terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

 

Jornalismo que incomoda empresários poderosos

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Clarissa da Agência Pública aliados@apublica.org Cancelar inscrição

10:16 (há 12 minutos)

para mim

Olá!

Aqui é Clarissa Levy, repórter e produtora de podcasts na Pública. Como vai?
 
Outro dia estava pensando nos vazios que o jornalismo dito tradicional deixa quando cobre alguns assuntos espinhosos. Volta e meia eu escuto pessoas comentando “ah, a mídia nunca falaria disso” ou “ninguém mexe nesse vespeiro”. Mas o que faz com que um assunto, mesmo gerando indignação ou curiosidade, seja visto como delicado demais para ser abordado pela mídia?

As razões são muitas, claro. Mas percebo que várias vezes o tal vespeiro intocado envolve alguma grande empresa. Em muitos casos, é uma denúncia que resvala em algum poder financeiro (e político) muito grande. E parte do nosso trabalho aqui na Pública é justamente tentar mexer nesses vespeiros. 

Foi o que aconteceu no caso da máquina oculta de propaganda do iFood. Ano passado, passei meses reunindo documentos e ouvindo pessoas para desvendar como funcionou uma mega operação de propaganda montada pela empresa para desmobilizar entregadores num período em que eles fizeram várias greves. 

Descobrimos que agências de publicidade contratadas pelo iFood criaram perfis falsos em redes sociais e passaram meses disseminando narrativas anti-greve para entregadores. As agências chegaram até a infiltrar um funcionário em uma manifestação. Tudo isso com objetivo de desviar o foco do movimento dos entregadores. A reportagem chocou muita gente e fez o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a CPI dos Aplicativos na Câmara Municipal de São Paulo investigarem o caso e cobrarem explicações da empresa. 

Antes disso tudo, quando ainda estávamos tentando checar a veracidade das denúncias, o que nos guiava (e dava segurança) era a certeza de que, se a história fosse realmente verdade, iríamos publicá-la. Doa a quem doer. 

Isso porque a Pública é um veículo que se construiu sobre uma base sólida de autonomia e independência. Não dependemos de anúncios e nem precisamos deixar histórias de lado para evitar ferir parcerias comerciais. Prestamos contas ao interesse público. São as leitoras e leitores que nos inspiram e ajudam a continuar trabalhando. 

Dois anos atrás, quando investigamos os relatos sobre abusos sexuais cometidos pelo fundador das Casas Bahia, Samuel Klein, também recebemos desabafos do tipo "ninguém publica nada sobre isso, já contei meu caso anos atrás e não saiu nada no jornal". Ainda que várias das vítimas tenham tentado processá-lo e algumas tenham compartilhado seus relatos com jornalistas antes de nós, a história permaneceu escondida por décadas. 

Nós ouvimos essas pessoas. Investigamos. E publicamos que, por mais de três décadas, o fundador de uma das lojas mais conhecidas do país teria abusado de meninas e mulheres. Muitas vezes, praticando a violência dentro da sede da própria empresa. 

Não é o caso de divagar aqui por que outros veículos não publicaram as dezenas de casos de abuso cometidos pelo grande empresário (e anunciante). Você pode imaginar o porquê. O que posso contar é por que aqui na Pública enfim pudemos trazer à tona as denúncias contra Samuel Klein. 

Hoje, essas duas reportagens são finalistas do True Story Award, troféu internacional que premia trabalhos jornalísticos aprofundados e de relevância social. Esse reconhecimento e a repercussão que as reportagens tiveram mostram que mexer nos vespeiros é essencial e pode impactar a vida de muita gente. 

Conseguimos investigar a gigante do varejo e a gigante do delivery porque temos uma equipe com independência e tempo para ir a fundo. Também porque investimos em contratar advogados que nos protegem de represálias judiciais. Mas, sobretudo, porque temos leitores que acreditam na importância de nosso trabalho. E nos ajudam a manter a Pública ativa. 

Nosso trabalho incomoda alguns. Mas também nos mostra quanto podemos contar com o apoio de outros. É por causa da retaguarda dos nossos leitores que podemos seguir trabalhando. Com eles, formamos uma aliança de pessoas que confiam na Pública e doam todo mês para que sigamos fazendo jornalismo de interesse público. Então, aqui vai um pedido: se puder, vem fazer parte da nossa base de aliados. O valor que couber no seu bolso fará chegar ainda mais longe o jornalismo que não se intimida diante dos poderosos. 

 
APOIO O JORNALISMO QUE MEXE NOS VESPEIROS

Um abraço e obrigada, 

Clarissa Levy
Repórter e produtora de podcasts na Agência Pública

SENADORES QUEREM PERDÃO CRIMINAL PARA GARIMPEIROS NA TERRA YANOMAMI REVELA OFICIO.

 Senadores querem perdão criminal para garimpeiros na terra Yanomami, revela ofício
Jefferson Rudy/Agência Senado
Documento enviado para PGR e ministros do governo Lula descreve pedido feito por parlamentares pró-garimpo de Roraima

27 de fevereiro de 2023
14:00
Rubens Valente
 ESPECIAL: AMAZÔNIA SEM LEI
MPF no Amazonas e em Roraima recebeu o “pedido” reencaminhado pela PGR
Presença de senadores em comissão foi repudiada por organizações indígenas
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BOA VISTA — Um ofício assinado por Chico Rodrigues (PSB-RR), Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e “Dr.” Hiran (PP-RR), três senadores pró-garimpo de Roraima, ao qual a Agência Pública teve acesso, mostra que eles pediram a diversas autoridades de Brasília que os garimpeiros eventualmente flagrados dentro da Terra Indígena Yanomami não sofram “persecução penal”, ou seja, que não respondam a processo criminal.  São muitos os crimes atribuídos a garimpeiros que invadem e destroem terras indígenas. Segundo a ANM (Agência Nacional de Mineração), por exemplo, um garimpo do gênero configura “crime ambiental e usurpação de bens públicos” – a terra Yanomami é registrada em cartório como propriedade da União, sobre a qual os povos indígenas têm “sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

O ofício descreve uma reunião que os senadores mantiveram com comandantes militares e ministros do governo federal após um sobrevôo ocorrido em 9 de fevereiro. “Os Parlamentares ressaltaram às autoridades do Poder Executivo presentes a importância de o Governo Federal implementar, o mais rápido possível, uma operação de emergência para promover o resgate dos trabalhadores que se encontram retidos em áreas de garimpo na Reserva Yanomami, assegurando-lhes a ausência de repressão ou persecução penal no momento de sua retirada, uma vez que foram enredados na atividade de mineração premidos para garantir o próprio sustento e o de suas famílias”, diz o ofício.

