quarta-feira, 25 de outubro de 2023

PROCURADORIA DIZ QUE BOLSONARO USOU MILITARES COMO ÁRBITRO DE QUEIXAS E PEDE CONDENAÇÃO NO TSE

 

Procuradoria diz que Bolsonaro usou militares como árbitro de queixas e pede condenação no TSE

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - O vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet, reiterou nesta terça-feira (24) manifestação na qual defende a declaração de inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em ações que acusam o ex-presidente de ter usado as comemorações do Sete de Setembro para fazer campanha eleitoral com dinheiro público.

O julgamento no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) começou com falas dos advogados das partes e foi suspenso.

"O quadro do Sete de Setembro de 2022 expunha à população a imagem de afinidade que a ordem jurídica quer evitar entre o agente político em campanha para a reeleição e as Forças Armadas. Chamava as Forças Armadas ao palanque dos embates eleitorais", disse Gonet.

Segundo o vice-procurador, o sugerido apoio das Forças Armadas "se revela de sensível gravidade para a regularidade das eleições".

"Tanto mais quando o candidato timbrava impor em dúvida a legitimidade do sistema de votação e, notoriamente, mais do que sugeria para as Forças Armadas o exercício extravagante da tarefa de árbitro das suas queixas."

O julgamento analisa ações apresentadas pelo PDT e pela senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que questionam a participação de Bolsonaro nas comemorações do bicentenário da Independência, no ano passado.

Nesta terça, além da defesa de Bolsonaro, se manifestaram os advogados do partido e da senadora. Depois, o julgamento foi interrompido e será retomado nesta quinta-feira (26), com o voto do relator.

O advogado da chapa de Bolsonaro nas eleições do ano passado, Tarcísio Vieira, voltou a se queixar da celeridade das ações que podem resultar em condenação de inelegibilidade contra o ex-presidente.

Tarcísio disse que pedidos que fez para ouvir três testemunhas foram negados, e que isso é prejudicial ao processo. "Celeridade é importante, mas a certeza jurídica é ainda mais", afirmou.

Em julgamento anterior, o advogado já havia dito que as ações que analisam condutas adotadas pelo seu cliente tiveram "rito anômalo" no TSE, o que foi rebatido pelo corregedor e relator das ações, Benedito Gonçalves, que defendeu "dinamismo" na tramitação dos processos.

Tarcísio, ao se manifestar, questionou o motivo de o julgamento não tramitar em conjunto com uma ação apresentada pela coligação de Lula (PT), que também tratava de temas como o uso de tratores no evento.

Para o advogado, sem essa ação, "o risco de desnaturação de um julgamento, harmônico, uniforme e estável é real".

Antes de Tarcísio, se manifestaram o advogado do PDT, Walber Agra, e de Thronicke, Marilda Silveira. Agra disse que as condutas de Bolsonaro nesta ação "são bem mais graves" do que as analisadas anteriormente.

"Nós temos aqui um caráter sistêmico de infrações", disse Agra, afirmando que o objetivo era "matar a democracia", por meio da tentativa de burlar o processo eleitoral e deslegitimar o TSE.

Já Marilda disse que, no evento, "o que se viu foi um uso, com todo respeito, descarado da posição de chefe de Estado", no maior e mais importante evento cívico daquele ano e com "o objetivo claro de impulsionar campanha".

Ela afirma que se percebe que o evento foi eleitoral "no constrangimento da narradora da TV Brasil", que transmitia o desfile cívico antes de Bolsonaro se deslocar, em Brasília, para o palanque eleitoral.

"[A narradora] diz 'o presidente desce à tribuna de honra e caminha para...', silêncio, 'está terminado o desfile'. Ela não pode dizer para onde ele está caminhando", afirmou Marilda, acrescentando que 15 minutos depois foi iniciado o evento eleitoral de Bolsonaro.

"No Rio de Janeiro foi ainda pior, porque o evento foi deslocado de lugar para coincidir com o evento de campanha", afirmou a advogada de Thronicke.

Bolsonaro já foi declarado inelegível por oito anos pelo TSE em junho, no julgamento de uma ação que tratava de reunião com embaixadores na qual ele fez ataques e divulgou mentiras sobre o sistema eleitoral.

Na semana passada, outras três ações foram julgadas e rejeitadas pela corte. Duas delas tratavam de lives de governo feitas por ele antes das eleições no ano passado, nas quais houve pedidos de voto, e a terceira de eventos com governadores e artistas nos palácios do governo.

Mesmo se condenado neste novo processo, não há efeito prático em ampliar o período de inelegibilidade. No entanto, uma condenação pode ter aplicação de multa, causar mais desgaste político e gerar elementos que engrossem outras ações contra o ex-presidente.

Os processos foram pautados pelo presidente da corte, Alexandre de Moraes, e são relatados pelo corregedor da Justiça Eleitoral, Benedito Gonçalves.

Gonçalves deixa a corte eleitoral em novembro e será substituído na Corregedoria pelo ministro Raul Araújo, que é visto como de tendência conservadora.

Antes da mudança, o tribunal julgou uma série de ações relativas à eleição presidencial do ano passado, cujo segundo turno foi disputado por Bolsonaro e Lula.

A ação de Thronicke sobre o 7 de Setembro afirma que houve abuso de poder político e de poder econômico nos atos do ano passado.

Ela argumentou que houve um incremento substancial de recursos que normalmente são designados para as festividades e que os eventos oficiais foram situados próximos de comícios do então candidato à reeleição. O PDT reforçou as acusações.

A defesa de Bolsonaro argumentou nos processos que não houve uso ilegal, com fim eleitoral, das comemorações de 7 de Setembro.

No processo, Tarcísio Vieira afirmou que as comemorações do evento cívico ocorreram "de forma naturalmente aberta e institucional, com a presença de autoridades e convidados no palco oficial".

"Ocorreram desfiles e comemorações majoritariamente militares, de forma protocolar. E não foram produzidos e empreendidos, nesta fase, discursos e comportamentos político-eleitorais típicos de campanhas", disse o advogado.

Ele acrescentou, porém, que após o encerramento da agenda oficial, o então presidente, "já sem a faixa presidencial, se deslocou a pé na direção do público e discursou, na condição de candidato".

"Da mesma forma que outros candidatos poderiam ter feito, naquele exato momento e ao longo de todo o dia", disse a defesa.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

FOMOS ATÉ O MENOR QUILOMBO DO BRASIL E ELE NÃO TEM APENAS UM HABITANTE, COMO DIZ O CENSO.

 

Fomos até o menor quilombo do Brasil e ele não tem apenas um habitante, como diz Censo
Tacun Lecy/Agência Pública
Ao menos 40 famílias vivem no Buri, na Bahia, em luta pela titulação do território, suspensa no governo Bolsonaro

12 de outubro de 2023
04:00
Por Juliana Dias
Dados divulgados pelo IBGE prejudicam acesso a direitos, dizem moradores
Área quilombola é disputada por grandes empreendimentos
SOCIEDADE
conflitos no campo IBGE política quilombolas
“Não dizem que aqui não tem quilombo, pois tome quilombo”, diz Zelzira Ferreira Lima, conhecida como Dona Nini, 86 anos, liderança do Quilombo do Buri, apontando para casas de taipa, de tijolo e ruínas de uma igreja. Em uma manhã de sábado, na segunda semana de setembro, Dona Nini recebeu a reportagem da Agência Pública no território apontado como o menor quilombo do país, com apenas um único habitante, segundo o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em julho deste ano. Mas, somente a família dela tem nove pessoas.

O Quilombo do Buri está no estado que tem a maior população quilombola do país, a Bahia. Está localizado às margens do Rio Paraguaçu, no município de Maragogipe, na região do Recôncavo baiano, em uma área de 377 hectares. Diferentemente do que diz o Censo, ao menos 40 famílias habitam o território. “O Censo não veio aqui na minha casa e nem na casa de quem mora na comunidade. A pessoa que veio pegou um bêbado na entrada do quilombo pra responder que só tinha uma pessoa morando aqui”, afirma Dona Nini.


Dona Nini, 86 anos, liderança do Quilombo do Buri
O dado divulgado pelo IBGE é visto pelos moradores como mais um obstáculo para o reconhecimento dos seus direitos. Certificada pela Fundação Cultural Palmares como comunidade remanescente de quilombo desde 2009, o Buri, nome de origem tupi para palma, vive uma disputa pela titulação do território, que foi barrada pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), da Presidência da República, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

“Estão desfazendo da gente ao dizer que só uma pessoa vive aqui”, diz Dona Nini, que criou os nove filhos nas terras do Buri, “se metendo na maré pra pescar ou se metendo no mato pra tirar piaçaba”, as duas atividades são principais formas de sustento da comunidade. O Quilombo de Buri não é atendido por serviços básicos, como água encanada, luz elétrica, saneamento básico, atenção à saúde. Também não tem escola.

“Esse dado do IBGE prejudica a caminhada da comunidade”, comenta Antônia Cacilda Souza, marisqueira aposentada de 63 anos, filha de Dona Nini, que mora ao lado da casa da mãe. Após oito anos da certificação da Fundação Palmares, o Quilombo do Buri teve o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no Diário Oficial da União, em 7 de novembro de 2017. A publicação dava um passo à frente para a tão sonhada regularização fundiária.


Antônia Cacilda Souza, marisqueira aposentada de 63 anos, filha de Dona Nini
Segundo nota enviada pela assessoria de comunicação da Superintendência do Incra na Bahia, o processo foi contestado em 2020 pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), da Presidência da República, que se manifestou contrário à regularização do território, sob a alegação de que a área é de interesse estratégico da Marinha.

Ainda de acordo com a nota, entre os anos de 2018 e 2022, o Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra na Bahia enfrentou restrições orçamentárias e financeiras, em função da gestão da política nacional relacionada ao tema. O Comando do 2º Distrito Naval – Capitania dos Portos da Bahia não respondeu aos questionamentos sobre o interesse da Marinha na região.

O entorno do Quilombo do Buri é uma região cobiçada por empreendimentos da indústria naval, devido à profundidade da água. Em 2012, foi inaugurado o Estaleiro Enseada do Paraguaçu na região, com o objetivo de ser um complexo naval, portuário e industrial, e com a promessa de gerar emprego e renda. Em menos de dois anos, o empreendimento teve as obras e a operação paralisadas pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal e está parado há nove anos.

“Sempre quiseram colocar outros empreendimentos desse porte por aqui, estava previsto para ter quatro estaleiros navais. Tinha a promessa de mudar a vida das pessoas. Mas, no final, não teve desenvolvimento nenhum, ao contrário, gerou degradação. Virou um porto sem licenciamento, com muita poluição e ainda atraiu o tráfico de drogas para a região”, conta Maria José Pacheco, secretária executiva do Regional do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP). A organização presta assistência e apoio à comunidade quilombola.

Empreendimentos da indústria naval no entorno do Quilombo do Buri
Esta não é a primeira vez que Marinha entra em uma disputa territorial com comunidades remanescentes de quilombo, na Bahia. O caso mais emblemático é do Quilombo Rio dos Macacos, localizado nos limites entre os municípios de Simões Filho e Salvador. O conflito fundiário é marcado por ameaças de despejo, agressões e coerção por parte dos militares, e iniciou na década de 1960 após a construção da Base Naval de Aratu.

Desde então, o local, que reúne cerca de 150 famílias em uma área de 104 hectares, é cenário do conflito que envolve pedidos de reintegração de posse, além da denúncia de violação de direitos humanos como falta de abastecimento de água, proibição de cultivo, falta de acesso direto à comunidade, o que impacta na garantia do direito de ir e vir, entre outros. Em julho de 2020, o Incra assinou a titulação das terras do Quilombo Rio dos Macacos, no entanto, a comunidade ainda hoje denuncia a violação de direitos, como a possibilidade da Marinha construir um muro que pode bloquear completamente o acesso às águas do Rio dos Macacos.

De acordo com a comunidade do Quilombo do Buri, a ausência da titularização do território representa uma série de dificuldades e de insegurança. A vulnerabilidade da comunidade aumenta com o interesse da Marinha no terreno e o resultado do Censo 2022 do IBGE, que foi visto pelos moradores como uma forma de anular a representatividade do território.

Moradores do quilombo ouvidos pela Pública disseram que responderam ao questionário do Censo quando estavam de passagem pelo distrito de São Roque do Paraguaçu, em Maragogipe, e que informaram que moravam no Quilombo do Buri. “Se pegar o espelho do que respondemos na prefeitura vai ver lá nossos nomes”, afirma Antônia Cacilda. Segundo a socióloga Nádia Barreto, os dados do Censo são fundamentais para a elaboração de políticas públicas, sobretudo para populações vulnerabilizadas, como as comunidades quilombolas.
A ausência da titularização do território representa uma série de dificuldades e de insegurança
“É necessário que a comunidade entre em contato com o IBGE ou com a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) para buscar esclarecer a situação e corrigir, se for o caso. O subdimensionamento da população pode gerar algum prejuízo para qualquer comunidade, até pelo simples fato de não corresponder à realidade factual”, explica.

As famílias do Buri contaram que já perderam, por exemplo, a oportunidade de serem contempladas com um fogão por conta da ausência de energia elétrica no território. A falta de infraestrutura ainda tem causado o êxodo de habitantes para a comunidade de São Roque do Paraguaçu, distrito de Maragogipe, próximo do quilombo. “Muita gente hoje não quer continuar vivendo na comunidade por causa do medo da violência. Ficam alguns dias, depois voltam para São Roque e ficam nesse vai e vem. Essa indecisão do Incra piora ainda mais nossa permanência nas nossas casas”, diz Cacilda Souza.

Insegurança está afastando moradores
Não muito distante da casa de Dona Nini está a moradia de Antônio Jorge Tourinho, conhecido como “Lampião”, 70 anos, e sua esposa Ana Mariah de Souza Tourinho, conhecida como “Aninha”, 63 anos. O casal quilombola também relatou que os recenseadores do IBGE não passaram pela sua casa. “A gente soube depois que foi um rapaz bêbado que respondeu. Não acho que foi por maldade, mas o IBGE precisa rever essa situação, porque se antes já estava difícil pra gente conseguir energia, agora então”, afirma Lampião.

Antônio Jorge Tourinho, conhecido como “Lampião”, 70 anos, e Dona Nini
Para Aninha, o dado do IBGE pode fortalecer as pessoas que estão interessadas em possuir as terras do quilombo. “Hoje em dia a gente tem medo de ficar por aqui por muito tempo. E com essa informação, a gente fica sem proteção nenhuma”, diz.

A saída de quilombolas para outras comunidades também se tornou mais corriqueira por causa do aumento da violência na região. Em outubro de 2019, quatro homens foram mortos a tiros na fronteira entre a entrada do quilombo e o distrito de São Roque. O caso não foi relacionado com disputas de território, mas os moradores ficaram com medo.

“Depois disso, a nossa realidade mudou. Teve gente que saiu do quilombo e não voltou mais”, lamenta Bartolomeu Ferreira Siza “Memeu”, 53 anos, filho de Dona Nini. Em um ambiente onde antes os moradores dormiam de porta aberta, o episódio despertou medo e insegurança. “É o retrato do que pode acontecer com qualquer um da gente”, considera Memeu.

Ao falar da violência, a comunidade do Quilombo do Buri não deixou de fazer referência ao aumento de casos envolvendo assassinatos de lideranças quilombolas na Bahia. Em agosto, Maria Bernadete Pacífico, mais conhecida como Mãe Bernadete ialorixá, ativista e líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, foi assassinada com 12 tiros dentro da sua comunidade, no município de Simões Filho, na Bahia.

“A morte de Mãe Bernadete chegou aqui pra gente como se fosse um tiro. Não foi apenas a morte de uma pessoa, mas foi como se estivesse matando o movimento. Tínhamos ela como a líder principal. Ela tinha altura na voz. A gente acredita que quem matou quer que o movimento acabe”, comenta o quilombola Antônio Bonfim Ferreira Borges, que se refere à Mãe Bernadete como amiga de luta. “A gente anoiteceu com ela e amanheceu sem ela. Depois disso, eu emagreci muito”, lamenta.

A reportagem entrou em contato com a Prefeitura Municipal de Maragogipe para saber o posicionamento do órgão frente os dados divulgados pelo IBGE, mas não obteve resposta até a publicação. A GSI também não respondeu nossos questionamentos. Por meio de nota, o IBGE informou “que todas as edificações existentes no Território Quilombola do Buri, no município de Maragogipe (BA) foram visitadas pelos recenseadores, que percorreram o território por via terrestre e até por modal aquático. O trajeto percorrido pelos recenseadores e as coordenadas geográficas dos domicílios visitados pelo IBGE foram registradas eletronicamente nos sistemas de controle e supervisão da coleta do Censo 2022”. Por ocasião do recenseamento, o instituto informou que “foi verificada a existência de 14 endereços no interior do território oficialmente delimitado do Buri” e que, “em apenas um deles foi encontrado e entrevistado um morador, e esse domicílio foi classificado como ‘particular permanente ocupado’, com apenas um residente.”

De acordo com o IBGE, “não foram encontrados moradores nas demais edificações visitadas, e elas foram classificadas como domicílios particulares permanentes de uso ocasional ou vagos, considerando os conceitos que orientam a operação censitária”.  A nota informa ainda que “o Território Quilombola de Buri está localizado em área muito próxima ao Distrito de São Roque do Paraguassu, onde foi contada uma significativa população quilombola, e grande parte desta população informou que pertencia à comunidade do Buri.”

O IBGE informou que “a coleta dos dados do Censo Demográfico 2022 foi realizada com rigorosa observação da metodologia censitária, que classifica as edificações presentes em todo o território nacional entre estabelecimentos e domicílios. Entre o conjunto dos domicílios, destacam-se os particulares permanentes, que são aqueles cuja edificação foi construída para habitação, com a finalidade de servir de moradia a uma ou mais pessoas. Os domicílios particulares permanentes são classificados ainda em subtipologias – domicílios particulares permanentes ocupados, domicílios particulares permanentes vagos e domicílios particulares permanentes de uso ocasional”.

O IBGE  “reitera que o recorte geográfico de ‘Território Quilombola oficialmente delimitado’ reúne somente a parcela da população quilombola identificada no interior dos territórios oficialmente delimitadas pelo INCRA ou pelos institutos estaduais de terras”. Na nota, o instituto recomenda que os usuários das informações estatísticas “sempre levem em consideração que o Censo Demográfico 2022 foi realizado em todo o território nacional, tendo contado a população quilombola dentro e fora desses territórios”. “O recorte de ‘Território Quilombola oficialmente delimitado’, portanto, não é exaustivo para informar a população referente a cada comunidade quilombola, pois os limites das comunidades muitas vezes ultrapassam os limites oficiais dos territórios reconhecidos. Por isso, é fundamental sempre considerar os totais de população quilombola municipais e a sua diferenciação geográfica segundo a localização dentro e fora dos Territórios oficialmente delimitados.”

A íntegra da resposta pode ser consultada aqui.

Edição: Mariama Correia | Fotógrafo: Tacun Lecy
*Atualização às 16:22 de 16/10/2023: Inserimos a resposta do IBGE enviada pela Assessoria de Imprensa.


Juliana Dias
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EXPLOSÃO DE HOSPITAL EM GAZA MATA CENTENAS; ISRAEL E PALESTINOS TROCAM ACUSAÇÕES

 

Explosão de hospital em Gaza mata centenas; Israel e palestinos trocam acusações

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O ataque a um hospital na Cidade de Gaza, a mais populosa da faixa homônima, deixou ao menos 500 pessoas mortas nesta terça (17), segundo o Ministério da Saúde local. O episódio se desenha como o mais mortal na região desde o início da atual guerra no Oriente Médio.

Membros da pasta acusam Israel de direcionar o ataque aéreo ao hospital al-Ahli Arab, conhecido como Al-Ma’amadani. "O hospital abrigava centenas de doentes e feridos, além de pessoas forçadas a deixar suas casas devido a ataques israelenses", disse o ministério.

As Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês), por sua vez, atribuíram o ataque ao disparo fracassado de um foguete da facção Jihad Islâmico e dizem que hospitais não são seus alvos. A Defesa afirma que "uma barragem de foguetes inimigos" estava em direção a Israel e passou pelas proximidades do hospital Ahli Arab.

O IDF diz ainda que "organizações terroristas de Gaza colocam suas plataformas de lançamento dentro do território civil". "Isso coloca os civis na linha de fogo, e essa tem sido uma tendência neste conflito."

O premiê Binyamin Netanyahu, na mesma linha, disse que "terroristas bárbaros" foram os responsáveis. Já o Jihad negou —o porta-voz Daoud Shehab alega que não houve nenhuma operação do braço armado da facção, as Brigadas Al-Quds, na área do hospital.

Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina, que governa a Cisjordânia, declarou três dias de luto oficial pelas vítimas. Em Ramallah, o líder palestino, que também chefia o partido Fatah e vive uma crise de legitimidade, foi alvo de manifestantes que foram às ruas e entraram em confronto com a polícia. Impulsionados pela explosão no hospital, eles pediam uma resposta mais enfática contra Tel Aviv. Alguns gritavam palavras de ordem em apoio ao Hamas.

O episódio já teve consequências regionais —foi cancelada a reunião marcada na Jordânia nesta quinta-feira (18) para amainar as tensões regionais, encontro que contaria com os líderes de Egito, Estados Unidos e Autoridade Palestina. A chancelaria em Amã disse que seria "inútil qualquer conversa sobre assuntos que não sejam colocar um ponto final na guerra".

A ministra da Saúde de Gaza, Mai Al-Kaila, chamou o ataque de "a mais terrível matança contra o povo palestino" cometido pela "ocupação" —referindo-se à ocupação israelense dos territórios palestinos.

"A ocupação cometeu um massacre, quebrou todas as normas e leis humanitárias", disse ela, que pediu à ONU e à comunidade internacional que "salvem os palestinos desta aniquilação em massa".

Em relatos nas redes sociais, a pasta da Saúde afirma que a maioria dos mortos é formada por mulheres e crianças, mas não detalha os números do ataque que descreve como um "massacre".

Em uma das imagens compartilhadas, homens seguram os corpos de ao menos sete crianças pequenas ao lado de outros corpos cobertos por lençóis brancos. As vítimas pareciam estar reunidas do lado de fora do edifício, onde ocorria o pronunciamento de funcionários do local. Em outras fotos, vítimas recebem atendimento no chão dos hospitais para os quais foram encaminhadas devido à superlotação do espaço.

De acordo a pasta da Saúde, o volume de vítimas que chega a outros hospitais da região ultrapassa a capacidade das equipes médicas. Há pacientes sendo operados sem anestesia, disseram. Muitas das vítimas teriam chegado com os corpos mutilados pela explosão.

Mais cedo, o ministério já havia afirmado que centros hospitalares como o de Ahli Arab estavam entrando em fase de colapso devido às constantes quedas de energia elétrica e a falta de combustível —nesta guerra, Israel acirrou o bloqueio que mantém contra Gaza desde 2007.

Autoridades ligadas aos territórios palestinos ocupados já têm acusado Tel Aviv de crimes de guerra. Segundo as Convenções de Genebra, que balizam esse assunto, atos que são proibidos em conflitos armados —portanto, crimes de guerra— incluem ataques intencionais contra civis e hospitais.

Neste sentido, também é crime manter civis reféns —o que o grupo terrorista Hamas tem feito desde o último dia 7, quando sequestrou ao menos 200 pessoas em território israelense e os levou para Gaza.

Fundado em 1882, o Ahli Arab é o hospital mais antigo de Gaza, segundo informações de seu próprio site. O nome, em árabe, significa "hospital do povo árabe". Estima-se que, a cada ano, cerca de 45 mil pessoas sejam atendidas no local.

O hospital é administrado pela Diocese Episcopal de Jerusalém, responsável por supervisionar Israel, Jordânia, Líbano e Síria —além dos territórios palestinos ocupados. Em nota à rede Al Jazeera, sem mencionar Tel Aviv, a diocese disse condenar o que descreve como "um ataque atroz no coração de Gaza".

O prédio já havia sido alvo de outros ataques ao longo destes 11 dias de guerra. A Cidade de Gaza, onde está localizado, fica na porção norte da faixa de terra homônima —a que Tel Aviv insta desde a última sexta (13) a ser esvaziada, indicando que fará uma invasão por terra.

Assim, o hospital servia não apenas como serviço de saúde, mas como abrigo para centenas de deslocados deste conflito —os números são incertos, mas a ONU calcula que ao menos 1 milhão, ou cerca de metade da população de Gaza, já tenham sido forçados a se deslocar.

A direção do hospital relatou que, no último sábado (14), foguetes israelenses atingiram a ala de diagnóstico de câncer do local, danificando equipamentos de ultrassonografia e mamografia. Na ocasião, ao menos quatro funcionários teriam ficado feridos.

Autoridades de diversos países se manifestaram. E o episódio mudou o tom de nações árabes em relação a essa guerra —agora, em vez das narrativas mais conciliatórias, países da região subiram o tom crítico a Israel, a quem também atribuíram o ataque desta terça-feira.

O Egito, fronteiriço com Gaza, culpou Israel. A chancelaria egípcia disse que o ataque foi "uma séria violação da lei internacional e dos valores mais básicos da humanidade". "Instamos Israel a parar imediatamente suas políticas de punição coletiva dos palestinos."

O porta-voz diplomático do regime dos Emirados Árabes Unidos, Anwar Gargash, também culpou Tel Aviv. "O episódio confirma a necessidade de poupar civis do flagelo da guerra e respeitar o direito humanitário", afirmou ele em uma nota.

A diplomacia saudita disse que o episódio "força a comunidade global a abandonar padrões duplos e seletivos que tem usado para o direito internacional quando se trata de práticas criminosas de Israel".

Também cresceu o temor de ataques regionais após o grupo libanês Hizbullah, aliado do Hamas, conclamar a população libanesa ir às ruas na quarta-feira para um "dia de fúria sem precedentes" contra Israel e os EUA —Joe Biden estará em Tel Aviv na data. A facção descreve a explosão do Ahli Arab como um "massacre brutal".

Washington também apareceu no discurso de um porta-voz do Hamas, Osama Hamdan, que insinuou em conversa com a Al Jazeera que um ataque do tipo "não ocorreria sem a luz verde americana". Em comunicado, Biden expressou pêsames pelos mortos e disse estar "profundamente indignado e triste" com as mortes de civis.

Horas após o ataque, o secretário-geral da ONU, o português António Guterres, disse em breve comunicado que condena os ataques. E lembrou que hospitais e profissionais de saúde são protegidos pela lei internacional.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) também criticou o ataque e voltou a pedir que Tel Aviv suspenda a ordem para que civis deixem o norte de Gaza. "O hospital atingido era um dos 20 no norte de Gaza que receberam ordem para serem esvaziados, uma ordem impossível de ser executada dada a insegurança, o estado crítico de saúde de muitos pacientes e a falta de ambulâncias para deslocamento."

O Crescente Vermelho —equivalente à Cruz Vermelha em nações muçulmanas— disse que centenas de civis morreram. E, ecoando a OMS, afirmou que este "crime de guerra ocorre após reiteradas declarações de que a ordem para esvaziar os hospitais, além de impossível de operar, significa uma sentença de morte para os pacientes".

Os Médicos Sem Fronteiras (MSF), por sua vez, chamaram o ataque de "um massacre inaceitável". "Estamos horrorizados", disse em nota a ONG. "Nada justifica este ataque brutal a um hospital."

Até antes da explosão nesta terça-feira, o Ministério da Saúde em Gaza afirmava que ao menos 3.000 pessoas haviam morrido na região e outras 12.500 ficado feridas desde 7 de outubro. Autoridades em Tel Aviv, por sua vez, afirmam que ao menos 1.400 israelenses, muitos com dupla nacionalidade, morreram e outros 4.010 ficaram feridos.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

 

Na Guerra, a principal vítima é a verdade


Em qualquer guerra, as operações de inteligência incluem moldar narrativas, fazer uso de imagens e até criar desinformação para confundir o inimigo ou angariar apoio para a sua causa. Agora, em tempos meméticos, a coisa é sempre multiplicada, porque são milhares as pessoas que podem participar dessa batalha online. Ainda mais quando se trata de um tema que já gera polarização, como é o conflito de Israel com os palestinos. 

São inúmeras as histórias de fake news espalhadas nos últimos oito dias. A mais famosa, claro, é a dos bebês degolados pelo Hamas, mentira na qual caiu até mesmo o presidente americano Joe Biden, que depois teve que se retratar, afinal não vira as tais “fotos de terroristas degolando crianças” como ele dissera. 

Mas essa foi apenas uma delas.  

No dia 9 de outubro, a história de que aviões de guerra israelenses haviam bombardeado uma igreja histórica em Gaza viralizou, junto com fotos que poderiam convencer qualquer pessoa. A própria igreja teve que postar no Facebook desmentindo o bombardeio. Muitas fotos de outras guerras, como na Síria, no Afeganistão e até terremotos na Turquia estão sendo apresentadas como evidências de ações brutais de um dos lados. Um vídeo que teve 2,5 milhões de compartilhamentos nos EUA mostrava um carro parando o trânsito em Nova York para exibir uma bandeira palestina, segundo o post, véspera dos ataques do Hamas. Mas a imagem real era, na verdade, de um protesto a favor da independência de Porto Rico – essa era a bandeira exibida.
 
Em entrevista ao Instituto Reuters, o especialista em Fake News da BBC, Shayan Sardarizadeh, disse que os casos mais comuns são vídeos antigos de cenas de guerra, mas que também houve algumas imagens geradas por inteligência artificial. “Mas elas não eram muito boas”, disse.  

O Twitter tem sido um caso especial porque, além de Elon Musk ter demitido membros das equipes de ética, integridade e moderação de conteúdo quando virou o todo-poderoso, o novo modelo de negócios idealizado por ele favorece ainda mais descaradamente a publicação de vídeos virais. Qualquer um que tem o selinho azul (e que paga por ele 60 reais por mês) tem suas postagens mostradas para mais pessoas através da aba “Para Você”, que é a aba padrão para usuários do Twitter. Além disso, eles podem monetizar suas postagens. 

Assim, republicar um vídeo horroroso de 5 anos atrás dizendo que é da guerra atual pode trazer dinheiro rápido e fácil. “Nos primeiros dias do conflito, o volume de desinformação no X [antigo Twitter] foi maior do que eu jamais tinha visto”, Shayan Sardarizadeh.

    
 

Musk inventou o fast-food da desinformação, na qual não é preciso nem fazer um meme. Só republicar um videozinho velho, e esperar o dinheiro cair na conta. 
  

Isso se espalha como fogo em sociedades que já estão polarizadas e cujos extremistas acreditam que podem se valer do conflito no Oriente Médio para gerar mais engajamento, mais ódio, mais cliques e mais dinheiro. E chega também a outros locais fora das redes. 

Além de Israel, o segundo lugar onde esse círculo vicioso viceja é os Estados Unidos. Por lá, um grupo de estudantes de Harvard que assinou uma carta culpando Israel pelo conflito e, consequentemente, pelo ataque do Hamas está sendo perseguido por grupos de extrema direita, que expuseram seus nomes e rostos em uma van que passou a rodar pelo campus. A exposição de dados pessoais chama-se doxxing e pode levar a violências reais, ainda mais se são associadas a um linchamento virtual – que é o que está acontecendo.  Um CEO de uma empresa chegou a exigir pelo Twitter para a presidente de Harvard, Claudine Gay, que publicasse o nome dos estudantes “para que nós saibamos que não devemos contratar”.

Aqui no Brasil, a defesa de Israel alvoroça bolsonaristas e os une num momento em que estão por baixo. 

O episódio de um professor da PUC que deixou uma palestra após um bate-boca com estudantes virou cabo de guerra nas redes e nos sites hiperpartidários. Em resposta, o Instituto Brasil Pela Liberdade, um grupo olavista sediado no Rio de Janeiro, está pedindo que seus seguidores “denunciem” quem “apoia o grupo terrorista Hamas no Brasil dentro e fora das universidades brasileiras” e promete “enviar um relatório para as autoridades”.  

Outros bolsonaristas entraram na onda de vilipendiar o debate acadêmico. Um vídeo filmado na universidade federal do Amazonas em agosto deste ano – dois meses antes dos ataques do Hamas – que mostra estudantes pró palestina tentando impedir uma palestra de um ativista pró-Israel, o presidente-executivo do grupo StandWithUsBrasil André Lajst, voltou a ser compartilhado como se fosse novo. O empresário Otávio Fakhouri, que é investigado no inquérito das Fake News e foi depoente da CPI da Covid, usou a briga para atiçar seus seguidores. “O brasileiro passou quatro anos escutando as palavras genocídio, fascismo, nazismo, terrorismo e extremismo de pessoas que hoje, diante de exemplos reais, defendem o genocídio, fascismo, terrorismo e extremismo”, escreveu o influenciador bolsonarista, que paga o selinho do Twitter. 

O show de horror de fake news busca simplificar um conflito que é complexo, desumanizar o outro lado e, mais importante, amalgamar populações inteiras. Como se todos os israelenses apoiassem o impopular primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e como se todos os palestinos apoiassem o ato terrorista do Hamas. O resultado – com amplo lucro para gente como Elon Musk – é dificultar ainda mais uma solução que não passe pela violência extrema. 


 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

sábado, 14 de outubro de 2023

NO LITORAL DO RIO GRANDE DO NORTE, COMUNIDADE LUTA CONTRA ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA

 REPORTAGEM

No litoral do Rio Grande do Norte, comunidade luta contra especulação imobiliária

Rodrigo Ferreira

Moradores de Enxu Queimado enfrentam empresas do setor turístico para não serem expulsos de seu território tradicional


13 de outubro de 2023

04:00

Por Bárbara Poerner

Comunidade aguarda decisão sobre reintegração de posse 

Processo pode abrir precedente estadual na Comissão de Conflitos Fundiários 

SOCIEDADE

comunidades tradicionais direitos humanos Justiça moradia política

Nas areias de Enxu Queimado, no litoral do Rio Grande do Norte, é possível encontrar algumas folhas de papel jogadas na paisagem. Elas foram distribuídas na comunidade por representantes da empresa Genipabu Hotel e Turismo. Todas têm o mesmo título, em vermelho: “Atenção – Notificação”. No verso, um chamada em maiúsculo diz “Mandado de Reintegração de Posse”. Logo abaixo, como ré, aparece o nome de Leonete Roseno do Nascimento.

Leonete, uma das lideranças comunitárias de Enxu Queimado

Leonete é educadora popular e uma das lideranças comunitárias de Enxu Queimado, um povoado em Pedra Grande, município a aproximadamente 150 quilômetros de Natal (RN). O processo, no qual ela é ré, é um pedido de reintegração de posse movido pela Genipabu Hotel e Turismo. 

Por meio de uma escritura registrada em cartório, a empresa alega ser dona de uma propriedade rural de 14 mil hectares localizada em Canto de Baixo, área ao lado de Enxu Queimado e ocupada historicamente pelos seus moradores. O terreno foi vendido à empresa em 2007, pelo casal recifense Garibaldi Chianca de Carvalho e Tânia Lídia de Souza Carvalho, no valor de R$ 300 mil. 

Escritura de compra e venda da área em Canto de Baixo, anexada pela Genipabu Hotel no processo, obtido pela Agência Pública

Como sócios da Genipabu Hotel aparecem Patrick Daniel Muller e Ana Maria Muller. Patrick consta como sócio-proprietário da empresa de mergulho Atlantis Serviços Náuticos, e Ana administra uma pousada no município de Galinhos; ambos são sócios da empresa Atlantis Viagens e Turismo.

Os hectares apontados pela empresa, no entanto, seriam áreas de uso comum em Enxu Queimado, usadas para ranchos e o trânsito de barcos dos pescadores e pescadoras, segundo moradores ouvidos pela reportagem. Em entrevista à Agência Pública, Leonete conta que a comunidade existe desde a década de 1920, firmando-se majoritariamente como pesqueira e rural. Um censo de junho de 2020, realizado pelas equipes da Unidade Básica de Saúde do povoado, aponta que ali residem mais de 2,3 mil pessoas. 

Cartografia cedida por Patrícia Cavalcanti, que pesquisa o protagonismo feminino na luta em defesa do território tradicional de pesca de Enxu Queimado

A educadora mora atualmente em Galinhos, município próximo de Pedra Grande, mas trabalhou em Enxu Queimado no ano de 2011 e desde então desenvolveu um forte vínculo com o território e seus moradores.

“Ninguém tem a escritura pública, ninguém tem documento, porque a comunidade se formou através de posse”, explica Leonete, se referindo ao que afirma a legislação brasileira: o direito de permanência no território é de quem faz seu uso, mesmo não sendo oficialmente seu proprietário. A situação, conhecida como usucapião, está em conformidade com o artigo 1.228 do Código Civil; o artigo 561, inciso I, do Código de Processo Civil; e os artigos artigos 5º, XXIII e 170, III da Constituição Federal. 

O processo

Em junho de 2021, a Genipabu Hotel fez o primeiro pedido de reintegração de posse da área da qual tem a escritura pública e inseriu Leonete como parte. A investida da empresa mobilizou os moradores de Enxu Queimado, que ocuparam partes dos hectares reivindicados com piquetes e barracos. 

A empresa conseguiu uma liminar favorável, ordenando a demolição das barracas. Gustavo Freire Barbosa, advogado que representa Leonete, recorreu da decisão, porém o tribunal a manteve em favor do empreendimento. Com isso, em 2023, a Genipabu apresentou uma nova petição no processo, sob alegação de que a decisão judicial estaria sendo descumprida em função da permanência dos barracos dos moradores. Nela, a empresa pediu a prisão de Leonete e o aumento da multa. 

A ação foi ajuizada contra Leonete e outras pessoas ainda não identificadas. Gustavo argumenta que a educadora tornou-se ré porque representa os interesses e direitos da comunidade, já que é uma liderança local. 

A resposta que partiu da comunidade, afirma o advogado, foi solicitar a suspensão do processo e da liminar anterior. Em seu entendimento, existem fragilidades, a começar pela documentação apresentada pela empresa Genipabu Hotel, que consiste somente na escritura pública de compra e venda do bem; no memorial descritivo do imóvel; na certidão vintenária expedida pelo Ofício Único de Pedra Grande; e fotos e vídeos que mostram pessoas dentro do terreno. 

O argumento utilizado pelo advogado é que falta comprovação de posse e do uso social da terra, pois houve uma compilação de documentos que apenas confirmam a propriedade.

Ademais, o advogado diz que houve o uso da má fé no processo. Isso porque, no documento peticionado pela empresa, consta um printscreen de um vídeo, no qual Leonete mostra Enxu Queimado, na tentativa de relacioná-la com as áreas ocupadas pelos moradores com os barracos e piquetes.

Imagem utilizada pela Genipabu Hotel na petição

O vídeo em questão, diz o advogado, trata-se de um conteúdo sobre turismo de base comunitária, disponível no YouTube, no qual Leonete apresenta Enxu Queimado.

Barbosa também solicitou que o caso seja remetido à Comissão de Conflitos do Poder Judiciário do Rio Grande do Norte, especificamente ao Poder Judiciário Estadual. No último dia 17 de agosto, a juíza responsável, Mayana Nadal Sant’ana Andrade, despachou esse pedido e ordenou a Genipabu Hotel se manifestar sobre a petição. No início deste mês de outubro, a empresa respondeu, se colocando contra o pedido de levar o processo à Comissão.

A Comissão de Conflitos do Poder Judiciário do RN é recente e foi instituída em janeiro de 2023, por meio da Portaria nº 148/2023 do Tribunal de Justiça do RN. Seu artigo 1º diz que “fica instituída, no âmbito do Poder Judiciário do RN, a Comissão de Conflitos Fundiários, cujo objetivo é promover a paz social e buscar soluções alternativas consensuais dos conflitos fundiários coletivos com efetividade, celeridade e economia de recursos públicos”. Ela foi criada por determinação do CNJ, por meio da Resolução nº 510 de 26 de junho de 2023. O objetivo é que todos os tribunais do Brasil criem comissões de conflitos fundiários. 

O advogado esclarece que “o CNJ impõe uma série de condições para que possa haver uma decisão liminar [em ações que envolvem despejos e reintegrações de posse], como a realização de uma visita técnica na região; perícias; audiência pública; audiência de mediação; e convocação de órgãos especializados no tema”. Uma vez que o CNJ tem jurisdição nacional, isso deve valer para todos os tribunais de todas as unidades federativas, completa. 

“Nós estamos tentando cavar esses precedentes judiciais, porque, eventualmente, se conseguirmos uma decisão dessa natureza, pode servir para casos em todo o Brasil”, afirma.  

Histórico de conflitos: o caso da Teixeira Onze

Esse tipo de episódio não é inédito em Enxu Queimado. Em 2007, um italiano chamado Marcello Giovanardi apareceu na região afirmando que havia comprado parte do povoado. À época, os moradores apelidaram o homem de “gringo”. 

Treze anos mais tarde, no auge da pandemia de Covid-19 em 2020, Giovanardi voltou. Dessa vez, como representante de uma incorporadora chamada Teixeira Onze, apresentando uma escritura pública que atesta a compra de 184 mil hectares de terras, localizados em Canto de Baixo, pelo valor de R$ 60 mil. Quem vendeu a área foi Dulce Maria Gueiros Leite, advogada residente em Pernambuco e que tinha a escritura da propriedade.

Foto da escritura pública apresentada pela Incorporadora Teixeira Onze

Naquele período, Marcello Giovanardi teria pressionado os cidadãos de Enxu Queimado a realizarem escrituras públicas de suas próprias terras, oferecendo o serviço por preços que foram de R$ 2,5 mil, para terrenos entre 50 e 200 metros quadrados, a R$ 5,5 mil, para mil e 2 mil metros quadrados. A reportagem acessou um documento, em nome da empresa e de Giovanardi, que teria sido enviado aos moradores informando da regularização.

