desviar recursos do Ministério da Saúde. Só que por falta total de transparência, não tínhamos conseguido avançar muito na apuração. 

Em vez de correr para publicar a matéria antes um do outro, decidimos, naquela tarde de domingo, que continuaríamos a investigação juntos, a partir do que cada um havia levantado de informação até então. Colaborar com outros veículos em vez de competir é coisa rara na grande imprensa, mas é algo que valorizamos muito aqui na Pública. 

 
APOIO O JORNALISMO COLABORATIVO
Desembarcamos em Maceió no dia 6 de junho e iniciamos um verdadeiro périplo para abrir a caixa-preta do hospital filantrópico. Ouvimos dezenas de fontes, visitamos todos os órgãos fiscalizadores de Alagoas, mas nos surpreendemos com o silêncio e a falta de vontade em abrir as contas do hospital, além de outras situações, no mínimo, estranhas. Descobrimos, por exemplo, que a pessoa que ficou por 22 anos à frente da promotoria de Justiça das Fundações, responsável por fiscalizar os gastos do hospital, após se aposentar passou a trabalhar como consultora para o Veredas. E que o filho dela também ganhou um cargo no hospital. 

Naquela altura do campeonato, já sabíamos que desde a gestão de Ricardo Barros (PP-PR) no Ministério da Saúde entre 2016 e 2018, o Veredas vinha recebendo muito dinheiro. E que eram sempre aliados de Arthur Lira que estavam à frente das contas do hospital, como um político que já figurou em escândalos na Saúde e a prima do presidente da Câmara, que está até hoje no cargo. 

Graças a um trabalho de “formiguinha”, descobrimos que quase R$ 1 bilhão passaram pelas mãos dos aliados de Arthur Lira que comandaram o hospital nos últimos sete anos. No entanto, o Veredas se afunda em dívidas e não tem dinheiro nem para pagar os salários de seus funcionários. Por quê?

Fontes ouvidas em Maceió acreditam que os contratos de advocacia do Veredas são dutos por onde escoam milhões de reais. A partir dessa pista, descobrimos que o hospital está habituado a contratar advogados com projeção nacional e laços com o poder em Brasília. Além disso, tivemos acesso a um contrato de R$ 2,8 milhões firmado entre o Veredas e um advogado trabalhista de Arthur Lira, Adriano Avelino. O acordo previa o pagamento em duas parcelas ao advogado, independentemente do resultado da ação. 

As revelações da Agência Pública e da Revista piauí mostraram que uma análise detalhada desses repasses precisa ser feita urgentemente. A partir da reportagem, o Conselho Estadual de Saúde de Alagoas, a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU) já foram acionados. 

Agora, cabe aos órgãos competentes, enfim, cumprirem o seu papel. Quanto a nós, continuaremos virando do avesso para investigar o que acontece com o dinheiro público que, ao que tudo indica, não está indo para onde deveria. Podemos contar com você para isso?

 
SIM, APOIO QUEM FISCALIZA O DINHEIRO PÚBLICO
Um abraço,

Alice Maciel
Repórter da Agência Pública em Brasília

segunda-feira, 3 de julho de 2023

 

 

Democracídio 


Carmen Lúcia proferiu o voto fatal. Primeira mulher a assumir a presidência do TSE, em 2012, a mineira também foi responsável pela decisão que retirou Jair Bolsonaro da disputa eleitoral por abençoados 8 anos com seu voto pela inelegibilidade. Que seja Carmen, uma mulher, a derrotar o Bolsonaro é fato histórico. 

Como ainda cabe às mulheres que se sentam em lugares de poder em um país tão misógino – ainda mais as de sua geração – Carmen foi contida e técnica; no seu voto, ateve-se ao fato discutido, a reunião de Bolsonaro com os diplomatas estrangeiros dentro do Palácio do Planalto em 18 de julho do ano passado, onde proferiu barbaridades contra o sistema eleitoral. 

Por ser mulher, Carmen não tem o privilégio de ser flamboyant como seu colega Alexandre de Moraes, cujo voto foi carregado de adjetivos, expressando, por exemplo, a “repulsa” do poder judiciário “ao degradante populismo" renascido "a partir das chamas dos discursos de ódio, dos discursos antidemocráticos", que "propagam infame desinformação produzida e divulgada por verdadeiros milicianos digitais”. 

