sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

 

Rodinson, um marxista crítico no mundo muçulmano

Nascido na França, historiador mergulhou na civilização árabe como poucos. Enxergou o Islá sem preconceitos e previu que, por não compreendê-lo, esquerda abriria espaço aos fundamentalistas. Propôs, como Marx, “duvidar de tudo”

Por Jean Batou na Jacobin Brasil | Tradução de Gercyane Oliveira

Maxime Rodinson foi um dos maiores especialistas internacionais da região, no mundo árabe e no Islã, com uma reputação mundial entre os estudiosos desta área. Nascido em 26 de janeiro de 1915 em Paris, ele morreu em Marseille com a idade de 89 anos, em 2004.

O historiador francês deixou para trás uma bibliografia de mais de mil obras, incluindo cerca de 20 livros autorais, 6 dos quais foram traduzidos para o inglês, e várias coleções de ensaios. Seus temas variaram desde a Arábia do século VII até os estados e movimentos do Oriente Médio moderno.

Esse legado intelectual é de particular importância para a esquerda hoje porque Rodinson procurou explicar os principais desenvolvimentos políticos e sociais nas sociedades árabes com a ajuda de conceitos marxistas, aplicados com um espírito criativo e não dogmático.

Rodinson não foi um acadêmico destacado. Sua contribuição mais influente pode ter sido seu relato politicamente engajado sobre as origens e a trajetória de Israel em livros como Israel: Um Estado Colonial? e Israel e os árabes. Muitas pessoas que nunca ouviram falar de Rodinson, no entanto, conhecem sem saber sua avaliação crítica do sionismo, que ele combinou com uma visão clara das falhas do nacionalismo árabe.

Essa foi apenas uma parte do trabalho de Rodinson. Seus livros e ensaios são ferramentas inestimáveis para qualquer um que queira compreender as sociedades do Oriente Médio, do passado até o presente. Aqui vai uma introdução aos principais sinais políticos e intelectuais da longa e notável carreira de Rodinson.

Uma vida contra a maré

Os pais de Rodinson, humildes alfaiates socialistas de origem judaica, fugiram dos pogroms da Rússia no final do século XIX para se estabelecerem na França, onde aderiram ao Partido Comunista (PCF) em 1920. Aos 13 anos de idade, armado apenas com um certificado de conclusão da escola primária, Rodinson tornou-se um moço de recados e aprendeu, sozinho, esperanto, inglês, grego e latim.

Ele devorava os livros que pegava emprestados e procurava os conselhos dos professores sempre que podia. Aos 17 anos, passou no exame de admissão para a École Nationale des Langues Orientales Vivantes em Paris. Quatro anos depois, formou-se em ge’ez, amárico, árabe clássico, árabe oriental, árabe norte-africano e turco.

Em 1937, Rodinson recebeu uma bolsa de estudos do Conselho Nacional de Pesquisa – no mesmo ano em que entrou para o PCF. Como ele lembrou mais tarde, o PCF tinha uma cultura fortemente “operária”, e ele se sentia muito mais próximo dos membros da classe trabalhadora do partido do que dos intelectuais de famílias burguesas: “Pelo menos assim eu acreditava. Mas os ‘intelectuais de tempo integral’, no entanto, me consideravam um intelectual, um portador de todos os vícios inerentes à categoria.”

Rodinson deixou a França logo após a Segunda Guerra Mundial ter começado para trabalhar na Síria e no Líbano. Foi seu domínio do árabe que lhe permitiu escapar da deportação para os campos sob a ocupação nazista. Muitos de seus parentes não foram tão afortunados, inclusive seus pais, que morreram enquanto eram transportados para Auschwitz em 1943.

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Durante seus anos no Oriente Médio, Rodinson lecionou em uma escola secundária e colaborou com a Missão Arqueológica da França Livre. Foi lá que ele começou seu estudo sobre o Islã a partir de uma perspectiva materialista. De volta a Paris, em 1948, tornou-se chefe do Departamento de Publicações Orientais da Biblioteca Nacional e depois diretor de estudos na École Pratique des Hautes Études.

Ao longo de sua carreira docente, Rodinson avançou para se tornar professor de etíope clássico e sul-arábico, e finalmente professor de Etnografia Histórica do Oriente Próximo. Ele inspirou muitos alunos e, em 1971, ele supervisionou simultaneamente mais de 70 teses de doutorado.

Rodinson permaneceu membro do PCF até sua expulsão do partido em 1958 por mostrar uma linha de pensamento cada vez mais independente, especialmente após o “discurso secreto” do líder soviético Nikita Khrushchev em 1956, que denunciou alguns dos abusos do governo de Stálin. Em 1981, ele escreveu uma longa e intransigente autocrítica de seu período stalinista, explicando que agora via Stálin como um “tirano sádico” responsável por crimes terríveis, enquanto insistia na sinceridade de muitos militantes comunistas da época, que haviam acreditado que estavam lutando por um mundo melhor.

O historiador disse que ele não aceitaria “a condenação farisaica” de figuras que apoiavam as injustiças do status quo. Entretanto, Rodinson declarou seu respeito por aqueles militantes cujo entendimento do stalinismo havia sido mais lúcido do que o seu na época: “Aceito apenas as lições daqueles que se mostraram mais lúcidos ao dirigir melhor sua indignação e rebeldia.”

O marxismo criativo

Rodinson foi acima de tudo um pesquisador de campo dedicado aos “exercícios concretos de investigação” (coleta e análise de fontes e leitura crítica). Ele guardava sua independência de espírito. Quando tive a oportunidade de falar longamente com ele no final dos anos 70, ele confidenciou que não se considerava mais um marxista, talvez ecoando o famoso comentário de Karl Marx de que ele não era um “marxista” pelos padrões de alguns discípulos autoproclamados em seu próprio tempo.

Rodinson foi em todo caso um dos primeiros “marxistas” do pós-guerra a defender uma abordagem da história baseada na análise de formações sociais concretas. De sua perspectiva, o modo de produção dominante certamente determinava a realidade social, mas os subordinados também poderiam influenciá-la. Além disso, as “superestruturas” políticas e ideológicas de sociedades não eram rigidamente determinadas por suas “bases” econômicas, como as formas mais rigorosas da teoria marxista a querem. Estas ideias ajudaram a tirar o marxismo do impasse estéril no qual o dogma stalinista o havia aprisionado.

Sendo “modestamente” capaz, como ele disse, de ler cerca de 30 línguas, Rodinson odiava as fronteiras nacionais tanto quanto as fronteiras disciplinares. Ele era ao mesmo tempo um linguista, um historiador, um antropólogo e um sociólogo. Como especialista em línguas semitas, ele também se interessava pelo mundo turco, Ásia Central e Etiópia, islamismo e judaísmo, sionismo, Israel e a questão palestina, assim como classes sociais, economia, grupos étnicos e racismo, medicina, culinária, feitiçaria, magia, mitos e os rituais.