Miriam Moura Vital, que pesquisa no mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) as resistências na comunidade de Enxu Queimado, afirma que algumas pessoas, por receio, pagaram pelas escrituras públicas. “Eu vejo isso como uma forma de grilagem de terra”, defende ela, que destaca como muitos cidadãos ainda desconhecem seus direitos. 

Apesar disso, grande parte da comunidade se organizou para contestar o pedido de reintegração de posse e os interesses da incorporadora que, em 2020, havia colocado cercas e arames ao redor da área onde alega ser proprietária. Os moradores removeram o cerceamento e ocuparam partes do terreno com barracos e piquetes. O enfrentamento teria levado a uma retaliação por parte da Teixeira Onze, que, conforme Leonete, destruiu algumas roças de moradores e o barraco do pescador Ramiro Alves.

Boletim de ocorrência realizado por Leonete, em 2020, contra Teixeira Onze

Publicação de Leonete em seu perfil no Facebook no ano de 2020

Leonete Rosendo, Ramiro Alves e Francisca Suely, integrante da Colônia de Pescadores de Enxu Queimado, tornaram-se então réus junto ao processo iniciado pela Teixeira Onze.

A ação estendeu-se até meados de 2023, quando o tribunal manteve a decisão de primeiro grau favorável à comunidade, garantindo sua permanência e indeferindo o pedido de reintegração de posse da Teixeira Onze. Não há mais a possibilidade da incorporadora recorrer, visto que a decisão transitou em julgado. 

“A comunidade deixou muito claro, nós não queremos isso. Esse tipo de desenvolvimento que você quer trazer para nós, nós discordamos. Nosso modelo de vida é esse, nosso padrão de vida é esse. Nossa atividade profissional é essa, nossa dinâmica de relação com o território é essa, a partir do turismo de base comunitária, a partir da atividade pesqueira, e é isso”, diz Barbosa, o advogado dos moradores.

O protagonismo das mulheres nestas mobilizações é algo sinalizado por Miriam, também assistente social, que reforça a importância de figuras como Leonete. A educadora, à época, foi uma das lideranças do Comitê da Resistência, grupo que surgiu durante o segundo conflito com a Teixeira Onze, em 2020, e é formado por mulheres da comunidade e entidades parceiras, como Coletivo Cirandas; professores, professoras e estudantes da UFRN; ONG Rede Mangue Mar; Federação de Pesca do RN e outros. 

Leonete relata que os conflitos, sejam com Teixeira Onze ou Genipabu Hotel, dividiram a comunidade e afetam psicológica, emocional e socialmente os moradores. “A gente foi atingido, porque éramos vistos como contrários ao desenvolvimento, porque ele [Marcello Giovanardi] botava na cabeça das pessoas que ia gerar emprego”, continua ela, se referindo a promessa de abrir postos de trabalho a partir da construção de um resort nos hectares reivindicados pela Teixeira Onze.   

“O nosso intuito sempre foi defender a terra, para garantir a permanência do espaço, para que sirva como expansão para futuras construções no próprio município”, defende Leonete. Como exemplo de área que carece de proteção, ela cita o cartão postal de Enxu Queimado, um coqueiral no miolo da comunidade.

Pescadores em Enxu Queimado

Pescadores em Enxu Queimado

Praia de Enxu 

Pescadores em Enxu Queimado

O avanço dos grandes empreendimentos no Nordeste

Para Miriam Vital, os episódios de Enxu Queimado são um recorte do que ocorre no Nordeste brasileiro a partir do avanço de grandes empreendimentos. “É como se as comunidades tradicionais não fossem donas dos seus territórios, como se [o empreendimento] pudesse se apropriar porque [os moradores] são leigos, ou porque vão vender a sua mão de obra de forma mais barata, sem tanta resistência”, continua a assistente social. Do outro lado, ela ressalta que os municípios e estados veem a chegada dos negócios como uma potencialidade de arrecadação, mas deixam de mensurar os danos que eles podem causar a médio e longo prazo.

Além disso, Miriam destaca projetos de energia eólica, que cercam a comunidade desde meados de 2010 e somam 16 parques no município de Pedra Grande. Segundo ela, esses empreendimentos energéticos geram conflitos fundiários e impactos nos ecossistemas, na dinâmica social e no acesso aos espaços que antes eram de livre circulação.

A assistente social define que, independente do escopo, esse tipo de mega-projeto tem um fim específico: gerar lucro e acumular capital. Isso, na visão de Miriam, se dá “a partir da exploração, seja ela da cultura, da privação do lazer, da alteração do modo de vida. Para cumprir esse objetivo, ele [o empreendimento] vai descaracterizar, inclusive, o modo de ser, a tradicionalidade da comunidade.” 

Em resposta a um pedido de posicionamento feito pela Pública, Ana Maria Muller, sócia-gerente da Genipabu, disse que a área referente ao pedido de reintegração de posse “trata-se de uma propriedade privada e que sempre foi reconhecida pela comunidade, desde sua aquisição”. 

Ana Maria negou ter “qualquer relação com a Teixeira Onze” e disse que a empresa é “totalmente solidária com a causa da comunidade de Enxu Queimado”. Alegou ainda que sofreu ameaças por parte da incorporadora e que o episódio gerou “desinformação e conflitos”. 

E acrescentou: “Algumas pessoas tentaram invadir nossa propriedade, talvez pensando ser da Teixeira Onze. De imediato, entramos com pedido de reintegração de posse junto a Comarca de São Bento do Norte. Acreditamos ser esse o instrumento legal a ser acionado para garantir o direito de resguardar uma propriedade particular”. 

Adicionalmente, os advogados Aldemir Júnior e Dayvisson Cabral, representantes processuais da Genipabu, disseram que “se a referida área estivesse em litígio, não teríamos comprado aos então proprietários” e que a aquisição da área foi motivada por “sua beleza natural e a tranquilidade, […] pensando em construirmos uma pousada familiar”. Veja a íntegra da resposta.

Procurada pela reportagem, a Incorporadora Teixeira Onze disse que não tem nada a declarar.

Edição: Bruno Fonseca

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Bárbara Poerner

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