terça-feira, 27 de junho de 2023

 

As digitais dos militares e os militares digitais 


Nas últimas semanas, graças ao trabalho de jornalistas e das polícias federal e civil do DF, ficou mais claro que a tentativa de golpe de 8 de janeiro teve mesmo enorme participação de militares, se é que não foi mesmo uma quartelada muito macambúzia. 

A coluna de Guilherme Amado mostrou que o carro usado na tentativa de ataque a bomba ao aeroporto de Brasília, na véspera de Natal, foi encontrado duas semanas depois com um sargento da Marinha – da ativa – também suplente de deputado federal pelo Republicanos, conhecido como Sargento Paulo. Segundo a polícia civil, a Hyundai Creta saiu de Brasília em 9 de janeiro.  

No celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid – da ativa – encontrou-se um documento que relata passo a passo o planos para o golpe: Bolsonaro encaminharia relatos de inconstitucionalidades do Judiciário aos comandantes das Forças Armadas e estes interviriam com base no famigerado artigo 142. 

No mesmo aparelho, a PF recuperou conversas do grupo de WhatsApp “...Dosssss!!!”, que reunia oficiais, incluindo atuais e ex-comandantes de unidades. As mensagens golpistas vão desde gente dizendo que o Exército poderia ter atuado “há muito tempo” através operações de contrainteligência, até ex-comandante do Batalhão de Apoio às Operações Especiais afirmando que a ruptura “já aconteceu” e subchefe do Estado-Maior do Exército implorando para Mauro Cid convencer Bolsonaro a dar um golpe de Estado. “Se a cúpula do EB [Exército Brasileiro] não está com ele, da divisão para baixo está. Assessore e dê-lhe coragem”, escreveu o coronel Jean Lawand Junior, segundo revelou Robson Bonin, da Veja. 

O assalto de Brasília em si incluiu ações coordenadas que podem bem ser parte do arsenal de sabotagem aprendido nos cursos de operativos especiais – assim como os atos terroristas de incêndio ao prédio da PF e derrubada de torres de energia em Rondônia – como apontou o repórter Allan de Abreu na Revista Piauí. 

Tem mais. PMs do DF contaram que houve não apenas inação do Batalhão da Guarda Presidencial, mas negativa de ajudar a PM a formar um cordão de contenção contra os invasores em 8 de janeiro. Um subtenente enquadrou  os militares para que eles parassem de “frouxura”. Após a invasão, a PM foi até o Quartel-General do Exército com o objetivo de efetuar prisões de golpistas que estavam ali acampados. Foram impedidos pelo Exército, como mostrou a reportagem de Aguirre Talento, do Uol.

Isso permitiu aos invasores fugirem de Brasília dentro de carros como a Hyundai encontrada com o sargento Paulo. 

Sabemos que o acampamento montado diante do QG do Exército foi o celeiro de onde partiram tanto a invasão quanto o ataque à sede da PF e a tentativa de explodir o aeroporto de Brasília.  
 
Sabemos, ainda, que a cúpula do Exército nada fez para desmontar esse acampamento e resistiu a diversas tentativas da PM.

(Por muito menos, o Exército fuzilou com 62 tiros o carro em que o músico Evaldo Rosa levava sua família para um chá de bebê, justamente sob a justificativa que ele estava sob área de proteção de uma unidade militar.) 
  
E quem estava nos acampamentos? Familiares e esposas de militares. Não podemos esquecer que, desde o começo da carreira política de Bolsonaro, sempre foram as mulheres de militares da ativa que fizeram protestos, já que seus maridos são proibidos de se pronunciar publicamente. 

Esse contexto é essencial para entender o que significa a presença constante da esposa do general Villas Boas no acampamento, assim como as conversas golpistas entre a esposa de Mauro Cid e Adriana Villas Bôas, filha do ex-comandante do Exército. 

Se a história recente ensina algo, é que essas senhoras estavam apenas dando voz aos maridos, covardes, que queriam um golpe mas tinham medo de serem punidos por isso. 

Há mais elementos, mas eu vou parar por aqui.

Diante da gravidade do que já se sabe, o mínimo que as Forças Armadas deveriam estar fazendo é começar um processo sério de purga contra aqueles que não só falaram, mas se envolveram em uma conspiração para derrubar nossa democracia.
  

Não é, obviamente, o que está acontecendo. Repetem-se explicações evasivas e lacônicas dizendo que as Forças abriram “um processo administrativo” e que “tais opiniões não representam o posicionamento oficial da força”. O ministro da Defesa, José Múcio, e o comandante do Exército, general Tomás Paiva, decidiram impedir que o golpista Jean Lawand Júnior assumisse uma representação militar em Washington, mas disseram a Lula que não expulsariam ninguém antes do fim da investigação do STF. Enquanto isso, a semente daninha do golpismo se amplia dentro da força.

A coisa é mais complicada do que se pensa. 

Como demonstram as conversas no grupo de WhatsApp, é impossível manter controle sobre o que dizem oficiais em ambientes semi-privados, como serviços de mensageria instantânea. Ou saber se conspiram dentro desses ambientes digitais. 

Com a revolução digital, entramos em uma era em que a proibição dos militares de falar de política torna-se, por questões técnicas, antiquada. Mesmo sendo improvável que “todos da divisão para baixo” sejam a favor de uma quebra democrática, os poucos que se aventuraram a conspirar mantêm, ainda, enorme poder social.  

Estamos falando de uma casta de servidores públicos com estabilidade financeira, liderança hierárquica, presença em todo o território, e que, portanto, são referências sociais e culturais. Como lidar com esse grupo altamente radicalizado em um mundo digital fragmentado em que eles se tornaram micro-influenciadores? 

Me parece que a digitalização da política só aumenta os demais problemas da caserna que tardamos em enfrentar. Não será possível manter a hierarquia e disciplina num mundo do debate digital; nossa única saída é construir um Exército realmente legalista e democrático, de cabo a general. Isso passa pela punição, claro, mas também pela mudança radical do ensino militar e pela ampliação da participação da sociedade.  

Não me parece ser esse o caminho que está sendo adotado nem por José Múcio, nem pelo general Tomás Paiva. E nem por Lula. 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

segunda-feira, 26 de junho de 2023

FORÇA DO CAPITAL FINANCEIRO E MISÉRIA

 por: Ladislau Dowbor

Thomas Piketty teve um papel importante nessa redefinição do pensamento econômico. Analisando O Capital no Século 21, ele mostrou uma mudança fundamental nas economias atuais: a produção de bens e serviços cresce em torno de 2,5% ao ano, enquanto as aplicações financeiras rendem entre 7% e 9%, o que significa simplesmente que o sistema financeiro está drenando as atividades produtivas. A financeirização tornou-se não apenas evidente, mas os economistas de todo o mundo voltaram sua atenção para um conjunto de transformações dela decorrente. Em seus estudos mais recentes, Piketty mostrou como isso mudou a relação entre poder econômico (e particularmente financeiro) e poder político. Com contribuições do WID (World Inequality Database) e de economistas como Gabriel Zucman, hoje podemos ter uma compreensão muito mais clara não apenas do aumento dramático da desigualdade, mas de como o dinheiro virtual (97% da liquidez hoje em dia são apenas sinais magnéticos, não dinheiro impresso pelo governo) permite uma gigantesca drenagem de riqueza.

