sábado, 31 de janeiro de 2015

Política

Regulação da Mídia

Regulação da mídia não é censura, dizem especialistas

Nos EUA e na Europa, regras para o funcionamento de emissoras de rádio e televisão são vistas como garantia para a liberdade de expressão e a pluralidade de opiniões
por Deutsche Welle — publicado 29/01/2015 21:06
Marcelo Camargo/Agência Brasil
Berzoini
O ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, quer audiências públicas para debater o tema
A regulação da mídia, um dos temas que a presidente Dilma Rousseff prometeu defender no seu segundo mandato, é alvo de resistência no Congresso Nacional. Diretrizes de controle de formação de grupos midiáticos estão previstas na Constituição, mas até hoje não foram regulamentadas por lei.
Dezenas de propostas que tratam do assunto tramitam no Senado e na Câmara dos Deputados desde 1988. Líderes de partidos, como PMDB, PSDB e DEM, se opõem à regulação sob o argumento de que ela representa censura. Mas, em países europeus e nos Estados Unidos, a regulação da mídia é considerada essencial para a garantia da liberdade de expressão.
"A mídia precisa ser protegida por uma legislação que trate do direito fundamental de cada indivíduo de se expressar livremente", afirma Thomas Hoeren, professor do Instituto para Informação, Telecomunicações e Direito de Mídia da Universidade de Münster, na Alemanha. "A regulação existe para ajudar a mídia, não para reprimi-la."
Na União Europeia, regras para o setor audiovisual são válidas para todos os Estados-membros. "A existência delas tem garantido um alto nível de proteção. A liberdade e o pluralismo devem ser respeitados", disseram à DW Brasil especialistas da Comissão Europeia, em Bruxelas.
Segundo a Comissão, desde a adoção de uma diretriz sobre difusão televisiva em 1989, o número de canais de TV aumentou para mais de 8,8 mil na Europa. "A regulação cria condições equitativas para o surgimento de novos meios de comunicação, preservando a diversidade cultural."
O ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, pretende convocar audiências públicas sobre o tema a partir de março. A proposta do Executivo, delas resultante, seria depois enviada ao Congresso Nacional.
A regulação da mídia é uma bandeira antiga do PT. Sob forte pressão, um projeto teria sido elaborado ao final do governo Lula, sob a coordenação do ex-ministro Franklin Martins, mas nunca se tornou público.
Em sua página no Facebook, Dilma voltou recentemente a defender a regulação do funcionamento da mídia: "Não tem nada a ver com controle do conteúdo ou censura." Um vídeo produzido pelo Planalto ressalta que não se deve confundir a garantia de liberdade de expressão com a "ausência absoluta de regulação".
Propriedade cruzada
Para o professor João Feres, coordenador do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (Lemep) da Uerj, o principal papel da regulação é limitar a propriedade cruzada dos meios de comunicação, ou seja, não permitir que uma mesma empresa controle várias mídias.
"Também é importante limitar os monopólios territoriais. Não poderia haver dois canais de televisão pertencentes a uma mesma empresa atuando na mesma região, como vemos hoje", observa.
Segundo o jornalista Venício Lima, professor de comunicação da UnB e autor de vários livros sobre mídia e política, a propriedade cruzada leva a um quadro de concentração e de consequente formação de monopólios e oligopólios.
"Isso significa a corrupção da opinião pública. Poucos grupos controlam o debate público, o que prejudica o espaço de representação das vozes na sociedade", critica.
Para o especialista, a resistência existe por várias razões. "Talvez a mais óbvia seja que, no Congresso, existe um percentual muito grande de parlamentares que têm vínculos diretos com as concessões do serviço público de audiovisual", afirma.
Apesar de a Constituição proibir que deputados e senadores detenham veículos de rádio e televisão, os congressistas conseguem comandar as concessões de forma indireta. Proibidos de ocupar cargos de direção, muitos nomeiam parentes ou se tornam sócios de empresas midiáticas.
Nos Estados Unidos, desde 1934 é proibido que uma mesma empresa controle veículos impressos e eletrônicos na mesma região.
Pluralidade de opiniões
Além do controle sobre a formação de grupos de comunicação, uma norma constitucional também prevê a "promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente". Propostas para regulamentação desse artigo tramitam desde que a Constituição foi promulgada.
"O Estado também deve apoiar iniciativas de mídia que, sozinhas, não têm condições de sobreviver no mercado, mas que são fundamentais para a pluralidade de opiniões, a exemplo do que faz a Europa", diz Lima.
A regulação do setor teria, inevitavelmente, consequências no conteúdo. "Se você regionalizar a produção jornalística, cultural e de entretenimento, o conteúdo será obviamente alterado, mas de forma positiva", diz o jornalista.
Outro ponto polêmico é a regulamentação do direito de resposta, que não é previsto no país desde o fim da Lei de Imprensa de 1967. "As decisões judiciais variam e, muitas vezes, prejudicam as pessoas atingidas", afirma Lima.
O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) vem trabalhando num projeto de lei de iniciativa popular sobre a regulação do setor de comunicação social. A entidade precisa colher 1,3 milhão de assinaturas para enviar o projeto da chamada Lei de Mídia Democrática ao Congresso.
  • Autoria Karina Gomes

A floresta encantada de São Paulo

IMG_1087Um rapaz caminha pelo asfalto do chamado Baixo Augusta, vestido apenas de sunga e revestido por uma fantasia que simula um chuveiro com box-cortina.
IMG_3061Uma criatura das florestas, rosa-choque, desfila num unicórnio-de-troia e espalha poeira azul celeste pelo matagal.
Uma imensa fila-de-paulista se arrasta que nem cobra pelo chão para entrar no paraíso semi-artificial e extra-oficial que já chamamos de Parque Augusta. Outra fila-de-paulista, consideravelmente menor, se arrasta no sentido oposto, para sair do parque que ainda não existe, mas já existe. O parque existe, em tons de verde-natureza, rosa-choque, azul-cintilante e cinza-concreto. E está cheio, lotado, abarrotado de gente neste domingo.
Trata-se de uma festa de aniversário: 461 anos da cidade de São Paulo, essa senhora sadomasoquista passivo-agressiva que na mesma manhã o diário decadente Folha de São Paulo decretou estar na UTI (por decerto alvejada de tiros, facadas e golpes de tacape por políticos não-tucanos, de acordo com o jornal velhote).
IMG_1114Não é só uma festa – são muitas, todas promovidas por ninguém (na medida em que você, eu e todo mundo possamos ser chamados de “ninguém”).
Paulistas e visitas estão exultantes, algo atrapalhados. Ainda não sabem se divertir direito – mas querem, e como querem.
(Dinâmica de paulista – o primeiro paulista forma fila – o segundo paulista se acha ~vip~ e fura a fila – a terceira paulista estressa com o segundo paulista que furou a fila formada pelo primeiro paulista – de braços dados, os três vão ao show do Criolo na praça Roosevelt para gritar que não existe amor em SP.)
Vestem-se de índios. Cospem para cima. Fazem a dança da chuva onde há seca transitória (enquanto as antenas de TV encenam a dança da seca onde não para de chover). Deixam barbas e sovacos crescerem.
Reclamam.
Reclamam (“tem muito bicho-grilo!”, reclama um bicho-grilo).
Reclamam (“só tem veado aqui!”, reclama outro, esquecido de que o parque nada mais é que uma amostra pequenina do mundo todo – ou confundindo unicórnio com veado – ou confundindo floresta com boate – ou chuva com seca).
Reclaaaaaaamaaaaaaaam.
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Mas se pra fazer sucesso, pra vender disco de protesto, todo paulista tem que reclamar, eu também vou reclamar. Há música no aniversário de nenhum ano no inacreditável e verdíssimo parque que se escondia entre fumaças no coração da 461tona.
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IMG_1112É o bloco pré-carnavalesco Tarado ni Você, que só toca e canta músicas de Caetano Veloso, o papai-tropicália – um bloco só e 100% caetenizado parece pesadelo, mas é só a realidade ~hipster~.
Nas redes sociais, integrantes da classe musical paulista (e/ou brasileira, braZileira) aproveitam o aniversário da cidade que os pariu para reclamar, reclamar, reclamar – “político é tudo ladrão”, grita um, berram dois, cala-se zangadíssima toda uma multidão de artistas-de-escritório.