Suas duas obras mais importantes, Muhammad, publicada em 1961, e Islã e capitalismo, de 1966, marcaram um ponto de virada na historiografia do mundo muçulmano, avançando uma análise materialista de sua evolução e recusando-se a dar à religião um status privilegiado. Rodinson descartou “a concepção idealista da religião como um conjunto de ideias flutuando sobre as realidades terrestres e animando constantemente o espírito e as ações de todos os seus seguidores” – uma concepção que foi (e continua sendo) especialmente prevalecente na discussão das sociedades muçulmanas:

“Existe um fosso considerável entre o Islã, como veio a ser, e a inspiração original. Não fosse assim, como se poderia explicar os apelos ao ihya [renascimento] e ao tajdid [renovação] que se repetem ao longo da história do Islã? Esta dinâmica se aplica a todas as religiões. De fato, ela é mais ou menos válida para todas as ideologias e movimentos ideológicos, incluindo o marxismo!”

Em 1972, ele publicou o Marxismo e o Mundo Muçulmano. Esta coleção de artigos, conferências e ensaios escritos entre 1958 e 1972, e atualizados pelo autor para publicação, trata das formações sociais e ideologias dos Estados de maioria muçulmana. Ele também escreveu Os Árabes, 1979, uma monografia que tenta ilustrar o retrato antropológico, sociológico, histórico e político de um povo em sua infinita diversidade, juntamente com o livro Europa e a Mística do Islã, de 1980, que traça a evolução das perspectivas ocidentais sobre o mundo muçulmano desde os primeiros encontros até a era moderna.

Muhammad em carne e sangue

A biografia de Rodinson sobre o profeta do Islã marcou uma partida no pensamento de seu tempo, na medida em que apresentou aos leitores um homem de carne e osso. O livro descrevia Muhammad fisicamente como se ele estivesse diante de nós: “Ele era de altura média, com uma cabeça grande, mas um rosto que não era nem redondo nem gordo. Seu cabelo era ligeiramente encaracolado e seus olhos eram grandes, pretos e bem abertos sob longas pestanas”.

O autor passou a oferecer um retrato psicológico de Muhammad:

“Ele não estava contente. A felicidade, com suas limitações, sua aceitação calma ou ansiosa, não é feita para aqueles que estão sempre olhando além do que são e do que têm, cujo espírito de busca está sempre alcançando as próximas coisas a serem desejadas. E uma infância pobre, carente, órfã como a de Maomé, estava destinada a fomentar o crescimento desta capacidade infinita de desejo. Somente o sucesso em uma escala extraordinária, pode-se até dizer sobrenatural, poderia satisfazê-lo.”

Rodinson tentou dar uma explicação materialista ao nascimento do Islã em um lugar e em uma época em que ideias bíblicas e caravanas mercantes se cruzavam. Em 610, quando fez 40 anos, Muhammad começou a recitar as mensagens que ele acreditava que Deus lhe havia ditado, dando à luz o Alcorão. Este novo credo alegou reunir verdadeiros monoteístas, revisitando e transcendendo as tradições judaicas e cristãs e fornecendo uma identidade espiritual compartilhada a todos os árabes através de suas barreiras tribais.

Em 622, tendo anteriormente forçado o novo profeta ao exílio em Medina, a aristocracia de Meca se mobilizou em torno de sua liderança. Muhammad e seus sucessores lideraram um poderoso exército de beduínos na conquista do Oriente Médio, do Norte da África e da Espanha. Ao mesmo tempo, porém, o Islã permaneceu ligado a sua posição original igualitária, muitas vezes impedindo o poder absoluto dos califas, emires e sultões que vieram depois.

No capítulo final do livro, Rodinson rejeitou o tipo de “determinismo primitivo” às vezes associado ao marxismo, segundo o qual “se Muhammad nunca tivesse nascido, a situação teria se chamado outro Muhammad”. Esta era uma clara alusão ao filósofo marxista russo George Plekhanov, cujo influente ensaio “Sobre o papel do indivíduo na história” tinha feito a mesma afirmação sobre Napoleão.

Para Rodinson, o curso dos acontecimentos históricos não podia ser explicado de forma tão clara:

“Um Maomé diferente, vinte anos depois, talvez tivesse encontrado o Império Bizantino consolidado, pronto para combater com sucesso os ataques das tribos do deserto. A Arábia poderia ter sido convertida ao cristianismo. A situação exigia soluções para uma série de problemas cruciais, como vimos; mas essas soluções poderiam facilmente ter sido diferentes daquelas que realmente ocorreram. Um lançamento diferente dos dados e do acaso toma outro rumo.”

Novas controvérsias

Rodinson baseou sua análise materialista da tradição muçulmana em particular em duas obras originais sobre a vida de Muhammad em Meca e Medina publicadas nos anos 50 pelo historiador britânico William Montgomery Watt. Na época, a historiografia ocidental aceitava este ponto de vista em suas linhas gerais. Desde o final dos anos 70, alguns estudiosos proeminentes, como John Wansbrough, Michael Cook e Patricia Crone, têm submetido esse material a fortes críticas.

Estas figuras retratam a “pré-história” do Islã como um movimento messiânico que reunia judeus e cristãos e que levou à conquista árabe. Seu trabalho datou a escrita do Alcorão de um período com cerca de dois séculos depois, e até questionou o papel de Muhammad e Meca no nascimento do Islã.

No entanto, pesquisas recentes não fornecem um apoio substancial para um revisionismo histórico tão radical. Pelo contrário, ela tende a confirmar que o Alcorão teve origem na Arábia Central, e que a maior parte de seu conteúdo data do século VII, embora provavelmente tenha havido revisões textuais em uma etapa posterior.

Em 1972, a restauração da Grande Mesquita do Sanaa no Iêmen descobriu um palimpsesto provavelmente datado do final do século VII, que continha cerca da metade do Alcorão. Um professor alemão aposentado revelou então no início dos anos 90 a existência de um arquivo fotográfico essencial de fragmentos do antigo Alcorão que acreditava-se ter desaparecido nos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Esta descoberta deu um novo impulso à pesquisa sobre as origens do Alcorão.

Ao ler hoje a biografia de Rodinson sobre Muhammad, é preciso ter em mente estas controvérsias. Ela permanece amplamente compatível com o trabalho mais atual, particularmente o de Fred M. Donner ou Angelika Neuwirth.