Não se trata de “mercados”, mesmo que o chamemos assim. Trata-se de um poder radicalmente concentrado. Larry Fink, chefe da BlackRock, uma corporação de gestão de ativos, administra US$ 10 trilhões; o orçamento federal dos Estados Unidos da América é de US$ 6 trilhões. O rabo está abanando o cachorro. Compreender o dreno financeiro improdutivo da economia está levando a um amplo conjunto de estudos sobre sistemas de distribuição, tributação, financiamento de serviços públicos como saúde, educação, políticas ambientais. Em particular, ficou evidente a lacuna de governança entre os fluxos financeiros, um processo de escala global, e a regulação financeira, fragmentada entre tantos países. A evasão fiscal é escancarada, e em lugares próximos como, por exemplo, Delaware. O que ficou evidente é que atualmente não temos regulação de mercado (os gigantes corporativos mundiais gostam do nome, “mercados”, e afetam agir como se estivessem obedecendo a “eles”) nem regulação governamental (qualquer esforço de regulação em nível nacional leva a corporação a mudar seu local de residência fiscal).

sexta-feira, 23 de junho de 2023

A DÍVIDA

 O aumento do serviço da dívida (juros e amortizações) desvia os gastos de bens e serviços, encolhendo a economia e, assim, reduzindo o investimento e novas contratações.
Michael Hudson, J is for Junk Economics, 2017, p. 258

UMA NOVA ORDEM

 Os economistas estão se conscientizando da insustentabilidade do atual modelo social e fiscal.
Thomas Piketty, Le Monde, 7 de maio de 2023

EX-MULHER DE ARTUR LIRA O ACUSA DE VIOLÊNCIA SEXUAL

 
REPORTAGEM
Ex-mulher de Arthur Lira o acusa de violência sexual
Alice Maciel/Agência Pública
Pela primeira vez, Jullyene Lins afirma ter sido vítima de estupro em 2006

21 de junho de 2023
17:28
Alice Maciel
GÊNERO E DIVERSIDADE
PODER
Arthur Lira
Justiça
política
violência
Investigação exclusiva da Agência Pública se debruçou sobre o processo judicial baseado na Lei Maria da Penha que envolve diretamente o deputado federal Arthur Lira (PP-AL) e sua ex-esposa, Jullyene Lins, que o acusa agora de violência sexual. “Minha família vai saber exatamente o que aconteceu. Eu não quero mais viver com isso, carregar isso na minha história”, disse em depoimento à repórter Alice Maciel. Nossa reportagem procurou nas últimas semanas todas as principais testemunhas registradas no inquérito 81/2006 e teve acesso ao laudo do corpo de delito que originou o processo sobre a suposta violência física. O caso, iniciado em 2007, foi concluído nove anos depois, com a absolvição de Arthur Lira pelo STF. Os detalhes dessa história você lê a seguir.

Aviso: este material contém relatos de suposta violência sexual. As denúncias podem causar incômodo em algumas pessoas – mas são narradas na reportagem pelo interesse público.

Já passava das 11 horas da noite quando Jullyene Lins chegou à 9ª delegacia da Polícia Civil de Maceió (AL) para registrar um boletim de ocorrência contra o ex-marido. Havia pouco mais de seis meses que ela tinha se separado do recém-reeleito deputado estadual de Alagoas Arthur Lira (PP). Em seu depoimento, ela relatou que Lira a havia agredido física e verbalmente e a teria ameaçado de morte durante uma crise de ciúmes. Desde aquele domingo, 5 de novembro de 2006, ela conta que nunca mais foi a mesma.

Nove anos depois, no dia 29 de setembro de 2015, o parlamentar foi inocentado das acusações pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em um processo contraditório cheio de idas e vindas. A Agência Pública ouviu testemunhas e teve acesso ao laudo médico feito à época, que reforça a versão da ex-esposa, de que teria apanhado do atual presidente da Câmara dos Deputados.

No inquérito policial número 81/2006, que deu início ao processo contra Lira, Jullyene Lins relatou ter sido agredida por cerca de 40 minutos com “tapas, chutes, pancadas, foi arrastada pelos cabelos, tendo sido muito chutada no chão”. Além disso, ela narrou pela primeira vez, em entrevista exclusiva à Pública e na presença de sua advogada, que o hoje deputado federal e presidente da Câmara dos Deputados a teria estuprado naquela noite. “Arthur Lira me estuprou”, disse.

Ao longo da conversa que aconteceu no último dia 6 de junho, Jullyene teve taquicardia, chorou e tremeu ao relatar o que teria acontecido  naquele dia. “Ele me violentou, ele me violentou”, repetiu diversas vezes.

A acusação de violência sexual de Jullyene não consta em seu depoimento à polícia realizado à época. Ela relata que, por vergonha da família, da sociedade e medo do deputado e ex-marido, conviveu com o segredo até meses atrás, quando decidiu revelar ao atual marido.

Com os três filhos já crescidos, Jullyene justifica que tomou coragem de tornar pública essa história “por não suportar mais viver com essa dor”. “Eu aguentei isso esse tempo todo, eu guardei por 17 anos isso por conta dos meus filhos, por conta da minha família, a vergonha também, a gente se sente um lixo. Eu estou falando isso agora porque preciso tirar esse peso das minhas costas, não é para denegrir [sic] a imagem dele”, destaca. 

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“Meus filhos já estão grandes, já vão entender. Minha família vai saber exatamente o que aconteceu. Existiu Jullyene antes daquela noite e a Jullyene após aquela noite. Eu não quero mais viver com isso, carregar isso na minha história”, acrescenta.

Jullyene deseja ainda, a partir de seu relato, encorajar outras mulheres que sofrem ou sofreram violência de homens públicos a denunciar “todo e qualquer tipo de agressão”. “Eu sei o preço que eu vou pagar por estar abrindo isso agora, por estar tirando esse peso, mas eu acho que já chega. É para encorajar outras mulheres a não viverem essa relação abusiva, de humilhação e de chantagens.”

Por meio de sua assessoria de imprensa, Arthur Lira foi procurado mas optou por não comentar o conteúdo das acusações. 

O começo de tudo
A história de Jullyene Lins e Arthur Lira começa em 1996, quando eles se conheceram em uma boate em Maceió, apresentados por um amigo em comum. Após três meses de namoro, eles foram morar juntos, ela com 21 anos e ele com 27. Filho de político, Lira exercia seu primeiro mandato de vereador na cidade. 

No início do relacionamento, Jullyene conta que ficou deslumbrada com a vida de luxo que o então marido a proporcionava, “que tinha tudo que queria”. “Só depois que a gente amadurece que enxerga a futilidade disso”, lamenta.

Ao longo da relação, segundo ela, Arthur Lira sempre foi “muito ciumento e possessivo”, mas até a noite do dia 5 de novembro de 2006 nunca a tinha agredido e cometido a violência sexual agora relatada. De acordo com Jullyene, “como em muitos casamentos”, o ato sexual entre os dois acontecia só quando ele queria, e ela não entendia a situação como violência.

Da mesma forma, ela diz que só foi entender anos depois que vivia o que considera um relacionamento abusivo. “Eu não podia usar um biquíni, eu não podia ficar em casa de short, só podia andar de calça jeans. Eu era a dondoquinha, tinha que andar bem-vestida, arrumada.”