O documento em papel timbrado do Senado foi assinado pelo advogado do Senado Edvaldo Fernandes da Silva, “coordenador do núcleo de processos judiciais” do Senado, e pelos senadores Chico Rodrigues (PSB-RR), Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e “Dr.” Hiran (PP-RR), que se apresentam no papel como membros e coordenador, respectivamente, de uma “Comissão Externa do Senado Federal criada para acompanhar a situação dos ianomâmis e a saída dos garimpeiros de suas terras”. O papel é datado de 10 de fevereiro. A citada Comissão foi instalada uma semana depois, em 17 de fevereiro.

O papel teve como destinatários o procurador-geral da República, Augusto Aras, os ministros José Múcio (Defesa), Flávio Dino (Justiça) e Rui Costa (Casa Civil) e os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira. A PGR encaminhou o ofício para sua 6ª Câmara de Coordenação, em Brasília, que por sua vez enviou o ofício ao MPF (Ministério Público Federal) do Amazonas e de Roraima. No documento, no qual anexou o relato dos senadores, a subprocuradora-geral da República Eliana Peres Torelly de Carvalho, coordenadora da 6ª Câmara, escreveu ao MPF dos dois Estados “para conhecimento e providências cabíveis, solicitando a gentileza de nos manter informados acerca das diligências adotadas”.

O ofício produzido pela Advocacia do Senado diz que o pedido dos parlamentares sobre a não persecução penal ocorreu após um sobrevôo na terra indígena ocorrido em 9 de fevereiro. Além dos três senadores, participaram da viagem, “uma operação”, segundo o Senado, o governador de Roraima, Antonio Denarium (PP-RR), os ministros José Múcio (Defesa), Silvio Almeida (Direitos Humanos) e José Juscelino (Comunicações), os comandantes militares Tomás Paiva (Exército), Marcelo Kanitz Damasceno (Aeronáutica), o comandante do Estado-Maior das Forças Armadas, Renato Rodrigues Aguiar Freire, e os deputados federais Duda Ramos (MD-RR), Albuquerque (Republicanos-RR) e Zé Haroldo Cathedral (PSD-RR).

O documento diz que o senador Hiran “destacou extrema preocupação com a situação degradante dos cerca de 20 mil garimpeiros e suas respectivas famílias que ainda não conseguiram sair da Reserva Yanomami”.

Os senadores por diversas vezes denominam a terra indígena como “Reserva Yanomami”, o que é falso – a mesma expressão “reserva” foi transcrita no ofício produzido pela PGR. O território foi homologado em 1992 pelo então presidente Fernando Collor como “Terra Indígena Yanomami” em todos os documentos oficiais sobre o assunto. A troca da expressão “terra indígena” por “reserva” opera para relativizar o pertencimento cultural e jurídico do território ao povo indígena Yanomami, reconhecido pelo Executivo e pelo Judiciário e previsto na Constituição.

A presença de Chico Rodrigues, Hiran e Mecias de Jesus numa comissão do Senado para acompanhar a emergência Yanomami já foi repudiada pelas principais organizações indígenas e indigenistas, que pedem a saída desses parlamentares da comissão. O CIR (Conselho Indígena de Roraima), que representa 261 comunidades indígenas no Estado, disse em nota que os senadores Chico Rodrigues e Hiran “jamais se posicionaram a favor do povo Yanomami e dos povos indígenas de Roraima” durante todo governo de Jair Bolsonaro (2019-2022).

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Em maio de 2022, lembrou o CIR, Rodrigues participou de uma diligência promovida pela Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal na terra Yanomami. Ela teve o objetivo de “acompanhar as medidas adotadas pelas autoridades acerca da situação da comunidade Yanomami”. Na ocasião, disse o CIR, o senador Rodrigues “negou que houvesse qualquer violação de direitos dos povos indígenas na TI Yanomami, negando o genocídio em curso”.

“É de se questionar até onde estão infiltrados na estrutura do Estado Brasileiro os representantes dos crimes e interesse dos garimpeiros ilegais no Estado de Roraima. Não aceitamos que grupos políticos usem o Senado para atender interesses escusos. É dever constitucional da referida casa legislativa garantir a proteção aos direitos constitucionais dos povos indígenas. Mas nesse caso da comissão, com a atual presidência da comissão, há claro conflito de interesse”, disse o CIR.

Também em nota, a HAY (Hutukara Associação Yanomami) mencionou que Rodrigues “era dono de avião que circulava no garimpo ilegal na terra indígena Yanomami”. Em 2020, o senador foi “flagrado pela Polícia Federal com R$ 33 mil na cueca”. “Com ele foi apreendida uma pedra que se suspeitava ser uma pepita de ouro, durante uma operação para apurar um suposto esquema criminoso de desvio de recursos públicos para o combate à Covid-19 em Roraima.”

Sobre Mecias de Jesus, a Hutukara mencionou que ele foi denunciado por uma empresa de táxi aéreo, que presta serviços para transporte da saúde indígena na terra Yanomami, por “cobrança de propina, achaque e fraude em licitação”. Durante o governo Bolsonaro, Mecias fez as indicações dos gestores do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. “A corrupção se instalou no distrito e a nossa saúde foi negligenciada e muitas mortes aconteceram, um verdadeiro plano de genocídio e extermínio do nosso povo”, disse a Hutukara na nota.

Uma terceira organização indígena, a UAY (Urihi Associação Yanomami) lembrou que o senador Hiran votou, quando era deputado federal, a favor do projeto de lei (490/2007) “que inviabiliza demarcações de terras indígenas” e do projeto de lei (191/2020) que tentava autorizar a mineração em terras indígenas. O filho do senador Mecias, Jhonatan de Jesus, também votou a favor do PL 191.

“Vale lembrar que, como povo Yanomami, temos o direito de negar a presença de pessoas que desrespeitem a nossa cultura e nossos saberes ancestrais. Não aceitaremos parlamentares favoráveis à mineração ilegal participando das decisões e ações humanitárias dentro da Terra Indígena Yanomami”, diz a nota assinada pelo presidente da UAI, Júnior Hekurari Yanomami. Ele foi autor de inúmeras denúncias nos últimos quatro anos sobre a degradação da saúde na terra Yanomami.

Na manhã do dia 20 de fevereiro, Chico Rodrigues apareceu na comunidade Surucucu, levado por um avião militar, sem prévia comunicação com as lideranças indígenas Yanomami e sem consultar dois colegas que hoje integram a comissão, Eliziane Gama (PSD-MA) e Humberto Costa (PT-PE). Júnior Hekurari, da UAI, disse aos indígenas na ocasião que Rodrigues representava interesses dos garimpeiros. Mais tarde, Júnior disse, em nota, que o senador surpreendeu com sua “visita indesejada e desrespeitosa”. “Não aceitamos a presença destes transgressores dentro do nosso território sagrado. Nosso protocolo de consulta deve ser consultado e respeitado, mediante ações, decisões e visitas que podem afetar os direitos da população Yanomami.”