Orientalismo e subdesenvolvimento

Islã e capitalismo, publicado em 1966, foi sem dúvida o livro de Rodinson que gerou os debates mais apaixonados. Sua tese central fez eco nos debates dos anos 60 sobre as principais causas do subdesenvolvimento, particularmente no mundo muçulmano. Para Rodinson, o Islã não havia impedido o crescimento econômico, seja por meio de suas instituições ou de suas práticas seculares.

Aqueles que argumentam o contrário apontaram um fator doutrinário central que eles acreditavam ter inibido o desenvolvimento do capitalismo nos países muçulmanos, a saber, a proibição de empréstimos remunerados. De acordo com a pesquisa de Rodinson, esta regra tinha sido, na prática, amplamente contornada por meios legais. O Islã sempre defendeu a propriedade privada e o enriquecimento individual desde que os ricos fossem caridosos e prestassem ajuda aos órfãos ou aos pobres.

Seguindo o caminho de investigação aberto por Rodinson, historiadores como Jairus Banaji procuraram mostrar que o Islã medieval, de fato, fez a ponte entre o próspero comércio da antiguidade tardia e o das cidades-estado italianas, Portugal e Holanda centenas de anos mais tarde. Este papel de ponte envolveu práticas comerciais, inovações legais e instituições.

A partir do século XIX, a Europa Ocidental e os Estados Unidos passaram a dominar a economia mundial. Para Rodinson, o status hegemônico desses poderes explicava porque o capital comercial nas sociedades muçulmanas, que existiam em quantidades substanciais, não podia produzir uma forma autossustentável de capitalismo industrial.

A espetacular tentativa de industrialização do Egito na primeira metade do século XIX dá apoio a sua argumentação. Nos anos 1830, o país teve uma das indústrias modernas mais desenvolvidas do mundo, especialmente em setores como a fiação e a tecelagem do algodão. Entretanto, uma poderosa intervenção diplomática e militar da Grã-Bretanha e de outras potências ocidentais encurtou esta experiência na década de 1840.

O Islã e o capitalismo mostram a importância do raciocínio do Alcorão, numa época em que os fundadores do Islã estavam envolvidos em um diálogo com a sociedade árabe do século VII. Esta forma de pensar se desenvolveu em resposta à ascensão do comércio e das finanças. A instigação do Alcorão para pensar, confrontar ideias e se engajar em um esforço intelectual para encontrar a verdade decorre da necessidade de promover uma compreensão mais universal do mundo.

Será que o Alcorão realmente defende o fatalismo, uma passividade contrária ao espírito empreendedor, como muitos estudiosos têm sugerido? Suponhamos que o destino do ser humano depende de Deus, o criador de todas as coisas, o onisciente. Se este é o caso, então a ideia de predestinação no Islã (como em outras religiões) não contradiz o chamado à ação, já que a agência humana é em si mesma um produto da vontade de Deus. A palavra jihad não se refere apenas à guerra santa, mas, sobretudo, ao esforço para melhorar a si mesmo e a sociedade.

“Exclusividade possessiva”

Rodinson foi um daqueles pensadores que acreditava que a busca da verdade através de métodos científicos é uma prerrogativa universal da humanidade, assim como a crítica às ideologias que impedem seu desenvolvimento. Ele apreciou o trabalho de Edward Said, Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente, publicado em 1978, que se tornou um texto extremamente influente nas humanidades:

“Seu grande mérito, a meu ver, foi sacudir a auto-satisfação de muitos orientalistas, apelar para eles (com questionável sucesso), considerar as fontes e as conexões de suas ideias, deixar de vê-las como uma conclusão natural, sem preconceitos, dos fatos.”

No entanto, Rodinson expressou algumas críticas sobre o método de Said. Plenamente consciente dos preconceitos coloniais de muitos pesquisadores europeus em relação ao Oriente, ele estava, no entanto, desconfiado de uma abordagem que poderia levar à invalidação a priori da ciência ocidental.

Em La fascination de l’islam, de 1980, que foi traduzido para o inglês como Europa e a Mística do Islã, ele expôs explicitamente essas preocupações. Na opinião de Rodinson, embora fosse importante reconhecer e desafiar o efeito de distorção do colonialismo tanto na escolha dos dados quanto em sua interpretação pelos estudiosos, isto não deveria significar a adoção do conceito de “duas ciências”.

Ele estava se referindo a uma ideia promovida pelo tenente Andrei Zhdanov de Stalin no final dos anos 40. Zhdanovismo submeteu a sociedade soviética a uma verdadeira inquisição ao dividir os campos da ciência e da cultura em duas categorias, “proletário” e “burguês”, rejeitando a ideia de investigação acadêmica objetiva e dando aos comissários do partido o direito de julgar a linha correta, mesmo em campos como a biologia e a física.

Em um artigo de 1985, “Orientalismo Reconsiderado”, Said insistiu que as críticas de Rodinson a sua abordagem eram infundadas. Entretanto, ele retomou uma advertência formulada por Myra Jehlen a partir de uma perspectiva feminista, abordando a questão de “se, ao identificar e trabalhar através de críticas antidominantes, os grupos subalternos – mulheres, negros e assim por diante – podem resolver o dilema dos campos autônomos de experiência e conhecimento que são criados como consequência”.

Segundo Said, aqueles que trabalham em tais campos teriam que se precaver contra uma dupla tentação:

“Um duplo tipo de exclusivismo possessivo poderia se instalar: o sentido de ser um insider excludente em virtude da experiência (somente as mulheres podem escrever sobre e para as mulheres, e somente a literatura que trata bem as mulheres ou os orientais é boa literatura), e em segundo lugar, ser um insider excludente em virtude do método (somente as marxistas, anti-orientalistas e feministas podem escrever sobre economia, orientalismo, literatura feminina).”

Em todos os debates polêmicos trocados entre eles, Rodinson teria concordado com isso.

Islamismo e política

No Islã e capitalismo, Rodinson já havia escrito uma nota cautelosa sobre a forma que o Islã político provavelmente assumiria, nadando contra a corrente do que ele considerava ser um terceiro mundo ingenuamente otimista:

“Os intérpretes reacionários das escrituras gozam do benefício de toda a herança do passado, do peso de séculos de interpretação no sentido tradicional, do prestígio dessas interpretações, do hábito estabelecido de relacioná-las à religião geralmente aceita por razões que não são de modo algum religiosas. Estes fatores só poderiam ser eliminados após um radical aggiornamento da religião muçulmana.”

Aggiornamento, um termo italiano para “modernização” ou “atualização”, foi usado em 1959 pelo Papa João XXIII para descrever seu plano de renovação da Igreja Católica.

Como Rodinson explicou mais de uma vez em seus textos, “islamismo” não era um fenômeno unidimensional. O islã político poderia assumir orientações conflitantes, dependendo de quais atores sociais alegavam ser seus defensores e quais líderes políticos e intelectuais se apresentavam para articular seu programa. Não havia uma única doutrina religiosa, internamente consistente, que pudesse ser aplicada ao domínio da política.

A tradição construída em torno das ações e ditos do Profeta, seus companheiros e os primeiros Califas, compilados cerca de 150 a 200 anos depois, formou a Sharia. Enquanto este corpo de pensamento tendia a defender interesses privados privilegiados e defender a submissão total à autoridade, as exigências de um credo nascido em um contexto relativamente igualitário muitas vezes seguiram na direção oposta, oferecendo a base para a crítica social. Por outro lado, os Califas, os Emir e Sultões cujo poder autocrático havia reinado sobre o mundo islâmico a partir de meados do século VII quiseram ser os únicos juízes capacitados para ditar o rumo adequado a ser seguido pelos muçulmanos.

As religiões não são escritas em pedra pelo texto de suas escrituras fundadoras. Elas evoluem com as sociedades que as adotam, cujas classes dominantes têm uma influência decisiva em suas formas institucionais e doutrinárias. Esta cooptação de clérigos – o ulemá – pelos poderosos não é algo exclusivo do Islã, mesmo que tenha assumido uma forma particular no mundo muçulmano. As “heresias” que proclamam um retorno à “verdadeira fé” também alimentaram muitos movimentos de resistência social dentro do Islã, assim como fizeram em outras religiões.

Teologias da Libertação e da Opressão

O Islã está condenado a ser um instrumento de políticas reacionárias? Não necessariamente, insistiu Rodinson. Sob o impacto da Revolução Russa e das lutas de libertação que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, certos setores do mundo muçulmano desenvolveram uma espécie de “Teologia de Libertação” com conotações socialistas.

Rodinson prestou especial atenção a estes desenvolvimentos, olhando para a carreira do militante político do Tatar Mir Sayit Sultan-Galiev. Sultan-Galiev foi um porta-voz dentro do Partido Bolchevique para as exigências nacionais e religiosas dos muçulmanos russos:

Ele via a sociedade muçulmana, com exceção de alguns grandes proprietários feudais e burgueses, como uma unidade que tinha sido oprimida coletivamente pelos russos sob o czarismo. Portanto, não fazia sentido dividi-la com diferenças criadas artificialmente e lutas de classes… de fato, a revolução socialista deveria se adaptar a uma sociedade tão impregnada de tradições muçulmanas. O próprio Sultão-Galiev, ateu, recomendava, portanto, que o Islã fosse tratado suavemente, através de uma gradual “desfanatização” e secularização.

Lenin apoiou o Sultão-Galiev, mas mais tarde ele se chocou com a liderança soviética. Sob o governo de Stalin, ele foi preso e acabou sendo baleado. Rodinson viu o revolucionário tártaro como o homem que primeiro reconheceu a importância da questão nacional nos países coloniais, e “a relevância internacional para o socialismo daqueles movimentos nacionais que não contemplam imediatamente uma completa guerra de classes e socialização”.

Rodinson acreditava que era possível prever um “islamismo de libertação” na mesma linha da Teologia de Libertação cristã da América Latina. Isto poderia acontecer enquanto o portador de tal tendência fosse um movimento popular cuja liderança iria romper conscientemente com a longa tradição de colaboração dos ulemá com a classe dominante e o poder estatal.

Com isto em mente, Rodinson criticou Amar Ouzegane, um dos fundadores do Partido Comunista Argelino. Em sua opinião, Ouzegane certamente estava certo em reconhecer os sentimentos religiosos generalizados que o movimento nacionalista mobilizou contra o colonialismo francês em seu livro Le Meilleur Combat (O Melhor Combate) de 1962. No entanto, Rodinson se opôs ao apoio de Ouzegane às autoridades muçulmanas tradicionais na Argélia. Ele advertiu que estes clérigos defenderiam inevitavelmente os interesses das novas classes dominantes argelinas após a independência, assim como os valores sociais reacionários.

Em uma entrevista de 1986 para o marxista libanês Gilbert Achcar, Rodinson lembrou uma viagem que havia feito à Argélia em 1965, quando o primeiro presidente do país, Ahmed Ben Bella, estava “fazendo tentativas cautelosas para promover a igualdade das mulheres”:

“Uma organização oficial de mulheres – não a organização falsa que elas têm hoje – estava realizando um congresso na capital. Quando o congresso estava fechando, Ben Bella veio para marchar à frente de uma procissão de mulheres pelas ruas da Argélia. Das calçadas de ambos os lados, homens enojados assobiavam e zombavam.”

Rodinson acreditava que o apoio provisório de Ben Bella à igualdade de gênero havia sido um fator significativo por trás do golpe liderado por Houari Boumedienne que o expulsou mais tarde naquele ano. Ele viu isso como um exemplo precoce de um fenômeno muito mais amplo: “Uma razão pela qual o fundamentalismo islâmico teve um apelo sedutor em quase todos os lugares é que os homens estão sendo despojados de seus privilégios tradicionais pelas ideologias modernistas”.

A ascensão do fundamentalismo islâmico

As sementes que Rodinson detectou no rescaldo da independência argelina floresceram plenamente após a Revolução Iraniana de 1978-79 com a consolidação do regime fundamentalista xiita do Ayatollah Khomeini. Como o movimento revolucionário iraniano vinha se desenvolvendo nos dois anos anteriores, alguns intelectuais ocidentais de esquerda o saudaram com uma mistura de entusiasmo e fascínio. Eram tanto mais entusiasmados quanto tinham visto as esperanças políticas dos anos sessenta revolucionários se tornarem amargas em outros lugares.

Rodinson viu imediatamente os perigos de uma reação ingênua e mal informada. Em três artigos publicados em dezembro de 1978 para o Le Monde, ele descreveu o fundamentalismo islâmico como uma espécie de “fascismo arcaico” baseado na “vontade de estabelecer um Estado autoritário e totalitário cuja polícia política manteria ferozmente a ordem moral e social”, ao mesmo tempo em que impunha “a conformidade com as normas da tradição religiosa interpretada no sentido mais conservador”.

Os partidários de Khomeini eram de duas variedades, acreditava Rodinson: alguns atribuíam importância primordial à “renovação da fé” por meios artificiais e coercivos, enquanto outros a viam como um “suplemento psicológico” que facilitaria uma “reforma social retrógrada”. Em fevereiro de 1979, no jornal francês Le Nouvel Observateur, ele ofereceu um comentário irônico sobre o entusiasmo de Michel Foucault pelo que estava acontecendo no Irã sob a liderança de Khomeini:

“A esperança, há muito morta ou moribunda, de uma revolução mundial que liquidaria a exploração e a opressão do homem pelo homem, ressurgiu, primeiro timidamente, depois com maior segurança. Será que, mais inesperadamente, esta esperança está agora sendo encarnada neste Oriente muçulmano até então pouco promissor e, mais precisamente, neste velho perdido em um mundo medieval de pensamento?”

Também no Irã, marxistas e liberais pareciam surpreendidos pelo poder mobilizador dos slogans religiosos – “cobrindo os motivos mais materiais de insatisfação e revolta”, segundo Rodinson – em nome dos quais as massas tinham enfrentado o exército do xá com suas próprias mãos. Muitos intelectuais progressistas iranianos há muito tempo tentavam encontrar pontos de convergência entre o Islã, particularmente o xiismo, e o socialismo.

Alguns o fizeram com toda sinceridade, como Ali Shariati, cujas ideias eram influentes entre o grupo de esquerda chamado Organização dos Mujahedin do Povo do Irã. Outros seguiram esta abordagem por razões táticas, na esperança de conquistar o coração das massas. Após a chamada Revolução Branca de 1962-63, um programa de reformas sociais e econômicas liberais lançado pela ditadura pró-ocidental do Xá, outros ainda tentaram formar alianças religiosas em oposição a seu governo.

No entanto, todos eles haviam negligenciado a posição social e a ideologia da liderança religiosa do Irã, que estava próxima à burguesia, principalmente comercial. Na década de 1970, Ruhollah Khomeini havia conquistado os mullahs para sua concepção de um “governo islâmico” que estaria sujeito à autoridade inquestionável de um guia supremo.

Para Rodinson, não se tratava de tentar impedir os muçulmanos de buscar seu futuro em alguma versão do Islã, “cuja nova face eles teriam que formar com suas próprias mãos”. No caso iraniano, não era o termo “islâmico” na formulação de Khomeini que deveria ter chamado a atenção dos observadores, mas sim a palavra “governo”, que Khomeini tinha investido firmemente com um conteúdo autocrático em seus discursos e escritos.

Rodinson via o fundamentalismo islâmico como um produto dos impasses da modernidade em suas diversas formas – colonial, neocolonial, nacional, ou mesmo “socialista” – seja na região árabe, Turquia, Irã, Ásia Central, ou África subsaariana. Em 1986, ele advertiu que isso permaneceria por muito tempo como uma característica do cenário político nos países muçulmanos:

“O fundamentalismo islâmico é um movimento temporário, transitório, mas pode durar mais trinta ou cinqüenta anos – não sei quanto tempo. Onde o fundamentalismo não está no poder, ele continuará sendo um ideal, enquanto persistir a frustração e o descontentamento básicos que levam as pessoas a tomar posições extremas. Você precisa de uma longa experiência com o fundamentalismo para finalmente ficar farto dele – veja quanto tempo levou na Europa! Os fundamentalistas islâmicos continuarão a dominar o período por um longo tempo. Se um regime fundamentalista islâmico fracassasse de forma muito visível e introduzisse uma tirania óbvia, uma sociedade abjetamente hierárquica, e também experimentasse retrocessos em termos nacionalistas, isso poderia levar muitas pessoas a se voltarem para uma alternativa que denunciasse esses fracassos. Mas isso exigiria uma alternativa credível que entusiasme e mobilize as pessoas. Não vai ser fácil.”

Nisso, é claro, ele estava certo.

“Duvidar de tudo!”

A vida e a trajetória intelectual de Rodinson foram marcadas por uma busca constante da verdade dentro de uma crença na emancipação coletiva. Sem hesitação, ele teria retomado a célebre injunção de Marx: duvidar de tudo! Ele desconfiava de teorias abstratas que não tinham uma base concreta e sempre se esforçou para basear suas próprias concepções em incansáveis pesquisas empíricas. Tampouco aceitava a ideia de que o pensamento crítico sobre um determinado assunto poderia ser prerrogativa de um grupo de pessoas, pois somente elas haviam experimentado essa forma de exploração ou opressão.

Rodinson rejeitou firmemente a ideia do marxismo como um pensamento acabado ou doutrinário que já continha todas as respostas para as importantes questões políticas, “um pouco como uma daquelas placas eletrônicas nas estações de metrô de Paris, que indicam o caminho correto de um ponto a outro”. Em seu entendimento, havia “não apenas um marxismo, mas vários marxismos, todos com um núcleo comum, é verdade, mas também com muitas divergências, sendo cada versão tão legítima quanto qualquer outra”.

De sua própria fase stalinista, ele tirou a lição de que os altos ideais políticos não eram “nenhuma garantia contra as armadilhas da auto-satisfação e do narcisismo coletivo, nem contra o delírio ideológico e os lapsos morais aos quais até mesmo os mais admiráveis dos compromissos podem levar”. Entretanto, o ceticismo de Rodinson em relação aos dogmas ideológicos não o levou à neutralidade política. Como ele escreveu na introdução ao marxismo e ao mundo muçulmano:

“Quando é evidente que calamidades inaceitáveis são o resultado direto de estruturas opressoras e exploradoras fundamentais, então o remédio deve ser radical; deve, como Marx disse, ir à raiz das coisas. E nesse caso, só há uma postura válida para aqueles que não conseguem resignar-se a aceitar o sofrimento evitável da humanidade: ser um rebelde.”

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Marxismo: os espantalhos (ainda) estão à solta

Resposta ao artigo de Uribam Xavier: reduzir as teorias marxista a “eurocentrismos” é um grave erro. Ao lado das ideias anticoloniais, elas são essenciais à emancipação dos povos. A gaveta da história não foi trancada com a chave dentro…

Imagem: Diego Rivera (mural El hombre en la encrucijada)

“A tentativa, sem dúvida, não é original”, conclui José Carlos Mariátegui, ainda no início do século XX, sobre o rancor incontido da ciência oficial e de professores universitários contra o marxismo. Diz ele: “o marxismo sofre desde o fim do século XIX – isto é, desde antes que se iniciasse a reação contra as características desse século racionalista, entre as quais é catalogado – com as investidas mais ou menos documentadas ou instintivas de professores universitários, herdeiros do rancor da ciência oficial contra Marx e Engels, e de militantes heterodoxos desgostosos com o formalismo da doutrina do partido”.

Mariátegui, considerado por muitos o mais destacado marxista latino-americano, tem a concordância de Eric Hobsbawm: “desde o surgimento do marxismo enquanto uma força intelectual, dificilmente haverá passado um ano – e no mundo anglo-saxão, a partir de 1945, uma semana – sem que houvesse alguma tentativa de refutá-lo”, escreveu o historiador britânico. Hobsbawm explica que “as obras de Marx, embora volumosas, são de tamanho limitado; é tecnicamente impossível fazer-lhes mais que um certo número de críticas originais, e a maioria delas já foi feita há muito tempo. Já o defensor de Marx vê-se dizendo as mesmas coisas vezes sem conta e, por mais que tente fazê-lo de maneira nova, até isso é impossível”.

Alinhado com Hobsbawm, Mariátegui chega à conclusão de que não vale a pena enumerar outras ofensivas menores contra o marxismo operadas com argumentos idênticos ou análogos. Algumas delas, porém, servem para estimular a atividade intelectual do socialismo, cumprindo uma oportuna função de reação.

Em resposta às doutrinas essencialistas da época, o teórico peruano sabia que a universalidade do capitalismo tinha sua expressão particular na América Latina – sobretudo na condição dos povos andinos originários. Parecendo adiantar-se às críticas ao marxismo vindas das teorias pós-modernas que se popularizariam nos anos noventa, escreveu que “a reivindicação indígena carece de concreção histórica enquanto se mantiver em um plano filosófico ou cultural. Para adquiri-la – isto é, para adquirir realidade, corporeidade – precisa se converter em reivindicação econômica e política. O socialismo nos ensinou a colocar o problema indígena em novos termos. Deixamos de considerá-lo abstratamente como problema étnico ou moral para reconhecê-lo concretamente como problema social, econômico e político”. Sua defesa do marxismo não se deu por fetiche acadêmico ou vaidade intelectual, mas por compreender que oferecia, como ainda oferece, as ferramentas teóricas necessárias para compreender a realidade e orientar para a ação política.

Citado de forma protocolar, o marxismo, por sua relevância histórica, ainda costuma se fazer presente entre os adeptos das chamadas “teorias decoloniais”, “epistemologias do sul”, “transição paradigmática” e afins. Com algum esforço, há quem busque convergências entre estes campos teóricos. Não é o caso, entretanto, do professor Francisco Uribam Xavier, que, em artigo publicado no Outras Palavras, não teve quaisquer receios em expor a incompatibilidade entre ambos. Mas, para além dessa divergência, é o seu antimarxismo que nos dá a chance da reação oportuna em defesa do socialismo.

O artigo, intitulado “Marxismo e as epistemologias do sul”, é um suco do resumo feito por Hobsbawm e Mariátegui. Em síntese, o marxismo estaria sujeito à sua própria máxima de que tudo que é sólido desmancha no ar, de modo que teria perdido sua relevância teórica e política para desvelar os tempos presentes. Sendo uma doutrina eurocêntrica, não há de ser aplicada na periferia do mundo, por mais que essa periferia esteja sob o capitalismo. Ainda, o potencial revolucionário da classe trabalhadora teria se dissipado definitivamente, ao passo que marxistas seriam dogmáticos, adeptos de profissões de fé e ortodoxos, pois, “apologistas da ideia de que existe uma leitura única e verdadeira dos textos de Marx, deixam transparecer para sua audiência terem como maior gozo o ato de interpretar Marx como se fosse uma escritura sagrada”.

A crítica se volta não apenas contra o marxismo em si, mas, principalmente, contra uma caricatura dele, com sobras suficientes para ir além do seu objeto e arrebatar mesmo as pessoas físicas dos marxistas, portadores de um saber sacerdotal e anedótico: “os marxistas ortodoxos ou exegetas fazem parte de um dos contingentes de indivíduos que, dentro da sociedade capitalista, são liberados do trabalho produtivo devido à divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, tornando-se, por privilégios, jornalistas, críticos literários, produtores culturais, escritores e acadêmicos, atividades que são relevantes para o processo de transformação do sistema-mundo moderno/colonial e de desenvolvimento da criatividade estética e cultural da humanidade, mas que podem, também, cair no campo da alienação ou ganhar uma postura escolástica produtora de fantasias, capacidade de representar algo sem representar algo real”.

É evidente que há um marxismo academicista que, preocupado unicamente em participar de colóquios e seminários para discutir categorias em abstrato, possui severas dificuldades em mediar teoria com realidade (esse ponto será retomado mais à frente). Mas seria essa caricatura vulgar a face real e definitiva da tradição teórica e política iniciada com Marx e Engels?

O autor prossegue com o raio-X pessoal dos seus alvos, alçando os sujeitos ao mesmo patamar de objeto: “os marxistas ortodoxos não são operários, na maioria das vezes estão distantes dos movimentos sociais, buscam prestígios e distinção que são inerentes a uma vida burguesa, vivem num ambiente longe da realidade material do proletariado, numa bolha, e sempre têm um discurso para explicar porque os que estão na militância comentem equívocos e não fazem a revolução. Sabedores dos caminhos e das receitas para revolução, nunca tomam a iniciativa de efetivarem o que falam e o que sabem”. Para os aristocratas marxistas, apoltronados em seus escritórios e chefias de departamento, a revolução se iniciaria em seus gabinetes.

O professor Uribam, após mirar nos marxistas, retorna ao marxismo: “Será que o proletariado tem que ser marxista para ser revolucionário ou é o marxista que tem que ser proletarizado para ser revolucionário?”. Ainda hoje não se tem notícia de uma revolução proletária, camponesa e anticolonial que não tenha se inspirado no marxismo (também retomaremos esse ponto). Com admirável honestidade, o autor faz o que muitos do seu campo teórico hesitam em fazer com clareza: anunciar seu antimarxismo e reposicionar, sem rodeios, o eixo emancipatório para fora das relações capital-trabalho. Tendo estas deixado de ser centrais, poderiam coexistir com emancipações diversas que, por sua vez, lhe seriam autônomas, como defende Boaventura de Sousa Santos em obras como “Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade”.

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O autor retoma o raciocínio para concluir que a crítica marxista à economia política não abrangeria o que chama de “colonialidade do poder”, pois “sendo o marxismo um pensamento eurocêntrico e moderno, talvez, por isso, ele tenha dificuldades de romper com a colonialidade do ser, do saber e do poder, estabelecendo o seu foco apenas no sistema econômico (capitalismo) do processo civilizador moderno”. Da Inglaterra Vitoriana à América Latina do século XX, as acusações de economicismo, eurocentrismo e reducionismo continuam tendo um capítulo especial nos manuais antimarxistas.

O raciocínio é falho e se afunda cada vez mais no pântano das caricaturas construídas pelo próprio autor. O maior legado de Marx e Engels não foram as – acertadas – análises do capitalismo de seu tempo, bem diferente do capitalismo do nosso (cujas bases para a compreensão também foram fornecidas por ambos), e sim o método do materialismo histórico e dialético. Ser ortodoxo a ele é exatamente o que torna possível que a teoria marxista se mantenha em permanente movimento, compreendendo as tendências e formações históricas que o capitalismo assume, inclusive na periferia do planeta.