Não. Carmen Lúcia foi enfática ao falar que o que se julgava era um retrato – a reunião com os embaixadores – e não um filme, todo o pesadelo que foi a longa campanha de destruição da confiança nas eleições e apoio a um golpe de Estado pelo infeliz ex-presidente. 

Protegendo-se, como sabe fazer toda mulher que já sofreu agressões apenas por ser mulher, e ainda mais as que se viram violentadas pela crueza do Bolsonarismo, como ela, explicou que “estamos julgando para cumprir um dever constitucional. Jurisdição não se escolhe e não se quer. E não é boa nem fácil a função de julgar. Ela é necessária”.

 

A ministra, lembre-se, já foi atacada pelo próprio Bolsonaro e pelo seu aliado Roberto Jefferson, que num vídeo publicado nas redes sociais a chamou de “Bruxa de Blair” e a comparou com uma prostituta, abrindo as portas para o inferno de Dante do acosso das redes bolsonaristas, sempre mais dispostas a linchar uma mulher. 
  

No seu voto, falou brevemente sobre isso: “nos últimos tempos nós temos sido fustigados com toda acidez com todas as críticas. A crítica faz parte; o que não se pode é um servidor público no equipamento público, com divulgação pela EBC e pelas redes sociais oficiais, fazer achaque contra ministros do Supremo, como se não estivesse atingindo a própria instituição. E não há democracia sem poder judiciário independente”.  

Citou, ainda, o jurista italiano Francesco Carnelutti para dizer que Bolsonaro tinha a “consciência de perverter", ou seja, sabia que não tinha razão, mas usou a mentira como método para perverter a confiabilidade e colocar em risco a normalidade a legitimidade do processo eleitoral “e portanto da própria democracia”. 

Diferentemente do que deixa transparecer no seu voto cirúrgico, Carmen Lúcia tem uma percepção bem aguçada sobre o processo medonho ao qual o Brasil foi submetido nos últimos anos, como eu vim a saber no ano passado. Ela conhece o filme, e não só a fotografia. 

Quando eu estava estudando em Harvard, ainda no primeiro semestre de 2022, assisti junto com o professor e pesquisador David Nemer de uma palestra organizada pelos alunos brasileiros da Faculdade de Direito daquela prestigiosa universidade. 

Depois de uma apresentação dos estudantes, a ministra apareceu numa tela, enorme – seu rosto cobria quase toda a parede da sala centenária, diante de um pequeno auditório ocupado majoritariamente de advogados. Ela então fez uma exposição sobre um conceito que ela mesma havia criado, o democracídio, o percurso, talvez inevitável, de uma democracia que cria mecanismos de se suicidar através dos seus próprios meios, um fenômeno novo tanto no Brasil como em outros países.

Foi a primeira vez que eu a vi falar, e me marcou como, por trás de um manto de formalidade, ela parecia estar assustada. Naquele dia, depois de meses fora do meu país, saí com um enorme aperto no coração ao ouvir uma representante da principal Corte falar de maneira tão contundente e honesta; ela parecia saber que até mesmo a capacidade de resposta do STF era limitada diante do achaque de uma força popular, populista e violenta. E eu passei a admirá-la. 

É eloquente que o mesmo ato que levou Bolsonaro ao banco dos réus no TSE, a reunião com os embaixadores sobre o qual discorreu o voto de Carmen Lúcia, tenha sido também o que deu origem a uma das mobilizações mais bonitas da sociedade civil recentemente, a carta e o evento em 11 de agosto rechaçando o golpismo bolsonarista e apoiando o STF.  

 

A única solução contra o tal do democracídio é justamente que as instituições cumpram a sua função, e que sejam aplaudidas e defendidas por isso. Nós, que nos julgávamos rebeldes, tivemos que aprender – e teremos que aprender ainda mais – a defendê-las repetidamente.
  

O que não significa deixar de pedir seu aprimoramento e sua democratização e, claro, seguir investigando também esse poder.  

Sabemos que o bolsonarismo não acabou na quinta-feira passada. E nem a sobrevida política do seu líder, como comprova a iniciativa de deputados do PL de armar um projeto de lei para anistiar o ex-presidente. Sabemos que arrastar a narrativa de vítima, os recursos, os processos, fazem parte da estratégia do populismo digital que vive de atiçar seus seguidores via redes sociais. Mas não é porque virão novos estratagemas que devemos deixar de dizer: essa semana, pelo menos, podemos respirar. 

É por isso que, hoje, celebro o fato de termos Carmen Lucia. 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública