quarta-feira, 23 de agosto de 2023

 

O encantamento da Faria Lima com Haddad

Satisfação do financismo com o desempenho do ministro da Fazenda cresce, aponta pesquisa. Cabe às forças progressistas entender as razões desta “lua de mel”, afinal, a reconstrução nacional exigirá superar o bom-mocismo – e a ortodoxia fiscalista

Foto: Pedro Gontijo/Senado Federal.

O terceiro mandato do presidente Lula continua a oferecer todo tipo de surpresas para a maioria dos analistas da cena política. A começar por sua impressionante capacidade de ter superado as marcas de todas das injustiças cometidas nos processos levados a cabo pela quadrilha de Curitiba, que culminaram com sua prisão irregular e ilegal. Depois de ter passado 580 dias encarcerado, Lula terminou por provar as ilegalidades cometidas por Moro, Dallagnol e os demais integrantes da Operação Lava Jato e se apresentou à disposição de uma frente ampla para derrotar Bolsonaro nas eleições de outubro passado.

O candidato da oposição conseguiu derrotar a máquina da reeleição montada pelo ex-capitão, lutando contra o uso descarado da estrutura governamental, o abuso de benesses ilegais e um derrame fenomenal de recursos orçamentários para tentar reverter as tendências desfavoráveis no pleito. Vale registrar que esse foi o primeiro caso de um presidente da República que não conseguiu vencer a disputa em sua própria recondução ao cargo. Fernando Henrique havia vencido em 1998, Lula foi vitorioso em 2006 e Dilma foi reeleita em 2014. Ainda que a diferença de votos não tenha sido muito significativa, a recondução de alguém que havia sido criminosamente impedido de concorrer 4 anos antes surpreendeu e converteu-se em uma espécie de reconhecimento social tardio da injustiça cometida.

As classes dominantes brasileiras haviam, em sua grande maioria, apoiado Bolsonaro contra Haddad em 2018. A nomeação de Paulo Guedes como o principal responsável pela área econômica buscava consolidar o apoio que o banqueiro havia conseguido amealhar junto às elites para o defensor da tortura, da pena da morte e da ditadura. Ao longo do quadriênio, no entanto, aos poucos as benesses oferecidas pelo superministro não mais compensavam as atrocidades do genocídio e as irresponsabilidades na condução das políticas públicas. Com a aproximação do pleito, os grandes meios de comunicação passaram a verbalizar a busca de um nome alternativo, que fosse capaz de superar a polarização que se anunciava.

Fracasso da terceira via e vitória de Lula

No entanto, como se viu, a operação “terceira via” não foi exitosa. Todas as tentativas de forjar uma alternativa mais palatável aos olhos dos donos do dinheiro fracassaram – seja em termos políticos, seja em termos eleitorais. Lula venceu nos dois turnos e tinha como um de seus primeiros desafios a composição de sua equipe e conseguir tomar posse. A ameaça de golpe militar e o não reconhecimento do resultado proclamado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) estavam sendo manobrados pelo derrotado para impedir a chegada de Lula ao Palácio do Planalto no primeiro dia do ano.

Ao que tudo indica, os poderosos abandonaram a alternativa golpista e ensaiaram uma estratégia de sequestrar o futuro governo. Entre o resultado e a posse foram lançados inúmeros balões de ensaio, com nomes de maior confiança do mercado financeiro para ocupar os postos mais importantes da área econômica. Porém, assim como havia ocorrido com a “terceira via”, a operação não emplacou. Nomes como Henrique Meirelles e Pérsio Arida, dentre outros, não conseguiram se viabilizar junto a Lula e seu entorno. Diante desse quadro, o povo da finança lançou mão de seu Plano C: influenciar de forma mais decisiva o programa a ser implementado pela próxima equipe. Assim foi decidido, assim foi feito.

A intenção era inviabilizar as medidas que pudessem conferir uma linha mais progressista e desenvolvimentista ao mandato 3.0. Foi lançada uma operação para impedir a revogação do teto de gastos, tal como prometido por Lula na campanha. A intenção era criar um clima de catastrofismo em torno de uma suposta “irresponsabilidade fiscal” da futura equipe, lançando mão de uma memória deturpada dos governos anteriores do PT. Em outra direção, o financismo tratou de garantir que a Lei Complementar nº179/21, que estabeleceu a independência do Banco Central, também não fosse objeto de alteração, bem como evitar qualquer alteração nas metas de inflação. Na verdade, havia uma certa “tranquilidade” no quesito da política monetária, uma vez que Lula começaria seu governo com a totalidade dos 9 membros da diretoria do BC tendo sido indicados pelo seu antecessor. O Copom e a taxa oficial de juros estavam sob custódia da banca privada.

Haddad e a trilha do bom mocismo

Frente a esse quadro, a opção de Fernando Haddad foi bastante clara e orientada por um certo pragmatismo, que o afasta de forma explícita e declarada de qualquer trilha desenvolvimentista. Aquele professor que já havia trocado as aulas que ministrava na Faculdade de Filosofia da USP pelas salas do Insper optou por atender plenamente aos interesses da chamada Faria Lima. Na verdade, ele terminou por repetir o cenário traçado por seu antecessor, Antonio Palocci, quando este havia sido nomeado por Lula para o mesmo cargo em 2003. Trata-se da conhecida, e nada inédita, estratégia de incorporar o espírito do bom mocismo e introduzir na agenda do Ministério da Fazenda a pauta prioritária sugerida pelos representantes do financismo.