Segundo ela, Lira teria exigido que a esposa “fosse uma dona de casa perfeita”. “Ele chegava em casa passando o dedo no móvel e dizia: ‘Você não viu isso, que está com poeira? Você é uma inútil, você não presta para nada. Só presta mesmo pra cuidar dos meninos, pra dar educação. Pelo menos não faz eu passar vergonha em um restaurante’”. Se tinha uma blusa amassada, ele pegava, amassava mais, jogava no chão e gritava comigo perguntando o que eu estava fazendo dentro de casa, que não estava vendo que a blusa dele estava mal passada”, relata.

Jullyene conta que a relação dos dois começou a “desandar” quando  engravidou do primeiro filho do casal. “Foram meses difíceis porque eu tive uma gravidez de risco”, lembra. Ela afirma que, ao longo desse período, o marido não parava em casa e que se sentia muito sozinha. Ela diz que o relacionamento já não andava bem, quando em 2005, já grávida do segundo filho, soube, pelo próprio Lira, que ele tinha tido uma filha fora do casamento. Além disso, ela afirma que soube de outro relacionamento dele fora do casamento.

Apesar das brigas frequentes, ela relata que os dois decidiram manter um casamento de fachada até o fim das eleições de 2006, quando o político foi eleito para o terceiro mandato na Assembleia Legislativa de Alagoas. Os dois já estavam separados desde abril daquele ano, mas Jullyene ressalta que só depois de seis meses, e após o pleito, passou a frequentar lugares públicos, como bares, restaurantes e boates.

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Pela primeira vez, Jullyene Lins acusa seu ex-marido, Arthur Lira, de violência sexual
A noite em que Jullyene diz ter sido violentada
Segundo Jullyene, Arthur Lira ficou sabendo de suas saídas e no dia 5 de novembro de 2006 telefonou para tirar satisfações. Após a ex-esposa confirmar que um amigo havia se interessado por ela, Lira teria dito que iria até sua casa para conversarem pessoalmente. O parlamentar teria chegado por volta das 21 horas no apartamento da ex-esposa. “Quando eu abri a porta, foi um murro na cara”, diz ela.    

Durante cerca de 40 minutos, conforme relato de Jullyene, ele a teria agredido com “tapas, murros, chutes e a puxado pelo cabelo”. Ainda de acordo com ela, enquanto a agredia, Lira a teria chamado de “rapariga” e “puta”. O parlamentar também teria feito ameaças e teria dito, ainda segundo ela, que a mataria para ficar com os filhos, “que era deputado e não passaria por corno e que ninguém iria desmoralizá-lo”.

Essa parte do relato de Jullyene Lins consta em seu depoimento à Delegacia Especial de Defesa dos Direitos da Mulher em 18 de abril de 2007. Na época ela não relatou que Lira também a teria estuprado naquela mesma noite.

“Aconteceu uma coisa que eu nunca contei a ninguém, ele disse pra mim: ‘Você está atrás de macho, eu vou lhe mostrar quem é o homem’. Ele me puxava pelo cabelo e dizia: ‘O homem aqui… você é minha mulher, você não vai ter outro homem, você é minha, você é a mãe dos meus filhos. Você quer me desmoralizar, vamos lá para o quarto agora que eu vou te mostrar quem é o homem aqui, você não quer isso? Você não está querendo? Atrás de homem pra quê? Pra fuder? Então vou lhe mostrar agora”. Foi quando, segundo ela, ele a teria puxado pelo cabelo e a violentado.

“E eu esperneando, eu ainda consegui espernear e gritava muito, mas ele tapava minha boca para que as pessoas não escutassem”, relata.

Além dos filhos, o único adulto presente na casa era a babá do caçula, à época com 8 meses. Luciana* teria escutado os pedidos de socorro e ligado para a ex-sogra de Lira, que chegou minutos depois acompanhada do irmão de Jullyene. As agressões só teriam cessado quando um tio dela, já falecido, chegou ao local e, posteriormente, o pai de Arthur Lira, Benedito de Lira, que negou os fatos em conversa com a reportagem. “Ela não está falando a verdade, até porque meu filho não tem essa prática. Ela se separou e não deixa ele em paz”, defendeu.

Assim que o ex-marido foi embora, Jullyene conta que foi à delegacia para lavrar o boletim de ocorrência (BO). Segundo ela, o Instituto Médico Legal estava fechado e só retornou para fazer o exame de corpo de delito no dia seguinte, às 12h30.

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Boletim de ocorrência registrado por Jullyene em 5 de novembro de 2006
O laudo do exame, ao qual a Pública teve acesso, registra que “houve ofensa à integridade corporal ou à saúde do paciente”, e que para tal foi usado “instrumento contundente”. Ainda de acordo com o documento, Jullyene estava com oito hematomas nas regiões da lombar, glúteo, coxas, antebraços, pernas e se queixava de dores na cabeça, no pescoço, no abdome, mas nessas partes não haviam “lesões visíveis”.

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Exame de corpo de delito registra “ofensa à integridade corporal” de Jullyene
Uma das peritas que assina o laudo, Maria Luisa Duarte, disse à reportagem que não se lembra dos detalhes do exame. “Realizava inúmeras perícias durante o plantão e infelizmente não há como lembrar, exceto quando fugiam (que não é o caso deste laudo) à rotina dos achados”, ressaltou. Procurado, o delegado Dalmo Lima Lopes, que registrou o BO à época, não respondeu às tentativas de contato.

Testemunhas confirmaram a violência física à polícia
Além do exame de corpo de delito, quatro testemunhos do que teria acontecido naquela noite deram embasamento ao inquérito policial que indiciou Arthur Lira pelas supostas violências físicas, em 16 de agosto de 2007. “O exame de corpo de delito foi a prova material robusta, técnica, isenta de qualquer julgamento. Eu tinha prova material, era inequívoca, as testemunhas falavam de forma coerente, contavam a narrativa, os depoimentos eram verossímeis com o fato”, afirmou à Pública a delegada que presidiu o inquérito, Fabiana Leão Ferreira.

Com base nas provas colhidas no inquérito policial, o procurador-geral da República Roberto Gurgel ofereceu denúncia contra Lira em 9 de março de 2012.

Ao longo da investigação, a polícia ouviu duas mulheres que trabalhavam na casa, a mãe e o irmão de Jullyene. À época, todos eles confirmaram as agressões.

A primeira pessoa a prestar depoimento na investigação foi Gabriela*, funcionária de Jullyene havia quase dois anos. Ela não presenciou o fato, mas relatou à polícia, no dia 16 de janeiro de 2007, que quando chegou para trabalhar, na segunda-feira, ficou sabendo por outros funcionários que sua patroa havia sido agredida no dia anterior pelo ex-marido. Gabriela confirmou a versão à Pública. “O que eu sei é o que todo mundo sabe. Tudo o que eu sei está nos autos, não tenho mais nada a falar”, acrescentou.

Um dos testemunhos mais contundentes que consta no inquérito é o da babá do caçula do casal, que teria presenciado a violência física e pedido socorro aos familiares de Jullyene. Na ocasião, Luciana* disse à polícia que estava com muito medo por estar se envolvendo no caso, pelo fato de Arthur Lira ser um homem influente e considerar-se “peixe pequeno”.