Em “Sobre a contradição”, Mao Zedong, a partir de Hegel, ensina que o universal não existe sem que se expresse no particular, tal qual este não existe sem o universal. Há, portanto, uma universalidade compreendida na contradição do nosso tempo histórico, conforme a dialética hegeliana do senhor e do escravo. O que isso significa? Que hoje, principalmente, temos uma universalidade – a do capitalismo, do antagonismo de classes, da insolubilidade das relações entre capital e trabalho, etc – que se expressa de forma diferente nos mais diversos particulares (gênero, raça, orientação sexual), seja no centro ou na periferia do mundo. Tais recortes, notoriamente, devem ser considerados, mas sem que se perca de vista a universalidade que une, por exemplo, uma mulher trans a um trabalhador negro, a um indígena ou a um quilombola.

Por isso chama a atenção que o professor Uribam insista em caricaturas antimarxistas como a seguinte: “o proletariado é entendido ou como uma essência revolucionaria em si; não como um portando de todos os vícios e desejos da sociedade capitalista (individualista, racista, machista, alienado, subalterno), ou como uma tábula rasa em que tudo que é preciso para fazer acontecer a revolução pode ser colocado em sua consciência, que, por conseguinte, virará ação política revolucionária”.

A ideia de que não há vícios e contradições na classe trabalhadora não deixa de ser mais um espantalho antimarxista. É, a propósito, uma concepção vulgar e equivocada de marxismo que faz o autor se referir a uma suposta “essência revolucionária” e sugerir que a revolução ocorreria da mesma maneira que se prepara um macarrão instantâneo. A própria noção de “essência” ou “natureza humana” deve ser, no mínimo, considerada histórica, ou melhor: construída historicamente a partir da luta política e da consolidação e enraizamento de ideias-força que precisam ganhar as massas para que se tornem revolucionárias.

É certo que o novo mundo não brota do ar ou de uma reação química espontânea, mas nasce das entranhas do velho, carregando consigo todas as suas vicissitudes e contradições por um bom tempo. Se Lenin explicou que o cadáver do velho mundo não desaparece do nada, mas fica em decomposição ao ar livre, exalando cheiros e influências para o novo mundo que está sendo construído, Marx, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, escreve que é exatamente em épocas de crise revolucionária que os fantasmas do passado são conjurados, com seus nomes emprestados junto com suas palavras de ordem e figurinos. Se o capitalismo nasceu do exaurimento produtivo e das contradições do feudalismo, tendo este sucedido o escravismo pelas mesmas razões, ambos convivendo por séculos com aspectos das formações sociais e econômicas anteriores, por qual razão a classe trabalhadora não carregaria em si as contradições e marcas de seu tempo, inclusive após se tornar classe dominante?

A pouca assimilação do materialismo histórico faz com que o professor Uribam não enxergue o individualismo, o racismo, o machismo, etc, como expressões particulares de determinada universalidade. Compreender o contrário é ignorar a totalidade das relações sociais – uma das principais ferramentas do método marxista – e acreditar, por exemplo, que é possível superar o racismo – nascido não do plano das ideias, mas do bojo do imperialismo e do colonialismo, fases do processo de acumulação capitalista – sem superar as relações produtivas do capitalismo.

Aqui um ponto interessante. O professor Uribam escreve que o desenvolvimento das forças produtivas, ou quarta revolução industrial, teria extraído da classe trabalhadora seu potencial revolucionário na medida em que “cada vez mais vai se deslocando do processo de produção de mais-valia e se transformado em indivíduos pejotizados, uberizados, agentes do precariado, fast-foodizados, ifoodizados”. Estaríamos diante de uma nova categoria de lumpemproletariado, que, nos dizeres e Marx e Engels, não constituem um agente revolucionário.

O professor, então, retorna à acusação de que o marxismo teria se tornado uma profissão de fé. Esquece-se, contudo, que Marx já previra a inédita e espantosa resiliência do modo de produção capitalista, capaz de se adaptar a suas crises cíclicas e reformular suas matrizes produtivas. O pós-fordismo ou neoliberalismo, atual formação histórica do capitalismo, pode ser compreendido a partir dessa chave, onde a base produtiva da acumulação se desloca para a crescente financeirização, avanço nos fundos públicos, implosão de soberanias nacionais e, consequentemente, ataque contra estados de bem-estar social e direitos trabalhistas e previdenciários (a financeirização e o achatamento salarial, por sinal, são enumerados por Marx como contratendências que o capitalismo adota em resposta à queda tendencial de suas taxas de lucro).

E aqui chegamos onde o professor Uribam se torna mais explícito. Ele diz: O processo de produção, valorização e reprodução da acumulação do capital, bem como as crises nas relações das forças produtivas, não levaram, até o momento, à revolução socialista em nenhuma parte do mundo”. Depois, arremata que em lugar nenhum a classe operária chegou ao poder e nem os meios de produção foram socializados, de modo que “quantos séculos serão necessários para que se possa chegar à conclusão que o referencial teórico político marxista tem algo de equivocado, limitado ou em desacordo com a realidade? Quando um referencial teórico deixa de ser um referencial e vira uma crença, que tipo de limites e prejuízos pode trazer para os desafios históricos postos pela realidade?”.

Se algo está em desacordo com a realidade, definitivamente não é o referencial teórico e político marxista. Nesse sentido, o professor Uribam abstrai que o século XX foi marcado por processos revolucionários no terceiro mundo, solo exatamente em que postula haver a infertilidade do marxismo. Para sustentar sua tese, é necessário ignorar rupturas revolucionárias como as ocorridas na Rússia (1917), Vietnã (1945), Iugoslávia (1945), China (1949) e Cuba (1959), todas tendo como ideia-força, durante e/ou após a vitória dos revolucionários, o marxismo-leninismo – ou o marxismo da época do imperialismo, como bem definiu Mao, teórico e líder de uma dessas revoluções.

Ho Chi Minh, líder revolucionário vietnamita, afirmava que o êxito das lutas de libertação nacional do Vietnã foi possível tão somente quando o nacionalismo anticolonial se encontrou com o marxismo-leninismo, fornecendo-lhes o arcabouço teórico e político que precisavam para quebrar o jugo colonial francês, japonês e norte-americano. O mesmo concluiu Mao Zedong e Fidel Castro quanto aos respectivos processos revolucionários que lideraram. Surpreende, portanto, que o professor Uribam não leve em conta que o grosso das lutas de libertação nacional do século XX em África, Ásia e América Latina teve como motor teórico o marxismo que tão virulentamente ataca. Veja-se, a título de exemplo, os embates anti-imperialistas na Argélia, Angola, Burkina Faso, Cuba, Laos, Vietnã e China – quanto à Terra do Meio, convém destacar que não há “epistemologias da Ásia”, e sim socialismo com características chinesas.