Houve uma sequência de atos e decisões que permitem comprovar tal trajetória. Antes mesmo da posse do novo governo, ainda durante a transição, Haddad convenceu Lula da necessidade de introduzir na PEC da Transição um dispositivo que relativizasse a revogação pura e simples do teto de gastos, imposto pela famigerada EC 95/2016. Com isso, o futuro governo obrigou-se a enviar ao Congresso Nacional uma lei complementar criando um novo regime fiscal. Na prática isso significava que, além de ter a política monetária já sequestrada pelo financismo privado, o novo “detalhe” poderia retirar também da política econômica a pujança necessária a ser oferecida pela política fiscal.

Na sequência, o novo governo viu-se diante da necessidade de oferecer a Lula os instrumentos para cumprir outra importante promessa de campanha, qual seja, retomar a política de reajuste real do salário mínimo. Mais uma vez, Haddad assumiu o lado da ortodoxia fiscalista e pressionou para que o novo valor fosse apenas R$ 1.302, sem nenhum ganho real. Na disputa interna no núcleo duro do Planalto, ainda no mês de janeiro, acabou prevalecendo a tese de levar a remuneração a R$ 1.320. Naquele momento, pelo menos, o argumento de um suposto ”forte impacto fiscal” da mudança apresentado pela Fazenda não foi aceito pelo presidente da República. Afinal, os ganhos macroeconômicos de tal reajuste sobre a remuneração de dezenas de milhões de brasileiros mais do que compensariam os custos de R$ 7 bilhões aos cofres públicos.

Arcabouço fiscal e reforma tributária: pauta do financismo

Ainda no domínio da política monetária, o governo poderia desde o início ter promovido uma alteração na meta de inflação, por meio de decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN). Ali têm assento a ministra Tebet do Planejamento e Haddad, além de Campos Neto. Se houvesse disposição do titular da Fazenda, a decisão de trazer a meta para níveis mais realistas teria servido como um argumento a mais para que o Copom tivesse reduzido a Selic desde o começo do ano. Mas nem isso Haddad se dispôs a tentar. Além disso, já estamos entrando no sétimo mês deste terceiro mandato e o responsável pela Fazenda não tomou nenhuma iniciativa para orientar os bancos federais a baixarem seus juros na ponta para as empresas e as famílias. Qual o sentido de termos bancos públicos, se Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco da Amazônia ou Banco do Nordeste praticam os mesmos spreads que seus congêneres do oligopólio privado?

O próximo capítulo envolveu a elaboração do chamado “novo arcabouço fiscal”. Em primeiro lugar, Haddad convenceu Lula de uma certa urgência na matéria, apesar de que a Emenda Constitucional aprovada na transição oferecia o prazo até agosto para que o Executivo enviasse o texto ao Parlamento. Além da pressa, o ministro da Fazenda estabeleceu interlocução exclusivamente com o Roberto Campos Neto (presidente do BC) e com a nata do financismo privado. O governo terminou por não receber representantes dos sindicatos, de entidades profissionais ou pesquisadores de universidade e instituições independentes. Para elaboração do novo modelo, a regra foi manter a essência de compressão dos gastos sociais e das empresas estatais, mantendo a lógica perversa da busca de superávit primário.

Ora, diante de tal submissão a seus interesses, os porta-vozes do sistema financeiro passaram a tecer loas ao novo modelo, mas mantendo um firme e duro controle de eventuais alterações que apontassem para o caminho progressista ao longo da discussão no legislativo. Durante a tramitação do PLP 93 no interior da Câmara dos Deputados, a postura inflexível patrocinada por Haddad impediu que fossem apresentadas pela base do governo emendas que aliviassem a rigidez fiscal presente na proposta. Nem mesmo o discurso de Lula considerando as rubricas orçamentárias com saúde e educação como sendo “investimento” foi atendido.

O tempo encarregou-se de demonstrar que o argumento da pressa em aprovar o texto na Câmara dos Deputados antes do recesso parlamentar era apenas conversa para boi dormir. A matéria segue a passos mais lentos no Senado Federal e já existe a possibilidade de que algumas emendas sejam introduzidas para nova apreciação na Casa em teve início a tramitação. Na verdade, todos os sinais indicam que se tratava de um desejo pessoal de Haddad se fortalecer como um interlocutor mais bem aceito junto ao conservadorismo de todas as matizes.