No dia seguinte, Rodrigues postou no Twitter que visitou a área “para acompanhar de perto a evolução da situação”. “Em Surucucu, estive no pelotão do Exército e sobrevoei áreas com presença de garimpos.”

Jefferson Rudy/Agência Senado
Reunião da comissão para acompanhar a situação dos Yanomami e a saída dos garimpeiros
Governo demonstra não ter ainda uma definição sobre prisão ou liberação de garimpeiros
A questão sobre prender ou abrir processo criminal contra os garimpeiros flagrados dentro da terra Yanomami ainda está aberta no governo federal. Numa entrevista à Pública, por exemplo, a ministra dos Povos Indígenas Sonia Guajajara disse que os garimpeiros que não saírem do território serão presos. Já o ministro da Justiça, Flávio Dino, dá sinais de que concorda com o argumento dos senadores pró-garimpo de Roraima. Numa entrevista à TV CNN, por exemplo, Dino disse que tem “duas linhas de trabalho”, a operação da desintrusão e a investigação sobre as pessoas “que coordenam, que financiam” o garimpo. Ou seja, não sobre os garimpeiros, mas sobre os financiadores. Na entrevista, ele alegou que haveria problema para prender os garimpeiros em flagrante dentro do território.

“Nós temos portanto duas linhas de trabalho. […] A desintrusão, tirar as pessoas do território yanomami. […] Isso é uma questão emergencial. Às vezes as pessoas perguntam, ‘mas como?’ Bom, nós vamos prender 10, 15 mil pessoas? E como nós vamos algemar 15 mil pessoas umas nas outras e conduzir exatamente para onde? Então obviamente há uma coordenação, um planejamento, na ação da Polícia Federal, da Força Nacional, das Forças Armadas, cada uma dentro das suas competências constitucionais, e evidentemente os responsáveis serão punidos.”

O tema da prisão ou não dos garimpeiros pela Polícia Federal, contudo, deverá ganhar corpo só a partir de 6 de abril, quando acabará o prazo dado pelo governo para a saída aérea autorizada das áreas de garimpo. Até essa data estão abertos “corredores aéreos”, pelos quais os garimpeiros ainda podem entrar e sair de avião e helicóptero, desde que informem antes aos militares. Depois dessa data, o governo deverá desencadear uma segunda etapa na operação de desintrusão, mais incisiva para a retirada dos garimpeiros. Por enquanto, esse trabalho está sendo feito quase exclusivamente pelas equipes do Ibama e da Funai.

Precisamos te contar uma coisa: Investigar uma reportagem como essa dá muito trabalho e custa caro. Temos que contratar repórteres, editores, fotógrafos, ilustradores, profissionais de redes sociais, advogados… e muitas vezes nossa equipe passa meses mergulhada em uma mesma história para documentar crimes ou abusos de poder e te informar sobre eles.

Agora, pense bem: quanto vale saber as coisas que a Pública revela? Alguma reportagem nossa já te revoltou? É fundamental que a gente continue denunciando o que está errado em nosso país?

Assim como você, milhares de leitores da Pública acreditam no valor do nosso trabalho e, por isso, doam mensalmente para fortalecer nossas investigações.

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Rubens Valente
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Não é radiação, é plástico

As substâncias tóxicas envolvidas no desastre ambiental em Ohio envolviam componentes para a produção de plásticos. A emergência relembrou os riscos de uma economia mundial focada no uso do material – e a situação dessa indústria no Brasil

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Quando ocorreu o acidente de trem em Ohio, nos Estados Unidos, muitos internautas chamaram o episódio de “chernobyl americana”. Mas o trem que descarrilou causando uma extensa fumaça preta não carregava materiais radioativos – e sim compostos químicos para a fabricação de plásticos. O principal deles, o cloreto de vinila, é cancerígeno e ataca principalmente o fígado. 

Eram 20 vagões contendo materiais tóxicos, transportados pela empresa ferroviária Norfolk Southern, quando o trem descarrilou no dia 3 de fevereiro causando uma explosão. Apesar de em um primeiro momento as agências de proteção ambiental afirmarem que o acidente não causou danos ambientais, tiveram que voltar atrás na última semana – após sinais de contaminação começarem a aparecer, como a morte de 3,5 mil peixes no rio Ohio e, recentemente, a morte de 45 mil animais na região, segundo o Departamento de Recursos Naturais de Ohio. Até o momento, nenhum membro do governo federal de Joe Biden fez uma visita ao local. A carga continha também acrilato de butila e acrilato de etilexila, ambos ingredientes tóxicos presentes em plásticos. 

O cloreto de vinila, assim como os outros tóxicos envolvidos na produção de plásticos, persiste no meio ambiente e nos organismos. Um estudo da Universidade de Pádua, na Itália, revelou já em 2003 que trabalhadores expostos ao pó de PVC tinham maior risco de desenvolver câncer; isso porque o químico vazado em Ohio é um dos cancerígenos mais estudados em ambientes ocupacionais desde 1970. Em entrevista ao Wired, John Bucher, ex-diretor associado do Programa Nacional de Toxicologia dos EUA afirmou que, nas últimas décadas, houve diversos estudos em fábricas de produção de cloreto de vinila e de PVC, onde foi evidenciado que “as pessoas desenvolviam câncer, principalmente leucemia e no fígado”.

No caso de Ohio, a queima do composto químico produziu compostos tóxicos chamados dioxinas – que, com a nuvem gerada pela explosão, podem ter se espalhado para além do local do acidente. “As dioxinas são potentes em níveis baixos, são persistentes e bioacumulativas”, afirmou, também ao Wired, Ted Schettler, diretor científico do Science and Environmental Health Network. Ou seja, elas persistem no ambiente e no corpo em vez de se decompor – o que pode estar acontecendo em East Palestine, cidade no estado norte-americano onde ocorreu o descarrilamento. 

Tubulações, embalagens de diversos tipos, produtos de consumo do nosso dia-a-dia – como cortinas de chuveiro. O PVC é um dos tipos mais comuns de plástico – são 5 mil empresas que produzem esse composto só nos Estados Unidos. Uma delas, a ExxonMobil, é a maior do mundo. Qualquer processo de polimerização e a posterior moldagem para desenvolver qualquer tipo de plástico necessita de agentes químicos em sua formulação; daí que vem a capacidade de alguns materiais serem mais flexíveis, enquanto outros são mais resistentes ao calor, por exemplo. Então, apesar da alta toxicidade desses componentes, seu transporte em trens e caminhões é comum. 