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Testemunho de Luciana à delegada após a suposta violência física sofrida por Jullyene
Seis anos depois, os advogados de Lira anexaram ao processo uma declaração de Luciana afirmando que ela não presenciou a agressão e que assinou o depoimento à delegacia da mulher, em 24 de abril de 2007, sem ler, favorecendo a defesa do deputado. A reportagem procurou Luciana, mas não obteve retorno. Uma pessoa próxima a ela disse à Pública que Luciana ainda tem muito medo e não falaria por temer retaliações. “Desiste, ela não comenta esse caso, tem medo”, alertou a fonte.

A mãe e o irmão de Jullyene também voltaram atrás em seus depoimentos, durante interrogatório em 10 de novembro de 2014. Eles confirmaram que estiveram no apartamento naquela noite, mas alegaram que o casal só teria discutido. Assim como Luciana, a ex-sogra de Lira afirmou que assinou seu testemunho à Polícia Civil sem ler e demonstrou esquecimento. Já seu filho ressaltou que acompanhou a irmã até a delegacia porque Jullyene teria lhe dito que tinha apanhado do ex-marido. “Só ouvi ela chorando muito, mas sinais de agressão eu não vi”, acrescenta, contrariando o laudo de corpo de delito. Os dois também não falaram com a Pública.

A própria Jullyene chegou a falar que era tudo mentira, mas alegou depois que fez isso por ter sido ameaçada por Lira. Ela própria teria pedido aos familiares que mudassem o depoimento. Atualmente a relação dela com a mãe e o irmão está rompida.

Os registros do inquérito
Em seu relato à Polícia Civil, registrado no inquérito, Luciana contou que estava na cozinha quando ouviu o barulho de um tapa, após Jullyene ter aberto a porta de casa para Arthur Lira. Ela afirmou também que o escutou falando: “Eu vou dar em você de mão fechada, que é para não deixar hematomas e ninguém escutar”.

Luciana disse que no momento foi para seu quarto, de onde teria ouvido os gritos de Jullyene, que “pedia para que o Arthur não a matasse”. Ela destacou, durante o depoimento, que pensou em ajudar a patroa, mas desistiu. Em um dado momento, no entanto, Jullyene teria ido até a cozinha e pediu que a funcionária telefonasse para sua mãe.

A ex-funcionária conta que nessa hora “percebeu que a Jullyene estava quase desmaiando de tanta pancada”. Segundo ela, logo em seguida Arthur Lira chegou e teria puxado a ex-esposa pelo braço, a levado para a sala e continuado com a agressão. Nesse momento, segundo o depoimento, ela teria ligado para pedir ajuda para Rosalina*, a mãe de Jullyene.

Rosalina confirmou tudo quando prestou depoimento em 22 de maio de 2007. Ela contou que Luciana lhe telefonou dizendo que deixaria a porta de serviço aberta porque Arthur Lira havia mandado fechar todo o apartamento. Ao chegar ao local, ela teria encontrado a filha caída no chão da sala, e o deputado por cima dela, agredindo-a.

Rosalina teria puxado o ex-genro pela camisa e perguntado o que estava acontecendo. Segundo ela, Arthur Lira teria respondido que a ex-esposa“estava num restaurante aos beijos com outro homem e que tinha o direito de agredi-la, sim, já que a mesma não tinha pai”.

O irmão de Jullyene que acompanhou a mãe até o apartamento deu depoimento semelhante, no dia 18 de abril de 2007. Segundo ele, Lira “estava muito transtornado” e a irmã, com marcas vermelhas no pescoço, sem caminhar direito, reclamando de dores no abdômen”.

Novas denúncias e prisão
Passados oito meses daquele dia, em 16 de julho de 2007, Jullyene Lins voltou à 9ª Delegacia da Polícia Civil de Maceió para registrar um novo boletim de ocorrência contra Arthur Lira. Dessa vez, por ameaça. A acusação prescreveu em 15 de setembro de 2009, sem julgamento.

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O segundo BO, de 2007, registrado por Jullyene, relata suposta ameaça de Lira
“A vítima estava em sua residência quando soube através de sua babá que seu ex-marido tinha ido até a portaria do prédio e mandou um recado pela mesma, dizendo que os dias da vítima estão contados; que o mesmo tomou essa atitude porque a vítima não permitiu que ele  visitasse seu filho menor, pois não era dia de visita”, registra o documento.

Em depoimento à Delegacia da Mulher, a funcionária que trabalhava com Jullyene confirmou a versão. Segundo Lorena*, o deputado foi até o apartamento levar as malas do filho do casal e, ao chegar lá, interfonou dizendo que queria ver o caçula. Ao receber a resposta negativa da babá, Lira teria dito que os dias de Jullyene estavam contados e que ele iria entrar com uma ação na Justiça para ver o filho. 

Jullyene afirmou em seu relato à polícia que, ao ficar sabendo, olhou pela janela e viu que o carro do ex-marido estava parado na esquina. Ela conta que se sentiu ameaçada e que seu advogado a orientou a registrar a ocorrência. Ainda de acordo com Jullyene, no trajeto para a delegacia, ela percebeu que Lira a estava perseguindo, mas em determinado momento ele teria desviado o caminho.

Por conta dessa denúncia, Jullyene conseguiu no Tribunal de Justiça de Alagoas uma decisão de medida protetiva. No dia 18 de dezembro de 2007, o desembargador Orlando Monteiro Cavalcanti Manso determinou: “o indiciado Arthur César Pereira de Lira está terminantemente proibido de manter contato pessoal, telefônico, por escrito, ou qualquer outro meio com a vítima Jullyene Cristine Santos Lins e seus familiares, bem como com as testemunhas”, diz a decisão. 

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Medida protetiva concedida à Jullyene em 2007
A Justiça tentou diversas vezes intimar o deputado, mas enfrentou resistência, levando o desembargador a decretar a prisão de Lira por “coação no curso do processo”, conforme informações do inquérito policial.

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Relator acusou Lira de “coação no curso do processo”
O oficial de justiça José Cícero do Nascimento relatou nos autos que, no dia 11 de março de 2008, foi até a Assembleia Legislativa para entregar a intimação a Lira e que ouviu do parlamentar: “Eu recebo já essa merda”. José Cícero certificou, segundo os registros, que aguardou Lira por uma hora e que ao longo desse tempo surgiram várias oportunidades para que ele assinasse o documento.

“Certifico ademais, que não é a primeira vez que o Deputado Arthur Lira destrata um Oficial no cumprimento de um mandado, situação parecida, passou o Sr. Luiz Carlos – Oficial de Justiça, no dia 01 de janeiro de 2007, quando o Deputado presidia a Sessão de Eleição da Mesa Diretora, afirmando que não iria assinar o referido ofício”, acrescentou Nascimento.

Para o desembargador Orlando Manso, Lira tentou paralisar a ação da Justiça, “com objetivo de intimidar a própria vítima Jullyene Cristine Santos Lins, sua ex-esposa, pensando em fazê-Ia desistir da ação penal antes do oferecimento da denúncia”.  O deputado chegou a ser preso no dia 1o de abril de 2008, por “coação no curso do processo”.

Segundo Manso, com o transcorrer dos inquéritos policiais, “tornou-se clarividente a personalidade violenta do réu, não só contra sua ex-esposa”, mas também “com o Serventuário da Justiça no exercício de seu mister profissional em cumprimento às determinações deste Relator”, escreveu.

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Segundo desembargador, Lira tentou paralisar a ação da Justiça
Em sua decisão, o desembargador demonstrou indignação com a conduta de Lira. “A figura de Deputado Estadual, que goza de prerrogativas constitucionais, não o transforma em um semi-Deus, inatingível, inabalável, posto que em uma Democracia todos estão abaixo da lei e da ordem, do mais humilde cidadão ao mais graduado na função pública, mesmo sendo Deputado Estadual. Basta!”

O processo por crime qualificado na Lei Maria da Penha correu no Tribunal de Justiça de Alagoas até Lira ser eleito deputado federal, em 2010. Em abril de 2011, por uma razão legal, o caso foi encaminhado ao STF. O motivo: parlamentares detentores de foro especial por prerrogativa de função, o chamado “foro privilegiado”, só podem ser processados pela Procuradoria Geral da República (PGR) no STF.

Divulgação TJAL
Processo correu no Tribunal de Justiça de Alagoas mas só foi julgado no STF nove anos depois
Nove anos depois, Lira é inocentado
Quando Arthur Lira foi denunciado pela primeira vez por Jullyene, em novembro de 2006, ele ainda era deputado estadual em Alagoas. O julgamento, no entanto, ocorreu nove anos depois, em setembro de 2015, quando o político já influente em Brasília, estava em seu segundo mandato na Câmara dos Deputados.

Nesse período, a esposa do advogado de defesa de Jullyene foi nomeada no gabinete de Arthur Lira – onde está até hoje – e Jullyene, sua mãe, irmão e a babá voltaram atrás em seus depoimentos, negando as agressões do parlamentar. Como já relatado pela denunciante, Jullyene alega que mudou o depoimento sob ameaça. Segundo ela, Lira teria lhe dito após o ocorrido: “Onde não há corpo, não há crime”.

“Ele foi até a minha casa. Tinha uma mesa grande na varanda, pediu para falar comigo e disse batendo na mesa – porque ele tem mania de falar batendo na mesa – ‘Você vai tirar essa denúncia, você vai para a audiência e vai desmentir tudo porque eu vou tirar os meninos de você. Ou você faz isso, ou eu tomo os meninos de você’. Os meninos eram todos pequenos. Eu já tinha medo, eu estava sem dinheiro, o meu advogado sumiu”, acrescentou.

Segundo ela, durante a audiência, o segurança e o motorista de Lira a buscaram em casa. “Para eu desmentir tudo. Não fui com meu advogado, fui com advogado dele. E ele ainda me cutucando por debaixo da mesa. O juiz olhando para mim como quem diz assim: ‘Fale’”, afirmou.

Alice Maciel/Agência Pública
Jullyene mudou o depoimento, segundo ela, por ter sido ameaçada. Familiares também mudaram versão
De acordo com os autos, o advogado que a acompanhou na audiência às 12h30 de 15 de outubro de 2013 – que teria ligação com Lira, segundo Jullyene – é Luiz de Albuquerque Medeiros Neto. Seu nome apareceu recentemente no noticiário por ser o proprietário de uma sala em Maceió que foi alvo de busca e apreensão da Polícia Federal (PF) na Operação Hefesto, como revelou o site Metrópoles.

No local está registrada a sede da empresa do ex-assessor de Lira, Luciano Cavalcante, investigado no suposto esquema de fraude na compra de kits de robótica para municípios alagoanos; e também abrigou o diretório do União Brasil em Alagoas – presidido por Cavalcante. Medeiros Neto aparece também em registros da Câmara dos Deputados como secretário parlamentar em 2012 e 2014.

A audiência foi requerida pela defesa de Lira em agosto de 2012, após os advogados terem juntado aos autos um “termo de renúncia à representação criminal”, assinado por Jullyene, onde ela justifica que teria denunciado o ex-marido por estarem na época envolvidos em um conturbado processo de separação judicial.

“Passados quase 06 anos de tal representação, iniciar-se eventual processo criminal contra Arthur por aqueles fatos que foram objeto de minha representação se torna prejudicial à minha própria pessoa e à estabilidade psicológica de nossos filhos eis que os problemas então existentes foram resolvidos, e tal procedimento apenas traria à tona uma desavença pretérita que o tempo se encarregou de resolver”, escreveu, acrescentando: “Venho, através da presente, retratar-me de tal ato, requerendo, portanto, seja devidamente arquivado todo e qualquer procedimento existente contra Arthur Cesar Pereira de Lira que tenha se originado”.

Além de negarem a agressão à sua ex-companheira, os advogados de Lira questionaram o laudo de exame de corpo de delito, as declarações da vítima e das testemunhas. “Ora, as cinco lesões descritas no laudo pericial, todas na região da coxa e braço, não são compatíveis com 40 minutos seguidos de agressões como tapas, chutes, pancadas e puxão de cabelos. Da mesma forma, o depoimento da testemunha Luciana* [a babá] não é compatível com o referido laudo médico”, destacou a defesa do deputado.

Com base nesses argumentos e na suposta retratação de Jullyene, os advogados de Lira, além da audiência, solicitaram a extinção da ação.

A então procuradora-geral da República Helenita Caiado de Acioli, no entanto, contra-argumentou: “Qualquer manifestação da vítima que represente uma retratação, seja por escrita, seja em audiência, mostra-se vazia e inapta a produzir efeitos no tocante à ação penal, uma vez que o interesse público na apuração do crime de lesão no ambiente doméstico, por zelar por valores que transcendem o plano individual, como a integridade da família e da mulher, sobrepõe-se, em muito, os interesses das partes envolvidas”, manifestou-se em 20 de agosto de 2013.

“Inicialmente, cumpre notar que o citado laudo pericial foi produzido no dia seguinte às agressões sofridas, tempo suficiente para o desaparecimento de eventuais eritemas [hematomas], mas insuficiente para a constatação de equimoses, motivo pelo qual os peritos puderam responder positivamente ao quesito sobre a existência de ofensa à integridade corporal da vítima, apontando como meio produtor da ofensa ‘instrumento contundente’, o que é compatível com as declarações prestadas pela ex-companheira do denunciado e as testemunhas inquiridas na fase extrajudícial”, escreveu Helenita Acioli, posicionando-se a favor do recebimento da denúncia pelo STF. 

Pablo Valadares/Câmara dos DeputadosPablo Valadares/Câmara dos Deputados
Lira foi inocentado pelo caso nove anos depois, quando já era deputado federal em Brasília
Razões da absolvição pelo STF
A Procuradoria-Geral de República (PGR) havia apresentado a denúncia contra o parlamentar em 9 de março de 2012, seis anos após o suposto crime, a qual só foi recebida pelo STF em 5 de dezembro daquele ano, com cinco votos favoráveis e três contrários – a ministra Cármen Lúcia se ausentou e o então ministro Joaquim Barbosa não votou porque presidia a sessão.

Apesar de não ter descartado a suposta agressão, no dia 10 de março de 2015 o então procurador-geral Rodrigo Janot mudou o posicionamento anterior do órgão e manifestou-se pela absolvição de Arthur Lira: “Com efeito, as lesões descritas no laudo e reveladas nas fotografias não tendem a ter sido produzidas em entrevero descrito como tendo sido a tal ponto violento. É provável, com efeito, que tenha havido alguma agressão pelo réu a Jullyene Lins: o modo como ela e outras testemunhas acudiram à autoridade policial, inclusive com sujeição a exame pericial e fornecimento de fotografias, sugere que assim tenha sido. Mas não se trata da probabilidade elevadíssima que, no juízo de prova, além de dúvida razoável, autoriza a condenação penal”, destacou.

E concluiu: “Impende, portanto, como forma de resguardar a respeitabilidade do sistema de justiça criminal, não só absolver o réu, mas possibilitar à instância ordinária a promoção da responsabilidade de Jullyene Lins pelo crime de denunciação caluniosa”.

Quatro meses depois, em setembro de 2015, a Segunda Turma do STF absolveu Arthur Lira por ausência de provas. Os ministros também entenderam que o crime prescreveu, por demora na apresentação da denúncia.

As mudanças nos depoimentos e os argumentos da defesa de Lira sobre o laudo médico também motivaram a absolvição. “Apesar do laudo de exame de corpo de delito comprovar que a vítima apresentava lesões leves no momento da realização do exame, não há, nos autos, outras provas que corroborem um juízo condenatório. Ademais, vale dizer, os tipos de lesões atestadas no laudo pericial não indicam agressões conforme declarações iniciais da vítima, o que, agregado à mudança de versão nos depoimentos, acarreta dúvida sobre a veracidade dos fatos narrados na denúncia”, disse o falecido relator do caso, ministro Teori Zavascki, que foi acompanhado pelos ministros Celso de Mello, já aposentado, e Cármen Lúcia, à época integrantes da Segunda Turma do STF. Os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes se ausentaram, e o ministro Celso de Mello presidiu a sessão.

Ainda de acordo com Zavascki, o crime de lesão corporal no âmbito de violência doméstica não restou suficientemente comprovado. “A bem da verdade, não há prova a indicar que a vítima tivesse, de fato, sido agredida ou que o réu fosse o autor das lesões leves que a vítima apresentava no momento do exame perícia, porquanto, como se verifica das declarações da própria vítima, ela teria “inventado” as agressões narradas na denúncia por motivo de vingança”, acrescentou o relator em seu voto.

Histórias que se repetem Brasil afora
No julgamento que absolveu Arthur Lira, os ministros da Segunda Turma do STF não consideraram que nos casos de violência doméstica é comum as supostas vítimas voltarem atrás em seus depoimentos, conforme destacou o ex-Ministro Marco Aurélio Mello em seu voto para acatar a denúncia da PGR, em 5 de dezembro de 2012.

“É uma constante. A agressão ocorre, no meio doméstico, e, posteriormente, tendo em conta até mesmo a paixão, a agredida se arrepende e dá o dito pela não dito, para haver, a seguir, quase sempre, como revelam as estatísticas da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, agressão em dose maior. Isso aconteceu com aquela que deu origem à Lei que teve o próprio nome — Maria da Penha. E foi preciso um pronunciamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para o Brasil marchar na campanha normativa e promulgar a Lei no 11.340/2006”, destacou o membro da Corte na ocasião. 

A Lei Maria da Penha tinha recém-nascido quando Jullyene Lins denunciou Arthur Lira por agressão e ameaça. Ela foi sancionada no dia 7 de agosto de 2006, ou seja, apenas três meses antes.

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De lá pra cá, muito se avançou. Mais recentemente, por exemplo, em julho de 2021, foi sancionado pelo governo federal o projeto que incluiu no Código Penal o crime de violência psicológica contra a mulher. 

Mas, apesar de o Brasil ter uma das melhores leis contra violência doméstica no mundo, os números de agressão contra mulheres são alarmantes. 

Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública encomendada junto ao Instituto Datafolha, divulgada em março deste ano, revelou que uma a cada três mulheres brasileiras com mais de 16 anos já sofreu violência física e/ou sexual de seus parceiros ou ex-parceiros.

Isso significa, conforme os dados, que 33,4% da população feminina do país já foi vítima de violência física e/ou sexual por parte de seus parceiros íntimos ou ex-companheiros.

Ainda de acordo com o estudo denominado “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, se forem considerados casos de violência psicológica, 43% das mulheres brasileiras já foram vítimas do parceiro íntimo. Dentre as principais vítimas, estão as divorciadas, além das negras, de baixa escolaridade e com filhos.

O estudo, que está em sua quarta edição, apontou a primeira vez o ex-companheiro como o principal autor da violência (31,3%), seguido pelo atual parceiro íntimo (26,7%). O autor da violência é conhecido da vítima na maior parte dos casos (73,7%).

De acordo com a pesquisa, 45% das mulheres vítimas de violência relataram não terem tomado atitudes diante da agressão mais grave que sofreram, e 38% afirmaram que “resolveram a situação sozinhas”.

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das testemunhas no processo.

    
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Colarinhos brancos, punhos sujos

Não são apenas crimes de colarinho branco que recaem sobre alguns parlamentares do Congresso Nacional. Para além da malversação de verbas públicas, com emendas direcionadas para aliados políticos, orçamentos secretos e propinas de lobistas, nosso representante máximo do Centrão – e presidente da Câmara dos Deputados –, Arthur Lira, prova que até acusações de crimes hediondos, como o estupro, são toleradas, sob um manto de silêncio, a depender da força do suspeito.

“Aconteceu uma coisa que eu nunca contei a ninguém, ele disse pra mim: ‘Você está atrás de macho, eu vou lhe mostrar quem é o homem’. Ele me puxava pelo cabelo e dizia: ‘O homem aqui… você é minha mulher, você não vai ter outro homem, você é minha, você é a mãe dos meus filhos. Você quer me desmoralizar, vamos lá para o quarto agora que eu vou te mostrar quem é o homem aqui, você não quer isso? Você não está querendo? Atrás de homem pra quê? Pra fuder? Então vou lhe mostrar agora.” Foi quando o deputado Arthur Lira a teria puxado pelo cabelo e a violentado. 

A cena chocante, que teria ocorrido em 5 de novembro de 2006, foi narrada pela ex-mulher de Lira, Jullyene Lins, à repórter Alice Maciel, que investigava a história desde o ano passado, quando revelou que Arthur Lira só havia reconhecido a paternidade de uma filha com doença rara, nascida fora do casamento com Jullyene, depois que a mãe entrou na Justiça por não ter recursos para pagar o medicamento da menina, então com 7 anos. Àquela altura, Jullyene, que foi casada dez anos com Lira, já havia dito à imprensa que ele a tinha espancado, com socos e pontapés, naquele 5 de novembro, e que depois a havia ameaçado de morte por ela ter denunciado a violência doméstica que sofria à polícia. 

Não havia, porém, falado da acusação de estupro, o que só fez agora, na reportagem publicada nesta quarta-feira, depois de estabelecida a confiança com a jornalista da Pública, mais de um ano depois do primeiro contato. “Eu aguentei isso esse tempo todo, eu guardei por 17 anos isso por conta dos meus filhos, por conta da minha família, a vergonha também, a gente se sente um lixo. Eu estou falando isso agora porque preciso tirar esse peso das minhas costas, não é para denegrir [sic] a imagem dele”, disse Jullyene ao revelar o alegado estupro.    