Também causa espécie a completa desconsideração do autor quanto ao processo civilizatório que as lutas anticoloniais e o bloco socialista impuseram às potências centrais e ao mundo ocidental. Por causa delas, foi necessário que as democracias liberais fizessem concessões, instituindo o mesmo estado de bem-estar social e direitos trabalhistas e securitários que começaram a ser destruídos com maior rapidez exatamente quando o socialismo soviético ruiu em 1991, criando condições para o surgimento e consolidação de teorias que apregoavam o “Fim da História” e doutrinas que, na ressaca da Guerra Fria, ainda insistem em apregoar o sepultamento do marxismo.

É desse contexto que surge também a precarização das condições de trabalho trazida pelo professor Uribam como prova da inutilidade do marxismo nos dias de hoje. É bom frisar que tal precarização e seu novo lúmpen são expressões da atual formação histórica do capitalismo advinda da crise do fordismo. Para o autor, não há luta política que torne possível a retomada da cidadania salarial em favor dos trabalhadores precarizados, pois trata-se de segmento que, não tendo qualquer condão revolucionário, se depararia com sua realidade histórica como algo fatal e incontornável.

Assim, inexistindo margem para a luta política que reverta a condição de precariado, a história chega ao seu fim com o capitalismo e a democracia burguesa, estágio derradeiro da civilização humana. Restaria, então, recorrer à emancipação não pela luta de classes, mas pelo enfrentamento às “outras mais-valias”, para utilizar uma expressão presente na obra de Boaventura de Sousa Santos.

Vamos ao mundo real. Enquanto a Espanha iniciou o ano de 2022 revisando sua reforma trabalhista, decisões judiciais ao redor do mundo vêm reconhecendo direitos a trabalhadores precarizados. Foi nesse contexto que o ex-presidente Lula afirmou que, caso eleito, pretende revogar a reforma da CLT, uma das responsáveis pelos altos níveis de desemprego e informalidade. Ainda no Brasil, entregadores de aplicativo saíram às ruas em protesto durante a pandemia, mostrando predisposição à organização política. Em outras palavras: a gaveta da história, diferente do que formula o professor Uribam, não foi trancada com a chave dentro.

Ao reivindicar o jargão de que “tudo que é sólido desmancha no ar” para sepultar a luta política pela melhoria das condições de vida da classe trabalhadora e mesmo para a revolução socialista, o autor acaba não percebendo que está, ele próprio, preso na mesma ortodoxia da qual acusa o marxismo. Para registro, é exatamente no socialismo chinês onde se está ampliando a passos largos a malha de proteção social, com aumento dos salários bem acima da produtividade e franca ampliação de serviços públicos.

Quando o professor Uribam pergunta “quantos séculos serão necessários para que se possa chegar à conclusão que o referencial teórico político marxista tem algo de equivocado, limitado ou em desacordo com a realidade?”, desconsidera que, desde a Revolução Puritana em 1640, primeiro evento histórico em que as formas políticas feudais foram rachadas, até a conformação global e hegemônica do capitalismo e da democracia burguesa – qual seja, em 1991, com o fim do bloco soviético -, foram quase quatro séculos de idas e vindas, fluxos e contrafluxos naturais de processos históricos. Também não leva em conta que da Revolução Francesa, principal revolução burguesa, para este marco foram mais de 200 anos, período em que chegou a ocorrer a restauração de monarquias absolutistas e até das fronteiras pré-revolucionárias.

Se analisarmos o tempo que durou o socialismo soviético, teremos apenas 70 anos de uma experiência com erros e acertos próprios de um desafio que não se encerrou na revolução, mas prosseguiu na tentativa de construir e consolidar o poder revolucionário em um país atrasado que acabara de sair de uma guerra mundial e, em seus primeiros anos, foi cercado por mais de uma dúzia de forças imperialistas e contrarrevolucionárias. O socialismo chinês, por sua vez, passou das sete décadas, ao passo que Cuba resiste ao imperialismo estadunidense há seis – sem falar nas mencionadas lutas de libertação nacional que atravessaram o século passado. Sem Revolução Francesa, não haveria Comuna de Paris, Revolução Russa e emancipação das colônias. Não caberia à classe trabalhadora o papel histórico de finalizar o que as revoluções burguesas começaram. É com razão que liberais e conservadores costumam, ainda que pelos piores motivos, traçar o elo histórico entre jacobinos e bolcheviques. É essa dimensão do processo histórico que falta à análise do professor Uribam.

Realce-se: não há dúvidas que há um marxismo ocidental, ortodoxo e academicista. Mas não só. Ao voltar suas forças contra essa caricatura de marxismo, o autor fecha os olhos para as ricas experiências revolucionárias do século XX que comprovam seu vigor e atualidade, sendo a Revolução Russa exatamente a revolução que exortou as colônias a romperem os grilhões das metrópoles por meio de lutas de libertação nacional, exitosas também no sentido de constranger o centro do capitalismo a se civilizar dentro de suas fronteiras.

A opção pelo socialismo em algumas das principais revoluções proletárias de nossa época ocorreu exatamente para enfrentar os problemas e os dilemas sociais para os quais o capitalismo colonial, o capitalismo neocolonial e o capitalismo dependente não se colocam nem podem se colocar. A tradição teórica e política do marxismo, como visto, serviu não apenas de combustível às lutas de libertação nacional no chamado terceiro mundo, mas, colocando o imperialismo à mesa, tornou possíveis as duas mais proeminentes revoluções socialistas na periferia do capitalismo: as da Rússia e China. Hoje, torna possível o enfrentamento ao imperialismo neocolonial que empurra os países periféricos à desindustrialização e ao endividamento.

O vigor da China nos dias atuais, pondo em xeque a outrora inabalável hegemonia dos EUA, acaba, ironicamente, por conferir um caráter eurocêntrico às acusações de que o marxismo seria uma “epistemologia eurocêntrica e eurocentrada”. Mas se há um lugar em que não houve revolução socialista, foi justamente na Europa. A moda intelectual que nos idos dos anos 90 anunciou o enterro do marxismo continua resistindo à realidade de que, enquanto houver capitalismo, o marxismo permanecerá não só necessário, mas fundamental – isso se o propósito for realmente o de emancipar os povos de todo o mundo e dar fim à pré-história da humanidade.

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