Outros produtos presentes nas fábricas são conhecidos como “desreguladores endócrinos”, ou EDCs, que influenciam na produção de hormônios do organismo humano. Muitos, quando são descobertos, são substituídos pela indústria – por outros componentes também tóxicos, mas com riscos à saúde ainda desconhecidos. Segundo Gerald Markowitz, historiador de saúde ambiental da Universidade de Nova Iorque, levará anos até que conheçamos os possíveis efeitos colaterais dos produtos químicos substitutos. Um estudo de 2021 elaborado por pesquisadores de diversas universidades norte-americanas indica que a exposição aos ftalatos, por exemplo, pode ser responsável por 100 mil mortes prematuras nos EUA a cada ano. Isso quando a contaminação ocorre nos países produtores: segundo o Fórum Econômico Mundial, bilhões de quilos de resíduos plásticos são exportados todos os anos para países como Malásia e Vietnã, onde são queimados a céu aberto e envenenam comunidades. 

No Brasil, a produção não fica para trás. Segundo os relatórios elaborados pela Associação Brasileira da Indústria do Plástico, o país manteve, entre 2020 e 2021, uma produção entre 7,1 e 7,3 milhões de toneladas em produtos plásticos. São mais de 11 mil indústrias no ramo – não à toa, é o quarto maior gerador de lixo plástico do mundo. São descartados 11,3 milhões de toneladas por ano, dos quais apenas 1,28% são recicladas, segundo o Fundo Mundial da Natureza

Sabemos que os plásticos não se decompõem facilmente. Descoberto no início do século XX, o material teve desenvolvimentos importantes da década de 1930 – e um verdadeiro boom produtivo no pós-segunda guerra, com a criação da garrafa pet: só nos Estados Unidos, a produção de plástico nesse período aumentou 100%. As primeiras evidências de poluição por plásticos nos oceanos surgiram na década de 1960. Hoje existem provas concretas de que o processo de reciclagem não é suficiente para resolver o problema da poluição e não consegue acompanhar os números de produção – fato já conhecido pelas indústrias, que propagandeiam a reciclagem com o objetivo de vender mais plástico. O agravante é que, além de ficar na superfície por muito tempo após o descarte, o que está nos plásticos não fica apenas nos plásticos. Quando um saco ou garrafa se rompe, componentes químicos são liberados; os objetos são fragmentados pela ação do clima e viram microplásticos – que, como detectaram estudos recentes, já estão presentes no sangue de animais e humanos. No entanto, sabemos pouco sobre as consequências dessas microssubstâncias para a saúde.

Como resolver o problema de acidentes como o de Ohio, poluição ambiental e a contaminação de seres vivos? A resposta dos especialistas é unânime: produzir menos plástico. O problema é que, quando não se coloca na conta o custo ambiental e sanitário, a produção do material é lucrativa – mais barata do que melhorar a infraestrutura da reciclagem, inclusive. Apesar de existirem discussões na Organização das Nações Unidas (ONU) para limitar a produção de plástico, os encaminhamentos são tímidos para o tamanho do problema. 

sábado, 25 de fevereiro de 2023

"O IBAMA VOLTOU A TRABALHAR", DIZ RODRIGO AGOSTINHO, NOVO PRESIDENTE DO ÓRGÃO.

 

Wenderson Araujo/Trilux/Flickr

Nomeado oficialmente nesta sexta (24), ex-deputado sonha em reduzir o desmatamento pela metade ainda este ano


24 de fevereiro de 2023

16:47

Giovana Girardi

 ESPECIAL: EMERGÊNCIA CLIMÁTICA

Ibama tem 350 fiscais para todo o país – eram mais de 2 mil há 15 anos 

“A gente não está tentando frear um carro, mas frear um trem” 

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Oficializado nesta sexta-feira (24) como presidente do Ibama, o ex-deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP) tem pela frente desafios complexos. Ao mesmo tempo em que precisa reestruturar o órgão que provavelmente foi o mais vilipendiado nos quatro anos de governo Bolsonaro, tem de conseguir torná-lo operacional muito rapidamente para poder atuar como a ponta de lança de uma das principais metas do governo Lula – derrubar o desmatamento da Amazônia. Enquanto lida com interesses econômicos e políticos que conflitam com esses planos.


Com um quadro de fiscais defasado – apenas 350 para todo o país contra mais de 2 mil há 15 anos –, Agostinho se impôs um objetivo próprio, um “sonho”, ele diz, de reduzir pela metade a perda da floresta ainda neste ano, mas sabe que o quadro não é exatamente favorável para isso. Depois de quatro anos em que os níveis de desmatamento voltaram a patamares não observados desde meados dos anos 2000, a motosserra acelerou ainda mais no segundo semestre de 2022, deixando uma destruição que será herdada nas primeiras estatísticas oficiais da nova gestão.


O sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que mede a taxa oficial anual de desmatamento da Amazônia, considera sempre o período de agosto de um ano a julho do ano seguinte. Portanto, tudo o que foi desmatado nos últimos cinco meses do ano passado vai contar para o Prodes de 2023. 


Não é só uma questão numérica, mas um indicador do nível da criminalidade em campo. Desmatadores se organizaram de tal maneira e se sentiram tão à vontade com a falta de fiscalização nos últimos anos, que não serão tão facilmente contidos. Alertas de desmatamento feitos pelo Inpe neste início de ano apontam nesse sentido. Apesar de o mês de janeiro ter fechado, aparentemente, com pouco desmatamento, em fevereiro já está ocorrendo uma nova alta. 


Em entrevista à Agência Pública, Agostinho reconheceu as dificuldades, mas disse acreditar que a mudança de postura não só do Ibama, mas de todo o governo federal, já pode ter um efeito inibitório. “O Ibama voltou a trabalhar. O comando e controle voltou a se organizar. As pessoas entenderam que o Ibama voltou a trabalhar. O discurso presidencial mudou. Se as pessoas estavam esperando continuar investindo em exploração ilegal de madeira, porque não tinha mais controle, em garimpo em terra indígena, porque não tinha mais fiscalização, agora começam a repensar isso”, disse.


Enquanto tenta abrir um novo concurso para contratar mais gente, Agostinho disse que espera contar com a inteligência do órgão para conter o desmatamento, se valendo, por exemplo, de embargos remotos. O sistema já está disponível há anos no Ibama, mas também foi paralisado nos últimos quatro anos, assim como a própria cobrança de multas. 


O governo está trabalhando na elaboração do novo Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), ferramenta lançada originalmente em 2004 que foi fundamental para a queda de mais de 80% no desmatamento da Amazônia entre aquele ano e 2012. Apesar do sucesso, o plano falhou em promover um projeto de desenvolvimento sustentável que oferecesse alternativas econômicas à região que não passassem pela destruição da floresta, o que pavimentou a retomada da devastação nos últimos anos. A nova versão do plano terá de contemplar isso, ao mesmo tempo em que terá de lidar com esse cenário mais complexo de criminalidade.


Na entrevista a seguir, Agostinho explica como deve ser o papel do Ibama no PPCDAm, conta qual o cenário que encontrou no instituto e os desafios que vê pela frente não só no enfrentamento de “delinquentes ambientais”, como ele classifica, mas também na negociação com forças políticas e econômicas, em especial os planos de infraestrutura e desenvolvimento, como a pavimentação da BR-319 e a exploração de petróleo na Foz do Amazonas.

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Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Novo presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho foi deputado federal por São Paulo (2019-2022), é ambientalista, advogado e biólogo

Qual é o cenário que vocês encontraram? 

Existe um processo de desgaste do serviço público que já vinha vindo. O Ibama estava há muito tempo sem concurso, muito tempo sem reposição de equipamentos, de estrutura física. Mas o que ficou muito forte no governo passado foi uma quantidade assustadora de assédios, de perseguições. Teve um rastro de destruição do psicológico do servidor do Ibama. Em janeiro houve a saída dos militares. Aqui tinha bastante PM, bombeiro, coronéis do exército. Estava bastante militarizada a instituição. E tinha muita coisa parada, muita coisa desmontada. Todo o setor de fiscalização desorganizado. Foi um momento bem complicado. Agora houve uma pacificação. As pessoas do governo passado já saíram e é um momento de reestruturação, de reorganização. Então nós trabalhamos todo o mês de janeiro e essa primeira quinzena de fevereiro no sentido de botar ordem na casa, de trocar todas as superintendências por servidores de carreira, mesmo de forma momentânea, como substitutos, para que as coisas pudessem ser colocadas no seu devido lugar. Agora nós já estamos conseguindo botar as equipes de fiscalização na rua. A gente já estava desde a virada do ano com um olhar para os Yanomami, porque havia um plano de retirada dos garimpeiros nos anos anteriores que não foi colocado para funcionar. 

Vocês tinham visto que tinha esse plano ainda no final do ano passado, é isso? 

É, esse plano existiu, existe, mas ele não foi colocado para execução, mas a gente no começo do ano já estava organizando isso, aí veio toda crise humanitária e nós decidimos antecipar. Talvez a primeira prova de fogo grande agora do Ibama foi essa, mas hoje nós já estamos com as equipes de fiscalização dos Estados fazendo suas operações. O Ibama voltou a trabalhar. O comando e controle voltou a se organizar. Nós chegamos a ter no passado 2 mil fiscais, hoje temos um pouco mais de 300, 350. Nós chegamos a ter quase 6 mil servidores. Hoje a gente tem 2.900. Uma quantidade muito grande de servidores está prestes a se aposentar, muitos já têm a idade para isso, então a reposição vai ser muito difícil. Já começamos um processo de um novo concurso, vamos contratar ainda pessoas remanescentes do último concurso, mas eu sei que a reposição não vai ser fácil. Estamos reestruturando cada uma das diretorias. A gente já tem um bom diagnóstico, agora nós estamos avançando no planejamento das ações de cada diretoria. Estamos trabalhando numa perspectiva de elaborar um grande projeto para o Fundo Amazônia. Estamos numa fase quase que final já desse projeto. 

Vocês também pegaram um sistema de multas todo desmantelado…

Tivemos uma dificuldade muito grande do ponto de vista jurídico no começo do ano que foi um esforço enorme para reorganizar o processo de multas. Estamos na fase final dessa reorganização. Nós tivemos a publicação logo no dia primeiro do ano de um novo decreto de multas que foi assinado pelo presidente Lula e agora nós estamos organizando os sistemas internos do Ibama para trabalhar nessa lógica. Devem sair nos próximos dias instruções normativas regulamentando a questão das multas. Há um passivo de multas do passado: quase 130 mil multas foram abandonadas à própria sorte para irem para prescrição. Eles criaram um sistema de conciliações que na teoria é super bacana, traz um infrator aqui, faz uma audiência com ele e busca uma conciliação, mas essa conciliação nunca existiu. As audiências eram única e exclusivamente para o autuado vir aqui e dizer se topava ou não aderir ao programa de conversão de multas. Então nunca teve conciliação. As audiências – como o número de servidores do Ibama é bastante limitado – eram numa escala reduzida, e no final das contas a gente está falando aí em torno de uns R$ 90 milhões que foi o que a conciliação conseguiu trabalhar. Só que deixaram para trás outros R$ 18 bilhões de multas. Que estavam todas em prescrição.

Vários despachos do ex-presidente, do Eduardo Bim, levavam à prescrição das multas, principalmente o que dizia sobre a questão da prescrição intercorrente. Esses despachos já foram revogados, mas tem alguns ainda que estão em fase final de revisão. Nós estamos botando ordem na casa, estamos fazendo um esforço muito grande de valorizar as decisões dos próprios servidores, de restabelecer as relações, de tentar rever injustiças que foram cometidas. Teve muita perseguição, muito assédio. Nós temos mais de 5 mil processos na corregedoria. Conseguir organizar tudo isso está sendo um grande desafio, ao mesmo tempo temos que botar a máquina pra funcionar de novo. Tem setores que são bastante complexos. Você pega fiscalização, licenciamento, monitorar a qualidade ambiental do país inteiro.

Divulgação Ibama

Ibama enfrenta quadro de fiscais defasado, falta de equipamentos e de estrutura física

Você falou que o Ibama já chegou a ter 2 mil fiscais e hoje são cerca de 300. Era um processo de desgaste que já vinha ocorrendo?

Atingiu 2 mil em 2008 e depois a coisa foi diminuindo. Agora no governo passado foi um massacre em cima dos fiscais. Não tinha reposição, não autorizava operações, eles não podiam fazer nada. O comando aéreo foi totalmente limitado. As únicas operações feitas foram decorrentes de decisões judiciais e aí não tinha como falar que o Ibama não ia atuar. Mas foi toda uma situação que levou à saída de profissionais. Não tinha reposição e havia pressão para sair. Os servidores foram se aposentando ou saindo da fiscalização e indo para outras áreas. Recompor todo esse quadro não é fácil. Não basta fazer um concurso para fiscal. Entra no concurso como analista, mas depois ele vai para um bom curso, treinamento. Depois tem uma seleção até que a pessoa possa trabalhar como fiscal. Eu não posso colocar qualquer pessoa aí na rua só porque passou num concurso já para começar a fazer fiscalização. É um trabalho de excelência. 

Considerando esse cenário e os desafios que vocês têm no governo de controlar o desmatamento, você acha que precisaria ter quantos fiscais?

Uma expectativa grande que eu tenho é que a gente trabalhe muito com inteligência e com tecnologia. O Ibama recebe os alertas do Inpe das áreas que estão sendo desmatadas. A gente compartilha informações de inteligência com quase dez órgãos, sendo o principal deles a Polícia Federal. A gente tem que ser muito mais assertivo. Não basta só botar um batalhão de pessoas na rua. Trezentos fiscais mesmo se fossem todos em um único Estado da Amazônia talvez seja pouco ainda se eu quiser ter uma atividade muito baseada no campo. O que nós vamos fazer agora é retomar os embargos remotos. Retomar atividades onde eu possa utilizar os dados da própria inteligência que eu tenho sobre os alertas de desmatamento para não precisar botar um fiscal em cada lugar. Agora para algumas atividades como combater garimpo, invasão de terra pública não destinada – que eu não sei quem é que tá lá invadindo a área, quem é que tá desmatando –, combater extração ilegal de madeira, invasão de unidade de conservação, invasão de terra indígena, grilagem. Nesses casos eu tenho que ter um fiscal mesmo. Tem coisas muito bacanas que a gente pode fazer com uma estrutura menor. Agora, sem sombra de dúvida esse número de fiscal aí mesmo se dobrar ainda vai ser um número insuficiente. 

Falando então um pouco mais especificamente sobre o combate ao desmatamento, que é uma prioridade da gestão Marina Silva. Você tem citado uma meta de reduzir em 50%. Isso já para este ano?

É mais um sonho que uma meta propriamente dita ter essa redução significativa, porque isso quem vai trazer é o PPCDAm. Ele está sendo construído e vai sinalizar em algumas direções. Mas com todo o estrago que foi feito, e mesmo com as altas taxas de desmatamento [que ocorreram nos últimos anos], eu estou me impondo uma meta da gente trabalhar numa perspectiva de pelo menos reduzir pela metade. Isso vai ser bastante desafiador. A responsabilidade de combater o desmatamento não é exclusiva do Ibama. Envolve os Estados, a gente vai precisar muito da colaboração dos Estados, de outras organizações, de outras instituições. Mas algumas coisas a gente já está percebendo. As pessoas entenderam que o Ibama voltou a trabalhar. O discurso presidencial mudou. Se as pessoas estavam esperando continuar investindo em exploração ilegal de madeira, porque não tinha mais controle, em garimpo em terra indígena, porque não tinha mais fiscalização, agora começam a repensar isso. 

Você acha que só essa sinalização de que a postura do governo mudou já passa um sinal inibitório pro campo? 

Eu acredito que sim porque a gente estava num período de grandes oportunidades para os delinquentes ambientais. Os criminosos ambientais estavam com uma janela de quatro anos de “eu posso fazer o que eu quiser”. Agora a coisa mudou de figura. O desmatamento ilegal será autuado e embargado. Maquinário usado em crimes ambientais para destruição de floresta, para garimpo será aprendido na medida do possível e, quando não não for possível, será destruído. É a retomada da governança ambiental sobre a Amazônia, a retomada de políticas públicas importantes para a Amazônia, que não dizem respeito só a comando e controle. O Fundo Amazônia vai financiar muito a economia da floresta e isso tem um papel importante. Hoje o que dá dinheiro na Amazônia são ou atividades ilícitas ou aquelas atividades agropecuárias mais convencionais que podem ou não estarem envoltas em atividades ilícitas. Você tem a pessoa que cria boi na Amazônia com autorização e tem a que trabalha em terra ilegal. Então eu acho que se a gente conseguir estruturar no Brasil planos de combate ao desmatamento para cada um dos biomas, que é a meta do presidente Lula e da ministra Marina. Se a gente conseguir reestruturar as governanças de fiscalização. Se a gente tiver apoio dos Estados, a meta do governo de chegar a 2030 com desmatamento zero passa a ser factível. Mas a gente vai precisar do apoio de todo mundo, e eu tenho certeza que o papel do Ibama nisso vai ser central. 

Reprodução Twitter

Com o apoio da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, Agostinho pretende tornar o Ibama operacional novamente

Pergunto se sua meta de redução de 50% é para esse ano porque a taxa Prodes é sempre medida de agosto de um ano a julho do seguinte e vocês herdaram um alto desmatamento que ocorreu entre agosto e dezembro do ano passado. Quando a gente olha os alertas medidos pelo outro sistema do Inpe, o Deter, o acumulado de agosto a dezembro foi 50% maior do que o mesmo período de 2021 e esses cinco meses vão vir na conta do Prodes de 2023. Considerando isso, é factível pensar nessa redução pela metade que você está sugerindo. Como você acha que seria possível chegar nessa redução?

O número que eu tenho que a gente está herdando do segundo semestre do ano passado é de 6.690 km2 [uma estimativa apresentada pelo Inpe de quanto deve ter sido o desmatamento total com base nos alertas do Deter para o período]. Se cair pela metade no primeiro semestre, a gente estaria falando de um número ainda de 10.350 km2. Mas a gente tem um grande desafio que não é só olhar pra trás. Vamos soltar várias estratégias, todas ao mesmo tempo, para conseguir reduzir essas taxas, mas obviamente temos esse passivo alto. Um grande desmatamento que começou a ser feito no ano passado, os caras não vão parar. A gente não está tentando frear um carro, mas frear um trem.

O Ibama obviamente tem o papel de ser o chato da história. Ele faz comando e controle, faz fiscalização. Mas dentro do Ibama eu também tenho estruturas importantíssimas de rastreabilidade. Nossas bases de dados servem para saber, por exemplo, se a soja está saindo de uma área desmatada ou não ilegalmente. A gente tem todo o sistema Sinaflor [Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais] que dá para controlar toda a questão da madeira junto com o DOF [Documento de Origem Florestal]. Então eu tenho outras ferramentas. E eu tenho gente muito boa que pode ajudar também na definição de políticas públicas. Dos 37 ministérios, 28 estão trabalhando numa perspectiva de ter alguma estrutura de sustentabilidade. Há secretarias com bioeconomia no nome dentro dos Ministérios do Meio Ambiente, da Agricultura, da Indústria, Comércio e Serviço. Se toda essa caixa de ferramentas, se todas essas políticas públicas forem trabalhadas de maneira integral, junto com renda para a população mais simples, como a volta do bolsa floresta e projetos de geração de renda, talvez a gente consiga tornar as florestas mais valorizadas a ponto da gente conseguir coibir o desmatamento.

Mas várias dessas estratégias que você está colocando são coisas que muito provavelmente não vão ser imediatas. Pensando nos próximos meses, nessa ação mais imediata que vocês precisariam ter para cortar pela metade o desmatamento. Mesmo considerando um uso maior de inteligência, nessas atividades que precisam de gente, como vocês esperam resolver?

Eu acho que é o conjunto das ações. As equipes de fiscalização já estão trabalhando nos municípios prioritários de combate ao desmatamento. Tem pequenas operações acontecendo o tempo todo agora já no Ibama que nem eu mais tenho conhecimento de tudo. As equipes já estão na rua. Os fiscais estão mais livres, sabem que não vão responder um processo administrativo simplesmente porque estavam ali trabalhando. E a gente também vai usar a tecnologia para colocar de volta o embargo remoto. Então nós vamos começar a embargar as áreas desmatadas ilegalmente. Nós vamos ampliar muito as ações de rastreabilidade pra conseguir detectar e agir, por exemplo, no combate ao comércio ilegal de madeira. Então eu acho que vai ser um conjunto de situações. Se eu ficar olhando só pro número de fiscais que eu tenho, provavelmente eu vou ficar muito mais paralisado do que agindo.

Eu posso dizer que a gente está trabalhando com bastante inteligência, vamos recompor as estruturas internas, estamos recebendo um número muito grande de possíveis doadores querendo ajudar o Ibama a se reestruturar. Nesta semana [antes do Carnaval] começou a funcionar o Fundo Amazônia, onde nós temos grandes projetos. Estamos nos reorganizando inclusive para outras ações. O Prevfogo já começou a contratação de brigadistas para combate a incêndios florestais. Coisas que estavam demorando demais, já começaram. Nós estamos tentando nos antecipar ao máximo para fazer um bom trabalho. E acho que a gente tem um poder enorme no combate ao desmatamento que é o discurso. Dizer: olha, o próprio presidente da república está avisando. Os crimes ambientais serão combatidos daqui pra frente. A impunidade acabou. As multas não serão prescritas, as pessoas serão responsabilizadas. O desmatamento ilegal nós iremos autuar, nós iremos embargar e vamos obrigar a recuperação do dano. Isso tem um poder muito grande de inibir as práticas delitivas. 

Fernando Augusto/Ibama

Novo presidente do Ibama pretende diminuir o desmatamento pela metade ainda este ano 

O novo PPCDAm começou a ser estruturado e o plano é apresentá-lo em abril. O que pode se esperar de diferente do que foi feito anteriormente?

A gente vai trabalhar de maneira muito intensa ações que não sejam exclusivas de comando e controle. Uma coisa é o Ibama com ações de comando e controle, outra coisa é dentro do PPCDAm as ações de valorização da floresta. No PPCDAm antigo a gente não tinha o mercado de carbono que tem hoje. A gente não tinha inúmeras estratégias econômicas. O mundo inteiro não estava olhando para a Amazônia como hoje. Temos sinalizações importantes de muitos países que vão contribuir com o Fundo Amazônia. Temos lei de pagamento por serviços ambientais que vai ser regulamentada. A gente tem a possibilidade de nas terras públicas não destinadas voltar a criar áreas protegidas incluindo terras indígenas e unidades de conservação. A gente tem que garantir a integridade do cadastro ambiental rural, que é um problema que facilita demais a grilagem nesse país. Tem um conjunto enorme de ferramentas.

O sucesso depende obviamente de uma boa articulação dessas ferramentas, do envolvimento dos entes federados. Hoje nós temos municípios no Brasil autorizando o desmatamento. O governo federal repassou muitas atribuições pros estados, e os estados estão autorizando municípios a serem licenciadores de desmatamento. A gente vai ter que recuperar essa governança, fazer uma integração dos sistemas. Vai ser bastante trabalhoso. E o sucesso disso vai se dar numa boa articulação de todas essas ferramentas. As concessões florestais, por exemplo, que inibem grilagem de terras, nós temos um acumulado hoje de 1 milhão e 300 mil hectares, dez concessões federais. A previsão nossa é de chegar ao final deste primeiro ano em quatro milhões de hectares de florestas públicas não destinadas, encaminhadas para concessão florestal. A gente tem um desafio enorme de usar essas ferramentas para ter um outro olhar para a Amazônia. Estamos falando de um território que representa 50% do nosso país, que já perdeu 20% de vegetação nativa e que, da floresta remanescente, tem 40% de floresta já degradada, então a necessidade do agir e do valorizar a floresta é muito grande.

Falando mais especificamente sobre o comando e controle. Nos últimos dois anos chamou atenção a explosão do desmatamento no Amazonas. O Estado, que costumava ficar na terceira ou quarta posição entre os mais desmatados da Amazônia, saltou pela primeira vez para a segunda posição e observa-se um avanço da motosserra por áreas que eram até então de floresta mais preservada. Essa região deve receber uma atenção especial da fiscalização?

Nós estamos aqui trabalhando com todas as inteligências, cada superintendência estadual olhando para sua região prioritária, mas obviamente nós vamos ter um planejamento norteador a partir de abril que é o próprio PPCDAm. Obviamente que essas novas fronteiras, novas estradas que foram abertas em alguns estados, novas fronteiras de grilagem de terras, unidades de conservação que foram invadidas, tudo isso chama muito a atenção. Esse desmatamento mais recente no Amazonas era algo que não estava no radar nos últimos anos. Os líderes sempre foram Pará e Mato Grosso. Agora a gente percebeu o crescimento do desmatamento e a retomada também em estados em que a coisa já estava um pouco mais controlada, como Rondônia e Acre, onde voltou de maneira muito intensa. No Maranhão nós tivemos índices assustadores de desmatamento tanto em áreas de Amazônia quanto em área de Cerrado. Então vamos ter que ter um olhar bastante amplo para a Amazônia. Nossas equipes estão trabalhando justamente nisso, na identificação dos focos, a partir dos alertas de desmatamento que a gente recebe diariamente do INPE, para identificar quais são os pontos mais importantes de atacar.

Você citou agora estradas abertas. Um dos vetores dessa explosão recente de desmatamento no Amazonas foi justamente a expectativa de asfaltamento de um trecho da BR-319, que é uma questão política importante para a região. Na gestão Bolsonaro, o Ibama concedeu uma licença prévia para a obra sem condicionantes claras para o controle do desmatamento, ignorando recomendações dos próprios técnicos. Com isso, antes mesmo de começar a obra, o desmatamento começou a subir. Esse licenciamento está no seu radar? Você pensa em rever essa licença-prévia?