Mas a repórter Alice Maciel fez mais do que trazer as acusações de violência sexual narradas por Jullyene. Ela se debruçou sobre o processo judicial embasado na Lei Maria da Penha, movido a partir do inquérito policial aberto com o Boletim de Ocorrência lavrado por Jullyene na noite das agressões, em 2006. O BO foi publicado na reportagem, assim como o laudo de exame de corpo de delito, obtido pela repórter, que constatou “ofensa à integridade corporal ou à saúde do paciente” com “instrumento contundente”, oito hematomas nas regiões da lombar, glúteos, coxas, antebraços e pernas. 

O laudo do IML foi definitivo, assim como os depoimentos da mãe e do irmão de Jullyene e de duas funcionárias da casa, confirmando a agressão, para a delegada Fabiana Leão Ferreira indiciar Arthur Lira em agosto de 2007: “O exame de corpo de delito foi a prova material robusta, técnica, isenta de qualquer julgamento. Eu tinha prova material, era inequívoca, as testemunhas falavam de forma coerente, contavam a narrativa, os depoimentos eram verossímeis com o fato”, reafirmou 16 anos depois à Pública. 

O processo, porém, levou nove anos para ir a julgamento, o que só ocorreu em setembro de 2015 no STF. Naquele momento, o deputado estadual que Jullyene havia denunciado em 2006 já tinha foro privilegiado, como deputado federal de segundo mandato. Também já era visto como homem de prestígio nos círculos do poder. Foi inocentado por prescrição e falta de provas, já que no decorrer do processo as testemunhas – e a própria Jullyene – voltaram atrás em seus depoimentos. O motivo: medo. Em 2008, Lira chegou a ser preso por coação no curso do processo, meses depois de o elo mais frágil – a babá que ouviu os gritos, viu o estado deplorável de Jullyene e chamou a mãe dela para socorrê-la – já ter voltado atrás no depoimento prestado à polícia. Alice tentou falar com a babá, como fez com peritos, policiais e testemunhas, mas foi alertada por pessoas próximas de que ela não falaria por ter muito medo. Já a retratação de Julyenne, abandonada por seu advogado depois que a esposa dele foi contratada pelo gabinete de Lira, pode ser resumida em uma palavra: medo, mais uma vez. Ao ameaçá-la para obrigá-la a retirar a denúncia, o atual presidente da Câmara lhe teria dito: “Onde não há corpo, não há crime”, contou à repórter da Pública.

Lira não quis comentar as denúncias. Na reportagem do ano passado, sobre a filha doente que abandonou, ele se pronunciou: “Eu não tenho nada para falar, sou uma pessoa normal, que segue a minha vida, trabalhando e fazendo as minhas coisas. Sem falar que minha vida pessoal não diz respeito a ninguém”, afirmou. 

O deputado, tão cioso dos privilégios do cargo que ocupa, parece não ter consciência de sua responsabilidade como homem público nem do impacto social negativo que sua atitude e impunidade projetam em um país em que é corriqueiro o abandono dos filhos pelos pais e a violência física/sexual atinge mais de um terço das mulheres. 

Tendo a decisão do STF como escudo, tenta passar a borracha na história, sob a cumplicidade de todos os que se calam agora diante dos documentos e fatos gravíssimos revelados pela Pública. Entre eles, deputadas e deputados de A a Z – ou do Psol ao PL – e, inexplicavelmente, a imprensa tradicional, que não repercutiu a reportagem mesmo se tratando de suposto crime cometido pelo presidente da Câmara, o que seria um comportamento inadmissível por parte da mídia em qualquer país democrático. 

Meus parabéns à repórter Alice Maciel e a seu editor, Thiago Domenici, diretor da sucursal da Pública em Brasília, que persistiram juntos, com a mesma coragem, na apuração e revelação dessa história tão sintomática deste país de desigualdades e privilégios e tão inspiradora para os que acreditam no jornalismo independente de interesse público. 



Marina Amaral
Diretora executiva da Agência Pública

marina@apublica.org

quarta-feira, 21 de junho de 2023

EM MEIO À EMERGÊNCIA YANOMAMI, MINISTÉRIO DA DEFESA EXIGE R$ 1,6 MILHÃO PARA ENTREGAR CESTAS BÁSICAS

 



Boa noite, 

Centenas de cestas básicas com alimentos que deveriam ser entregues para os indígenas Yanomami estão paradas em armazéns. Isso porque os militares só aceitam realizar a entrega caso a Funai pague R$ 1,6 milhão. Enquanto os militares não cumprem seu papel, os Yanomami ficam sem a alimentação necessária diante de uma crise humanitária que se arrasta há meses. 

Essa é a mais recente descoberta inédita da Agência Pública, que acabamos de revelar em reportagem publicada hoje. É graças ao apoio de leitores como você que conseguimos investigar as inúmeras ameaças à vida e aos direitos indígenas. 

Dessa vez, descobrimos que, desde março, a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Joenia Wapichana, cobra do Ministério da Defesa auxílio para entregar as cestas. Em um dos pedidos, Wapichana solicita que os militares utilizem rios e igarapés para chegar até os indígenas.

A resposta do Ministério da Defesa é que, para entregar 5.318 cestas básicas aos Yanomami por vias fluviais a pasta precisaria receber R$ 1,6 milhão a cada dois meses. A reportagem da Pública recebeu imagens com centenas de cestas básicas paradas em armazéns em Boa Vista (RR) e em Manaus (AM) à espera de uma solução.
 
Além disso, a Pública descobriu que os militares não cumpriram o pedido da Funai de entregar 12,6 mil cestas mensalmente aos Yanomami por vias aéreas, de preferência por helicópteros. O pedido foi feito em fevereiro.

A Pública cobre a emergência de saúde e social dos Yanomami desde o governo Bolsonaro. Em dezembro de 2022, revelamos que as crianças Yanomami estavam morrendo 13 vezes mais por causas evitáveis do que a média nacional. Neste ano, mostramos que o ex-presidente Hamilton Mourão admitiu nos encontros do Conselho Nacional da Amazônia Legal que sabia das invasões de garimpeiros na terra Yanomami e da necessidade de combatê-las, mas não agiu. Recentemente comprovamos que o governo de Bolsonaro destinou R$ 215,8 mil para missionários nas terras Yanomami enquanto a crise humanitária se aprofundava sem a devida assistência do Estado.


A crise enfrentada pelos Yanomami não acabou, e a Pública segue investigando essa emergência humanitária mesmo depois que outros veículos já mudaram de assunto. Se você também acha que esse tema é grave demais para ser deixado de lado, te convido para apoiar nosso trabalho hoje com uma doação.
 