Rumo à Faria Lima: o caminho da aceitação

A etapa mais recente envolveu a assim chamada Reforma Tributária. Também nesse quesito, o ministro da Fazenda assumiu a linha de frente pela aprovação da PEC 45. Trata-se uma proposta que estava parada há tempos no interior do legislativo, junto com outras proposições semelhantes. O grande receio das classes dominantes sempre foi que os de que governos do PT cumprissem com suas propostas de promover uma mudança mais efetiva em nosso sistema de tributação. Tratava-se de introduzir elementos que reduzissem o grau de regressividade e injustiça do modelo vigente, apontando para tributação de fato sobre rendas elevadas e sobre patrimônio. E o interessante é que boa parte de tais mudanças não necessitam nem mesmo de mudança constitucional. Bastariam, por exemplo, uma medida provisória eliminando a injustificável isenção de lucros e dividendos, uma portaria do ministério da Fazenda tributando a exportação de minério de ferro, petróleo e soja, além um projeto de lei complementar disciplinando o Imposto sobre Grandes Fortunas.

Mas o foco de Haddad concentrou-se exclusivamente no processo de simplificação da cobrança dos impostos sobre consumo. É claro que se trata de uma medida importante e necessária, mas que não muda uma vírgula sequer na desigualdade estrutural de nosso sistema de impostos. Ela é bem-vinda por eliminar a guerra fiscal e modernizar o sistema de arrecadação, conferindo maior racionalidade ao conjunto. Mas a estratégia de tramitação deveria condicionar a votação da PEC à aprovação prévia das medidas acima mencionadas. Neste quesito também a desculpa da pressa não se sustenta. Qualquer mudança no sistema de tributação deve respeitar o chamado princípio da anualidade. Assim, as alterações só serão efetivas a partir do ano que vem, pouco importando o momento da aprovação. Além disso, a complexidade do modelo implícito envolve prazos de transição entre 10 e 40 anos para que as mudanças sejam integralmente incorporadas no sistema de preços relativos da nossa economia.

De qualquer forma, a votação na Câmara dos Deputados, no afogadilho dos últimos dias antes do recesso, também revela que o esforço político e orçamentário extraordinário talvez tenha sido desnecessário. Mas a disputa da narrativa sobre a matéria operou para retirar as últimas resistências ao nome de Haddad que ainda existiam junto à nata do finacismo. Uma pesquisa realizada junto a 80 dirigentes do setor apontou uma importante elevação na satisfação do desempenho do ministro, ao mesmo tempo em que os mesmos entrevistados mantêm uma enorme suspeição em relação a Lula. Entre março e julho deste ano, a desconfiança desse pessoal sobre Haddad caiu de 66% para 40%. Durante o mesmo período, as suspeitas em relação a Lula chegaram mesmo até a subir um pouco de 94% para 95%

O quanto você confia em cada um desses líderes políticos?

Fonte: Quaest

Finalmente, talvez até por seu caráter anedótico, vale mencionar também a recente mudança de postura divulgada pelo empresário dono da rede Habib’s. Conhecido até o ano passado pelo seu envolvimento profundo com as causas bolsonaristas, Alberto Saraiva agora demonstra um “arrependimento” por ter apoiado o genocida no passado e declara que está muito satisfeito com a gestão do ministro da Fazenda – segundo ele, “Haddad é 10”.

Assim, cabe às forças progressistas se questionarem a respeito de quais seriam as razões de tal encantamento súbito e surpreendente das classes dominantes com Haddad. É fundamental não cair na ilusão de que agora tudo se resolve com a aceitação do ministro nos salões luxuosos dos bilionários. Muito provavelmente essa inusitada lua de mel só está ocorrendo pelo fato de as pautas progressistas e desenvolvimentistas terem sido esquecidas em alguma gaveta da Esplanada.

Que fique bem claro: a partir do momento em que os representantes do governo retomarem as medidas para que Lula consiga realizar 40 anos em 4, flexibilize as amarras da austeridade fiscal e reveja as aberrações da deforma trabalhista de Temer e Bolsonaro, aí então veremos de fato como andam os verdadeiros e sinceros sentimentos dessa turma dos endinheirados para com Fernando Haddad.

 

PPPs: A armadilha que o governo montou para si

Fernando Haddad propõe as parcerias público-privadas como solução à falta de recursos públicos, estrangulados justamente pelo arcabouço fiscal. Tragédia em presídios estaduais mostra como essa peculiar forma de privatização pode ser perigosa

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

As boas notícias no campo da economia na conjuntura mais imediata lançam uma cortina de fumaça sobre as difíceis perspectivas que já estão encomendadas para essa mesma área econômica para o médio e longo prazos. A mais recente lua de mel do financismo com o ministro da Fazenda aponta para quais são as verdadeiras propostas que o comando deste setor do governo apresenta para a crise de estagnação estrutural do ritmo das atividades que o país atravessa há um certo tempo. Trata-se de preservar a austeridade fiscal, manter intocável a essência do ambiente em favor do rentismo financista e estimular o avanço do capital em áreas até então reservadas ao Estado.

A um observador desavisado pode parecer estranho que haja tantas manchetes elogiosas à austeridade fiscal do novo arcabouço, editorais louvando as medidas constantes na proposta de Reforma Tributária e mesmo capas positivas para Fernando Haddad nas mesmas revistas semanais que passaram décadas demonizando Lula e o Partido dos Trabalhadores. O que explica esse aparente paradoxo? Na verdade, os mesmos 60 indivíduos da nata do sistema financeiro que responderam à famosa pesquisa Quaest sobre o governo demonstraram acreditar na capacidade do ex-prefeito de São Paulo, mas mantinham elevadíssima desconfiança em relação ao presidente da República.

O fato concreto é que as amarras constantes no PLP 93, que estabelece as bases do Novo Arcabouço Fiscal, apontam para uma redução continuada da capacidade de o Estado brasileiro recuperar o seu necessário protagonismo na esfera da economia. A proposta elaborada por Haddad, depois de consultar apenas o presidente do Banco Central e alguns dirigentes de bancos e instituições financeiras, mantém a busca por superávit primário e consolida regras para que as despesas orçamentárias estejam proibidas de crescer no mesmo ritmo da evolução das receitas. Assim os gastos só podem aumentar 70% da elevação dos ingressos fiscais.

Teto do Haddad e a redução de gastos públicos

A perpetuação do espírito demoníaco da austeridade no trato das contas públicas anuncia severas dificuldades nos exercícios próximos. A manutenção de áreas essenciais como saúde e educação, por exemplo, na contabilidade do novo teto do Haddad já faz com que dirigentes do Tesouro Nacional anunciem, desde o mês de março, a necessidade do envio de uma proposta para retirar do corpo da Constituição os mínimos obrigatórios para estabelecimento das rubricas orçamentárias para esses setores. A intenção é eliminar a vinculação compulsória dos gastos da saúde (15%) e da educação (18%) com a receita corrente do governo federal. Uma sandice de inspiração liberaloide, que nem mesmo os governos Temer/Meirelles e Bolsonaro/Guedes conseguiram realizar.

Além destes dois grupos de serviços públicos mais sensíveis, há um conjunto de outros setores que serão certamente prejudicados com a vigência do novo arcabouço fiscal. As necessidades em ciência, tecnologia e e inovação, em políticas de combate à fome e à pobreza, as necessidades na área de meio ambiente, as políticas públicas em agricultura familiar, as medidas de saneamento, os orçamentos de previdência social e vários outros campos estarão impossibilitados de contar com recursos orçamentários de acordo com as reais necessidades da maioria da população. Por outro lado, os fundamentais aportes de recursos em direção às empresas estatais e aos bancos públicos federais também estarão limitados pelas novas regras. O Brasil pode estar voltando, mas o Estado está ficando para trás.

Para fazer face a tal situação, Haddad já anunciou, desde o início, aquilo que apresenta como uma solução miraculosa para a falta de recursos que ele mesmo contribuiu para criar. É importante registrar que o governo montou para si mesmo uma armadilha na condução da política fiscal. Se a política monetária já havia sido sequestrada desde o governo Bolsonaro com a aprovação da lei de independência do BC, o novo governo optou pela entrega – por vontade própria – de todo o potencial existente na política de gastos públicos. Assim, a estratégia para recuperar o nível de investimento na economia passa a depender preponderantemente da ação e do interesse do capital privado.

PPPs: privatização dos serviços públicos

Diante de tal quadro de limitação da ação do Estado, o ministro da Fazenda tira de sua cartola a mágica das parcerias público-privadas, as famosas PPPs. A sua utilização avança em quantidade e qualidade. Essa forma peculiar de permitir a privatização de serviços públicos e outros bens e serviços em que o setor público era o principal agente econômico passa ser a regra. Para além da delegação de tais responsabilidades a organizações sociais (OSs) do setor privado na saúde e educação, que avançaram bastante nos 3 níveis de governo ao longo das últimas 2 décadas, agora o governo acena para PPPs em escala crescente em projetos de infraestrutura, meio ambiente, pesquisa e inovação tecnológica e até mesmo presídios. Uma loucura!

Esse é o modelo em que o capital privado passa a comandar os investimentos e a gestão posterior de áreas estratégicas do Estado brasileiro. Ele pode se converter em uma importante mola mestra do novo ciclo de acumulação de capital no país. O governo está preparando uma série de medidas para ampliar o escopo de tais possibilidades de articulação entre o setor público e o setor privado. Dentre as novidades, por exemplo, consta a criação de debêntures incentivadas com garantia governamental e isenção de imposto de renda sobre tais papéis. Essa modalidade de negócio permite a alavancagem de recursos pelo setor privado interessado em fazer negócios em áreas que até há pouco tempo atrás eram de exclusividade do setor público, a exemplo de saúde, educação, saneamento e segurança pública.

Uma das principais diferenças reside na lógica de atuação do capital privado. Quando realiza investimentos em tais setores, o investidor está preocupado apenas e tão somente com a taxa de retorno do capital aplicado e não com a qualidade do serviço prestado à sociedade ou ao cidadão. A busca pela chamada “maximização da rentabilidade” foca unicamente no balanço superavitário entre receitas e despesas de cada projeto. Assim ao elevar receitas e reduzir despesas, o caminho está aberto para o aumento exagerado de tarifas e a diminuição injustificada dos gastos associados à melhoria dos serviços.

PPP não é panaceia para retirada do Estado

O modelo de PPPs existe desde o governo FHC, mas sua utilização entusiasmada pelos governos estaduais não se localiza apenas nas gestões de governadores tucanos. A Bahia e o Piauí, por exemplo, mantêm há um bom tempo programas de serviços públicos com base nesse tipo de concessão ao capital privado. Não por acaso os últimos governadores tornaram-se ministros de destaque no terceiro mandato de Lula: Rui Costa na Casa Civil e Wellington Dias no Desenvolvimento Social. Esse fenômeno abre a possibilidade de que tal modelo seja efetivamente estabelecido como a regra da expansão desse tipo de serviço público. Ou seja, sua transformação em negócio para o capital privado.

O caso das PPPs para presídios é bastante emblemático dos riscos e consequências da generalização do uso das mesmas. O estado de Minas Gerais foi o primeiro a adotar o modelo para o Presídio de Ribeirão das Neves. Atualmente está em debate o apoio financeiro do BNDES para uma demanda do governador do Rio Grande Sul. Eduardo Leite (PSDB) pretende lançar uso do modelo para um presídio no município de Erechim, com previsão de leilão a ser realizado na B3, a Bolsa de Valores de São Paulo. Haja simbolismo de interface entre o as esferas pública e privada.

PPP em presídios: perpetuação da violência, injustiça e desigualdade

Este talvez seja um dos casos em que o recurso à PPP torna mais evidente a contradição entre o modelo de investimento e gestão privadas e o natureza intrínseca de um serviço público. A transformação de presídios em objeto de acumulação de capital coloca o encarceramento como elemento fundamental para a obtenção de receitas pelo investidor em busca de seu lucro. Quanto maior for o número de presos, maior será a rentabilidade do investimento. Quanto piores forem as condições dos mesmos, menor será a despesa e, portanto, maior a lucratividade do negócio. Esse objetivo vai totalmente na contramão da necessária mudança na política de segurança pública e de encarceramento.

É mais do que sabido que a composição da população carcerária brasileira é majoritariamente feita de jovens e negros, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2022 havia 826 mil presos, sendo que os negros representavam 68% do total. O perfil mais jovem dessa parcela é demonstrado pela presença de 46% com idade entre 18 e 29 anos. Além disso, mais de 25% de todos os encarcerados estavam ainda em detenção provisória, sem julgamento nem condenação. A privatização dos presídios opera na lógica de aprofundar esse quadro de injustiças e desigualdades

A incorporação dos objetivos e dos métodos do neoliberalismo por governos progressistas e de esquerda só trouxe péssimos resultados na experiência internacional. Ainda está em tempo de Lula acordar para a necessidade de impedir que essa trilha seja adotada pelo seu governo. Projetos financeiros com incentivos tributários e garantias governamentais para as parcerias público-privadas não podem se converter na panaceia para as necessidades de recuperação do protagonismo do Estado brasileiro.

 

Novo PAC: é preciso mais que trilhão

O programa é importantíssimo, mas 57% dos recursos dependerão da iniciativa privada. Falta ao Estado recuperar seu protagonismo em torno de um projeto de desenvolvimento. Isso requer mais investimento, sem as travas da austeridade “suave”

Fotos: Secom/Presidência

O anúncio oficial da nova versão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi cercado de muita expectativa e publicidade. A intenção do governo é criar um clima positivo a respeito das possibilidades da retomada do crescimento das atividades econômicas, assim como ocorreu nas edições anteriores de 2007 e 2010 do programa, sob o segundo mandato de Lula.

Os números apresentados pretendem causar um grande impacto na sociedade e na opinião pública de forma geral, em razão da magnitude das cifras. O total dos valores envolvidos aponta para R$ 1,7 trilhão. Ora, caso se tratasse efetivamente de investimentos e despesas públicas diretas para um único exercício seria razoável considerar uma alavancagem macroeconômica de relevância. Afinal, aquilo que o economês chama de “multiplicador do gasto público” entraria em ação de forma bastante incisiva e as consequências positivas para o crescimento do PIB seriam inequívocas.

No entanto, a análise calma e detalhada no momento posterior ao anúncio recomenda certa cautela na avaliação da proposição. A primeira questão é relativa à duração temporal do programa anunciado. Apesar das dificuldades na exposição da proposta, o que pode ser deduzido é que se trata de um cronograma de desembolsos com um horizonte temporal superior a 4 anos. Seriam R$ 1,4 tri para o -quadriênio 2023/26 e mais R$ 0,3 tri para o período pós2026. Assim, a grosso modo, poderíamos considerar um fluxo anual médio de R$ 350 bilhões para o atual mandato de Lula.

PAC 3 é insuficiente

Apesar de números elevados e que podem causar alguma impressão à primeira vista, a realidade é um pouco diferente. Algum padrão de variáveis similares pode ajudar na comparação. Caso consideremos o valor total das despesas incluídas no Orçamento Geral da União (OGU) para 2023, por exemplo, o montante do PAC 3 fica ainda mais modesto. A parcela anual do programa representa pouco mais de 6,7% do total de R$ 5,2 tri previstos para os dispêndios orçamentários do governo federal para o presente ano.

Um outro aspecto a ser levado em conta refere-se à natureza heterogênea das informações divulgadas e da adição de componentes aparentemente distintos na busca de chegar ao valor trilionário. É o procedimento que a sabedoria popular chama de somar laranjas e abacaxis. O resultado fica complicado de ser compreendido. Assim, de acordo com as informações oficiais, a composição do programa seria a seguinte:

PAC 3 – Origens dos recursos

 R$ bilhões%
Recursos orçamentários federais3710,22
Recursos empresas estatais3430,20
Recursos financiamentos federais3620,21
Recursos setor privado6120,36
TOTAL16881,00
Fonte: Casa Civil.

Como se pode perceber, a expectativa é que o capital privado participe com mais de um terço do total dos investimentos previstos ao longo dos anos (36%), em sua grande maioria por meio do modelo de parceria público privada (PPPs). Por outro lado, os recursos a serem financiados pelo governo federal também devem ser para projetos a serem implementados pelo setor privado. Considerando-se tal hipótese, percebe-se que mais da metade dos valores (57%) vai depender diretamente do interesse e da disposição do capital.

Brasil precisa de muito mais

Apesar das ponderações acima, o fato é que não se pode negar a importância de tal inciativa do governo Lula. Qualquer medida que venha a abandonar de uma vez por todas a postura liberal de Paulo Guedes deve ser vista com bons olhos. Deixar a retomada do crescimento da economia e a busca por um caminho desenvolvimentista apenas nas mãos da iniciativa privada e à espera da ação das chamadas “livres forças de oferta e de demanda” não resolveria os graves problemas que o Brasil atravessa. Para isso são necessárias políticas públicas direcionadas, política industrial orientadora e um espírito de vanguarda ser atribuído ao setor público em diferentes etapas da atividade da economia.

No entanto, a forma como o PAC atual foi elaborado tampouco supre as necessidades de recompor os estragos provocados desde 2016, após o golpeachment contra Dilma Rousseff. As gestões de Temer/Meirelles e Bolsonaro/Guedes fizeram terra arrasada do país, de nossa economia e de nossa população. Recuperar a destruição do Estado e o desmonte das políticas públicas exigem muito mais do que simplesmente apresentar uma coletânea de programas e projetos. Ao que tudo indica, falta ainda a vontade política expressa de postular claramente pela recuperação do protagonismo do Estado no processo econômico, estabelecendo prioridades e formulando programas estratégicos de médio e longo prazos.

A Constituição brasileira prevê a necessidade de um Plano Nacional de Desenvolvimento desde 1988, mas esse importante instrumento de planejamento governamental jamais foi implementado. Um programa digno deste nome exige um esforço nacional em torno do estabelecimento de seus possíveis eixos norteadores, com a definição de prioridades e os recursos necessários por parte do governo federal, em articulação com estados e municípios. Mas este movimento deveria significar muito mais do que uma simples recuperação de obras paralisadas ou de atendimento aos anseios das lideranças políticas locais. Recuperar a importante função planejamento do Estado brasileiro é algo muito mais complexo e que exigiria maior atenção e cuidado por parte do Executivo.

Despesas com juros são maiores que o PAC

O volume de recursos tampouco deveria ser limitado pelas regras da austeridade fiscal restritiva. A título de comparação, vale a pena recordar que apenas o PAC 2, lançado em 2010, já previa um valor total de investimentos da ordem de R$1,6 trilhão com valores da época. Ora, se considerarmos tão somente a atualização inflacionária de tal montante, os valores chegariam a R$ 2,7 trilhões atualmente. Desnecessário dizer que ao longo destes 13 anos as necessidades de políticas públicas e de infraestrutura cresceram bastante, principalmente se levarmos em conta os 7 anos de destruição promovida pelo golpismo e pela extrema direita.

Mais uma vez o argumento apresentado para a falta de iniciativa mais ousada do governo no enfrentamento da questão refere-se à suposta ausência de recursos e à necessidade de apresentar uma postura de “responsabilidade fiscal”. Porém, o problema parece ser a incorporação da lógica da austeridade por parte do comando do Ministério da Fazenda na condução da política econômica. Esta orientação é bastante contraditória com o espírito da campanha de 2022 e com as promessas de Lula para seu terceiro mandato. No entanto, por incrível que possa parecer, essa abordagem conservadora e ortodoxa esteve desde o início na base da formulação da PEC da Transição e do Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Assim, ao recuar na proposta de promover a pura e simples revogação da EC 95 e do famigerado Teto de Gastos, Haddad recomendou a Lula que o mais correto seria a adoção de um novo modelo de austeridade.

Com isso, as verdadeiras necessidades de investimentos governamentais e despesas públicas não poderiam ser cumpridas em razão das limitações previstas no NAF. No entanto, a retórica continua enviesada pela narrativa do financismo. A lógica de obtenção de superávit primário a qualquer custo provoca, na verdade, a compressão das despesas não-financeiras e dos investimentos. E continuamos assistindo a novas temporadas da surrada série “contingenciamentos pela Esplanada”. A imprensa não para de repercutir os cortes em saúde, educação, assistência social e outras áreas de maior sensibilidade social. Ou seja, as rubricas do orçamento vinculadas às despesas financeiras continuam livres, leves e soltas para crescer como assim quiserem os responsáveis pela política econômica. Caso fiquemos tão somente com os volumes das despesas governamentais realizadas com o pagamento dos juros da dívida pública, apenas tais valores de gastos financeiros excedem os totais dos dispêndios previstos para o PAC 3. Uma loucura!

E não existe exigência da sacrossanta “responsabilidade fiscal” para com tais itens, onde claramente ocorre um direcionamento do fundo público para os setores privilegiados do topo da nossa pirâmide da desigualdade. Ao longo dos últimos 12 meses, por exemplo, foram gastos R$ 700 bi a esse título – o equivalente a 40% do R$ 1,7 trilhão previsto para o horizonte de 4 anos do novo PAC e que incluem também os investimentos do capital privado na conta. Caso sejam computados os valores acumulados e atualizados das despesas com juros no quadriênio 2019/22 o montante deste único item das rubricas orçamentárias supera a cifra de R$ 1,9 tri.

DESPESAS COM JUROS – 2019/2022 (R$ bilhões)

ANO
Valor (R$ bi)
2019466
2020380
2021493
2022586

Total
1.925
Fonte:BC/STN (valores atualizados)

As intenções do governo com o PAC 3 podem até ser boas. As páginas oficiais na internet apontam para um programa que estaria

(…) “Baseado na articulação entre municípios, estados e federação, os objetivos do novo programa são gerar emprego e renda, reduzir desigualdades sociais e regionais, promover a neoindustrialização e ainda o crescimento com inclusão social e a sustentabilidade ambiental.” (…)

No entanto, entre o trilhão e os bilhões anunciados, resta uma avenida ser preenchida com os recursos capazes de suprir as reais necessidades de um novo ciclo de desenvolvimento social e econômico, sustentado por um programa estratégico capitaneado pelo Estado brasileiro. Porém, para que esse objetivo seja alcançado, o governo Lula precisa abandonar urgentemente as travas da austeridade fiscal e os dogmas neoliberais ainda presentes no discurso e na prática de alguns de seus representantes na economia.

 

A queda dos juros e o bode na sala

Poucos notaram, mas taxas reais estão mais altas que no dia na eleição de Lula. Bolsonaristas enquistados no Banco Central mantêm sabotagem. Mas governo tem uma brecha para agir: é hora de orientar BB e Caixa a reduzirem os spreads

Em seu encontro mais recente o Comitê de Política Monetária (Copom) finalmente resolveu atender, ainda que de forma tardia e em doses homeopáticas, ao clamor nacional contra a manutenção da taxa oficial de juros na estratosfera. Uma das causas para tal situação reside na lei de independência do Banco Central (BC), aprovada pelo Congresso Nacional em 2021 por pressão de Paulo Guedes e Bolsonaro. A partir da nova regra, os diretores do BC passaram a contar com mandato fixo e o novo governo eleito começou a trabalhar com os nove membros da instituição alinhados com o espírito bolsonarista, que havia disso derrotado nas urnas

A 256ª reunião do colegiado decidiu pela redução as Selic em 0,5 pontos, saindo dos 13,75% anteriores para os atuais 13,25%. O anúncio do novo patamar foi feito às 18h da última quarta-feira (2/8) e houve ampla comemoração. Foi uma vitória política do presidente Lula, de um conjunto amplo de lideranças políticas, de economistas não alinhados com o dogma ortodoxo do financismo e da grande maioria do povo brasileiro — que sofre as agruras da taxas de juros mais alta do mundo.

Mas é importante contextualizar. A redução mínima de 0,5% tem peso quase insignificante no que se refere à capacidade efetiva da política monetária. A variável mais relevante para eventual retomada dos investimentos de forma agregada é aquela que o jargão do economês trata por “taxa real de juros”. Ela é calculada subtraindo-se a inflação do período da taxa nominal da Selic. Assim, a taxa real de juros atual seria 13,25% menos a inflação acumulada dos últimos 12 meses, que está em 3,16%. Ou seja, está atualmente em torno de 10%.

Taxa real aumentou:

Isso significa que, apesar desta redução insignificante, a taxa real só cresceu entre novembro de 2002 e junho de 2023. Logo depois de anunciada oficialmente a vitória de Lula no pleito presidencial, a Selic estava em 13,75% e a inflação era de 6%. A taxa real de juros, portanto, era de aproximadamente 7,3%. O gráfico abaixo ilustra esse movimento de elevação da taxa real de juros desde aquele momento importante de inflexão política em nosso País. O projeto do genocida fascista havia sido derrotado pelo voto da maioria da população, mas o programa de governo de Lula passou a ser vítima da sabotagem praticada pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto.

O Copom reuniu-se cinco vezes consecutivas desde aquele momento. Em todas elas a orientação de seu líder, sempre absolutamente antenado com os interesses do financismo, foi por uma recusa sistemática em atenuar os impactos da política monetária arrochada. Finalmente, nesse último encontro houve o referido recuo milimétrico na taxa nominal. Mas trata-se de uma diminuição apenas para inglês ver, uma vez que a rentabilidade real chegou mesmo a aumentar. Por isso cabe aqui, como uma luva, a parábola do bode na sala. A situação estava de tal ordem incômoda que a própria maioria bolsonarista do colegiado aceitou um recuo de fachada e boa parte das elites políticas e empresariais terminou por se contentar com mais essa vitória de Pirro. O problema maior é que setores da base de esquerda e progressista do governo também entraram nesse encantamento com o conto da carochinha.