Ninguém faz uma obra apenas com a licença prévia. Óbvio que isso é um ponto de alerta para nós. Toda e qualquer estrada, principalmente na Amazônia, tem históricos muito ruins. Em todas elas nós tivemos um desmatamento agindo de forma indireta muito forte ao longo dessas estradas. Então é ponto central. Nós vamos avaliar com muita atenção e carinho, não só essa. Nós temos estados fazendo licenciamento de estradas estaduais. Então isso também causa bastante preocupação para nós. Mas a gente vai estar olhando com muita atenção.

Isso poderá ser revisto, então?

Não existe nenhuma decisão tomada em relação a 319 ou qualquer outro projeto de infraestrutura. O que a gente tem é análise técnica dos nossos servidores do Ibama. Eu confio muito na capacidade técnica deles. Agora obviamente tem que ter um outro olhar. E esse eu acho que é um olhar de governo. Nós vamos ter que ter muita cautela no licenciamento de qualquer obra de infraestrutura porque pode colocar a perder todo trabalho que começa a ser feito agora de controle de desmatamento. Eu não estou fazendo nenhum juízo de valor, mas obviamente que a gente vai dar muita atenção a tudo isso, a cada uma dessas obras de infraestrutura. Tem medidas mitigadoras importantes que podem ser tomadas para evitar o desmatamento, mas nem sempre elas conseguem um sucesso na sua implementação. 

Outro licenciamento que deve causar barulho é em relação à exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Discutiu-se no governo passado a licença sem realizar previamente uma avaliação ambiental da área sedimentar. Está em fase final o licenciamento do bloco 59 da Petrobras. Você já tem uma posição sobre isso?

A gente tem se reunido com a equipe técnica sobre esse assunto. Esse é o assunto da mais alta relevância, a ministra Marina Silva está bastante preocupada com isso. Não tem nenhuma licença emitida em relação a isso por parte do Ibama. O Ibama está acompanhando uma série de situações naquela região. No licenciamento anterior, o Ibama negou a licença para essa atividade. É uma região onde a gente tem a foz do Rio Amazonas, que é o maior rio do mundo, é a maior bacia hidrográfica do mundo. Então tem uma brutalidade do ponto de vista da força desse rio e obviamente é uma região com bastante atenção por parte dos técnicos do Ibama. A Petrobras está trabalhando para realizar nas próximas semanas um simulado de um possível acidente na região. Algumas licenças que a Petrobras precisava do ponto de vista estadual, o estado do Pará já concedeu, mas nós não temos nenhuma licença emitida por parte do Ibama. O Ibama está analisando toda a documentação antes de tomar qualquer medida em relação a isso. O que eu posso dizer é que nós estamos trabalhando do ponto de vista de, de fato, implementar o princípio da precaução nesta região. Não tem nenhuma decisão tomada pelo Ibama, e a decisão que será tomada será uma decisão técnica baseada nos documentos, nos estudos ambientais, nos laudos, na capacidade de resposta num eventual acidente, na viabilidade ou não ambiental desse tipo de exploração. Mas é um tema também bastante sensível para o Ibama.

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À frente do Ibama, boa parte das questões sobre as quais você terá de arbitrar serão de temas sensíveis. Esta é uma briga com a Petrobras, mas o próprio presidente Lula, no passado, mostrou apreço pelo petróleo, pelo pré-sal. No seu período na Câmara, você sempre foi visto como uma pessoa muito conciliadora, às vezes até conciliadora demais. Esse perfil deve vigorar agora?

Aqui no Ibama as análises são técnicas. Eu posso ter as minhas paixões. A minha paixão pelo meio ambiente é o que me move, mas as análises são técnicas. Agora o que a gente precisa é ter muita clareza sobre o projeto de país que a gente quer e essa não é uma decisão do Ibama. É uma decisão de governo, é uma decisão que precisa ser muito equilibrada. A gente está vendo as declarações do presidente, da ministra. Nunca um governo falou tanto de sustentabilidade como a gente está tendo agora. É uma oportunidade. O Brasil pode ser um grande líder no mundo na energia limpa, na energia renovável, na busca por outros caminhos. Eu estou muito confiante nisso. Eu acredito que o futuro do país está nisso. E a continuidade da nossa existência neste mundo depende disso. As mudanças climáticas estão aí para lembrar a gente o tempo todo de que ou a gente faz uma reconciliação com a natureza ou as consequências serão bastante desastrosas. O Ibama tem um corpo técnico para licenciar as atividades, e eu confio muito na capacidade de decisão desse curso técnico. Nós vamos trabalhar para analisar com muita atenção e carinho todo e qualquer atividade, obra, empreendimento que possa sim trazer consequências danosas ao meio ambiente.

De fato, o presidente Lula colocou a questão ambiental como uma de suas prioridades. Mas todos os governos PTs foram conhecidos por projetos desenvolvimentistas que nem sempre se conciliaram bem com a questão ambiental. O caso mais gritante é o da usina de Belo Monte. Você falou em projeto de país. Você acha que essa é uma questão equacionada agora no Lula 3? Você como presidente do Ibama estará em vários momentos exatamente no meio de planos de desenvolvimento, de criação de infraestrutura, e os riscos ambientais. O que espera?

Olha eu acredito muito na capacidade de diálogo, na capacidade de liderança da ministra Marina Silva. Eu acredito muito na capacidade da gente propor soluções sustentáveis para esse país. Acho que os momentos são outros, obviamente que tem coisas não resolvidas. A usina de Belo Monte tem inúmeros problemas ambientais decorrentes da sua atividade que até hoje não foram endereçados. Mas obviamente nós estamos num outro governo. É um novo governo, com outros ministros e a nossa prioridade é por fim ao desmatamento ilegal, a nossa prioridade é estabelecer critérios, parâmetros, princípios mínimos de sustentabilidade que vão nortear nossas atividades. Isso não quer dizer que atividades causadoras de danos ambientais não acontecerão. Estradas e ferrovias serão abertas, portos e aeroportos serão construídos, mas o licenciamento ambiental está justamente para botar um equilíbrio nessa história. Esse é um ponto importante. O licenciamento ambiental tem um fim. Não é um fim cartorário. É um fim amparado na legislação: num primeiro momento ele avalia a viabilidade ambiental e social de uma determinada atividade, empreendimento, num segundo momento propõe alternativas do ponto de vista de compensação, de mitigação, de prevenção, de precaução e, obviamente, a gente vai trabalhar na busca das melhores soluções. Eu confio muito nesse momento que a gente está vivendo e acredito que a gente será muito bem sucedido nas nossas escolhas e decisões. 

*Esta entrevista faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.