CONTINUEM COBRINDO A EMERGÊNCIA YANOMAMI
Obrigado,

Thiago Domenici
Diretor da Agência Pública e chefe da sucursal em Brasília

terça-feira, 20 de junho de 2023

 

Por que o Centrão quer assaltar a Saúde

Captura desviaria recursos do ministério para impulsionar candidatos conservadores nas eleições municipais de 2024. Mas há outro fator decisivo: a transição tecnológica, que pode tanto revigorar o SUS quanto escancarar as portas para sua privatização por dentro

Julia Prado/MS
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Por Gabriel Brito e Antonio Martins

Na semana que passou, escancararam-se as especulações em torno de uma suposta troca de comando no ministério da Saúde, a partir de pressões de “forças ocultas” da política brasileira. O presidente da Câmara dos Deputados e líder principal do “Centrão”, Arthur Lira, encheu a mídia de blefes a respeito de seu interesse em garantir o ministério para seu grupo político. Ao mesmo tempo, a ministra do turismo, Daniela Carneiro, também integrante do grupo, jogou seus dados, fazendo chegar ao público a notícia de que aceitaria sair da pasta, mas com uma “recompensa”: a Diretoria Geral dos Hospitais Federais do Rio de Janeiro, riquíssimo manancial de verbas e alvo de pesadas disputas políticas nos bastidores que antecederam a nomeação do atual diretor, Alexandre Telles. O que está por trás destes movimentos? Qual seu timing preciso? E que consequências adviriam de uma hipotética cedência de Lula?

Um artigo escrito em coautoria pela cientista Sonia Fleury – uma das pioneiras da Reforma Sanitária – e pelo médico e professor Luiz Antonio Neves, ex-prefeito de Piraí (RJ) ajuda a decifrar a questão. Sonia e Luiz Antonio participaram com destaque de uma reunião plenária em que a Frente pela Vida (FpV) examinou o tema, na última quarta-feira (14/6). Seu texto, que será publicado nas próximas horas em Outras Palavras, também ajuda a compreender, de forma mais ampla, a involução das instituições políticas do país. Mostra como os interesses fisiológicos do “Centrão” articulam-se com os apetites de medicina de negócio, no esforço para privatizar o SUS por dentro. Apontam como tais práticas ameaçam corroer a frágil democracia brasileira. E propõem um antídoto: a mobilização social, especialmente nos dias que nos separam da 17ª Conferência Nacional de Saúde e em seus desdobramentos.

Com dotações de R$ 162 bilhões em 2023, o ministério da Saúde é o menos pobre da esplanada, em despesas correntes (mas apenas o quinto, em investimentos). A isso deve-se acrescentar, lembram Sonia e Luiz Antonio, sua imensa capilaridade, fruto do próprio caráter federalista do SUS. As despesas com Saúde são comandadas principalmente por prefeituras e governos de Estado. Mas a fonte de recursos central é a União, que repassa verbas aos demais entes por meio do Fundo Nacional de Saúde. Quase nenhum dos 5.568 municípios brasileiros é capaz de manter os gastos do SUS sem contar com ele.

O ministério da Saúde é, portanto, crucial. Se gerido com espírito republicano, como sob a ministra  Nísia Trindade, contribui para dar conforto e construir cidadania entre 160 milhões de brasileiros que recorrem exclusivamente à Saúde pública. Mas se aparelhado para fins eleitoreiros, suas verbas transformam-se em instrumento de chantagem e interferência política espúria. Basta, por exemplo, que irrigue os prefeitos “amigos” e que dificulte o acesso dos adversários a recursos indispensáveis. 

Esta ação pode, aliás, ser complementada por outra, a cargo dos próprios deputados e senadores e apontada em reportagem recente da Folha de S.Paulo. Consiste em utilizar as emendas parlamentares, que deveriam beneficiar os municípios, não para seus prefeitos – mas a grupos opositores, que as recebem por meio de entidades civis. A matéria descreve o caso de Amargosa, no interior da Bahia. Lá a Codevasf, alimentada por estas emendas, entrega máquinas de irrigação para grupos políticos ligados a ruralistas enquanto mantém na seca a prefeitura, do PT. Basta imaginar estas práticas multiplicadas pela ação nacional do ministério da Saúde para entender como podem manipular as eleições de 2024, cujas alianças começarão a ser definidas nos próximos meses.

O texto de Sonia e Luiz Antonio chama atenção, a seguir, para um papel mais estratégico do ministério da Saúde: o de definir a configuração futura do SUS – limitando ou ampliando, em especial, a presença da medicina de negócios em seu interior. Os autores descrevem o enorme esforço já realizado por Nísia para recuperar a pasta dos desmandos bolsonaristas. Mas destacam com igual vigor a importância do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS), cuja ampliação é um compromisso de Lula. A partir das encomendas do SUS, lembram eles, o Brasil pode (re)construir uma vasta indústria de medicamentos, vacinas, insumos, equipamentos hospitalares, de diagnóstico e a vasta gama de serviços ligados a eles. Isso será ainda mais importante dado o grande salto tecnológico diante do qual está a Saúde. Nos próximos anos, práticas como as teleconsultas e o uso da Inteligência Artificial irão se tornar onipresentes.

Se bem planejadas, podem ajudar a oferecer serviços de excelência à população e, de quebra, contribuir para a luta contra a reprimarização econômica no país. Caso contrário, desumanizarão os serviços, alienando os profissionais de Saúde da relação com os pacientes e servindo como cavalo-de-tróia para invasão do SUS por corporações privadas. Aqui, é interessante refletir em como entrelaçam-se os interesses da política mais fisiológica com os da medicina de negócios. Sonia e Luiz Antonio lembram, a respeito: “devido à incapacidade do mercado de planos e seguros de saúde de ultrapassar a cobertura além de ¼ da população, mesmo com os subsídios governamentais, sua possibilidade de expandir a lucratividade depende da disputa dos fundos públicos da saúde”…

Há por fim, na investida do Centrão, uma terceira ameaça: a que atinge a própria democracia brasileira. Os autores chamam atenção para uma “conjuntura de disputa político-eleitoral permanente”, na qual “as forças que perderam as eleições presidenciais, mas que são majoritárias no Congresso, buscam emparedar o governo Lula, esvaziando sua força política e impedindo, assim, o cumprimento do programa reformista para o qual foi eleito”. O que está em jogo, demonstra o texto, é “o poder de transformar o país em uma democracia social ou de continuar minando a democracia eleitoral por dentro, destruindo a inteligência do aparato estatal, desmontando as políticas de proteção social, inviabilizando investimentos e construção de uma economia nacional competitiva e uma nação soberana”. O artigo adverte: antecipa-se assim “o cenário eleitoral para as próximas eleições presidenciais que permitiria o retorno de um governo de direita. Esse jogo já está sendo jogado”.

Lula cederá? A depender de sua própria vontade e espírito de sobrevivência, é certo que não. Mas o jogo institucional é bruto. Por isso, Sonia e Luiz Antonio chamam atenção para a necessidade de incluir, no cenário, um elemento hoje ausente: a mobilização social em favor das reformas. E há um cenário muito promissor para exercê-la: a 17ª Conferência Nacional de Saúde (em Brasília, de 2 a 5 de julho). Uma mobilização importante, frisa o texto, já começou nas primeiras etapas (municipais, estaduais, setoriais, e mais de cem “conferências livres”) do grande evento. Este processo se dá, até o momento, sob o silêncio das mídias comerciais.

Mas poderá desabrochar, concluem os autores. Para isso, é preciso que a 17ª Conferência desencadeie ações capazes de demonstrar “que saúde não é mercadoria e que o ministério da Saúde não será moeda de troca, pois o SUS é a maior conquista democrática da nossa sociedade, exatamente porque foi construída no seio das lutas sociais pela democracia”.