A sala continua suja e mal cheirosa

Comemoraram a decisão do Copom de forma totalmente acrítica. Da mesma forma como festejaram de forma ingênua ou oportunista os elogios à “austeridade” do novo arcabouço fiscal, vindos de franjas do sistema financeiro, ou os salamaleques oferecidos pelos meios de comunicação ao arremedo de reforma tributária em favor das classes dominantes. O mesmo comportamento pode ser observado quando algumas agências de risco e de rating passaram a divulgar comunicados melhorando as notas de títulos financeiros públicos e privados do Brasil. Na verdade, tratava-se da explicitação de uma concordância com os rumos da política econômica levada a cabo por Fernando Haddad. Ou seja, os setores comprometidos com a mudança do modelo atual rumo a um projeto desenvolvimentista ainda não têm muito o que comemorar no quesito política econômica do novo governo.

O recuo de meio ponto percentual acordado pelo Copom está longe de produzir uma política monetária que sirva aos verdadeiros interesses do Brasil e não apenas aos desejos de uma minoria que se beneficia do rentismo parasitário. Um dos bodes pode até ter sido retirado da sala, mas uma série de outros permanecem ainda a sujar o ambiente da economia e a incomodar a vida da população. A situação já era bastante dramática e não deixou de sê-lo a partir do dia seguinte ao anúncio da redução da Selic em míseros 0,5%.

Ao invés de se acomodar com a decisão e se encantar com os elogios que tem recebido da nata do financismo, o ministro da Fazenda deveria avançar na pauta de redução efetiva do custo do crédito e dos empréstimos para o conjunto da sociedade. O governo federal conta com importantes instituições financeiras para promover uma redução das taxas de juros cobradas na ponta aos tomadores de recursos. Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), Banco do Nordeste (BNB) e Banco da Amazônia (BASA) possuem uma extensa rede de capilaridade em todo o território e são bancos de primeira linha.

Lula pode reduzir os spreads.

Se quiser efetivamente promover uma limpeza na sala, Haddad precisa orientar tais bancos a baixarem de forma significativa seus spreads e não mais alinharem-se aos patamares extorsivos praticados pelo oligopólio da banca privada. De acordo com dados oficiais divulgados pelo próprio BC, a média dos spreads cobrados em operações de cheque especial beira o absurdo e escandaloso nível de 352%, enquanto as operações de cartão de crédito rotativo estão na faixa de 152%. Não existe argumento par tal prática criminosa, que sempre contou com o olhar complacente do órgão regulador e fiscalizador do sistema, o próprio BC. Imaginem o ganho de uma empresa que toma recursos a 13,25% e empresta a tais taxas. É algo que se “naturalizou” em nossa sociedade, assim como ocorria com as taxas de inflação elevada no passado ou com os índices de insegurança e mortandade ainda nos dias de hoje

Não existe razão para que os bancos estatais apresentem resultados com lucros bilionários. São instituições financeiras que deveriam estar a serviço de um projeto de desenvolvimento social e econômico nacional. Podem perfeitamente reduzir de forma expressiva as taxas cobradas em suas operações de crédito e empréstimo. Além de contribuir para a diminuição do excessivo grau de financeirização de nossa sociedade, essa postura certamente obrigaria os bancos privados a trilharem o mesmo caminho com sua clientela. Afinal, essa é a lei do próprio “mercado”, como os próprios financistas gostam de mencionar. Neste caso, a concorrência provocaria uma mudança para baixo do patamar dos juros vigentes em nossa economia.

O que não podemos aceitar é o discurso que começa a empolgar os responsáveis pela área econômica a respeito do tal “marco das garantias”. Como nada mais nos surpreende nesse domínio, começam a pipocar elogios ao projeto de lei que oferece ainda mais garantias aos bancos nas operações com empresas e famílias. O PL 4.188/21 chega ao absurdo de permitir que as instituições financeiras tomem o único imóvel possúido por um indivíduo ou família e dado em garantia. Trata-se de uma demanda antiga do lobby banqueiro por meio da Febraban e que recebeu impulso de Paulo Guedes no governo anterior. O argumento falacioso é apontar esse tipo de inadimplência como a principal causa de juros elevados.

Lula já se debateu com situações semelhantes no passado. Ele sabe que os bancos públicos não devem se pautar pelas orientações dos grandes conglomerados privados do sistema bancário. Em 2009, por exemplo, ele manifestava sua “obsessão” por spreads mais comedidos no Banco do Brasil e Caixaas. Além dele, Dilma Roussef também ensaiou uma estratégia semelhante em 2012, mas logo em seguida recuou. O momento atual exige uma postura mais assertiva nesse domínio. Não basta retirar o bode da sala. O governo precisa atuar de forma mais incisiva para alterar de forma profunda e duradoura a prática da extorsão institucionalizada do financismo sobre o restante da sociedade.