DJ Marky Eduardo BiD são dois que andam arretados com a igualdade ladrona dos políticos – talvez irritados porque o movimento artístico-músico-culturo-político incontrolável que toma o Parque Augusta, o Minhocão, a praça Roosevelt, o largo da Batata, o chão sujo-sagrado da Biblioteca Mário de Andrade prescinde de oráculos musicais, de líderes estéticos, de puxadores de som e de manada. Apenas com um bloco cover de (perdoai-os, pai) Caetano abrindo os braços sobre nós, a moçada paulista desacostumada de sacudir os quadris já faz um verão.
Pode ser o Movimento Sem Teto, o Fora do Eixo (alô, Rodrigo Savazoni!), o Movimento Passe Livre, a Zona Autônoma/Área de Proteção Ambiental autodeclarada do Parque Augusta, as Mães de Maio, a Marcha das Vadias, as Bichas Desunidas da Reclamolândia, o Food Truque, o Bloco Fúnebre dos Jornalistas-Ainda-Mais-Arrogantes-Que-os-Patrões – você pode odiar este ou aquele movimento coletivo – mas em 2015 o coletivo dos coletivos que derrama a(s) cidade(s) produz um contínuo que prescinde da sua (minha) opinião – como o movimento cultural prescinde dos artistas oraculares – e o papel surrado prescinde da lengalenga diária de reclamação dos donos de mídia, dos jornalistas, dos-técnicos-de-qualquer-futebol, de mim e de você.
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(Os unicórnios somos nozes: foto de Zeca Gerace, do Estúdio Xingu, que formulou a intervenção e o lema #SonhaSP)
IMG_3062A floresta encantada de sacis, corujas, pirilampos & unicórnios rosa-choque pode se chamar São Paulo, se assim você o quiser – e parece que você (eu) (nós) quer(emos). A gente vai continuar reclamando – reclamando – reclamando, porque os ventos de mudança fazem mesmo os mais modernos marinheiros mareados vomitarem aliens reacionários (reacionarismo, resistência, reação às mudanças, queixume, chorume). Mas esta cidade já não é a mesma, e só Carolina não viu – se é que ela não viu.
Entre “A Banda” paroquial de Chico Veloso e a “Carolina” depressiva de Caetano Buarque, os Unidos da Eterna Caetanidade preferem o forró “Esperando na Janela” de Targino Gondim, que passa por cima de Gilberto Gil, atravessa o ex-secretário municipal de Cultura Juca Ferreira e diz vem-quente-que-eu-tô-fervendo aos unicórnios rosa-choque de 25 de janeiro de 2015.
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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)


Xadrez na eleição para a presidência da Câmara

PT conta com o PSDB para vencer o enrolado aliado peemedebista Eduardo Cunha
por André Barrocal — publicado 31/01/2015 09:37
Agência Brasil
Eduardo Cunha
Mesmo na seara peemedebista, não há dúvidas de que Cunha vai criar problemas
Dilma Rousseff venceu um candidato do PSDB e uma do PSB na campanha presidencial, mas é com o apoio dos dois partidos que o PT espera impedir um cenário tido entre alguns ministros como indesejado na eleição para o comando da Câmara dos Deputados no domingo 1. Ingenuamente ou não, petistas acreditam que o perfil do candidato favorito, o líder do PMDB, Eduardo Cunha, pesará mais no voto de tucanos e pessebistas do que a vontade de prejudicar o governo. E que isso ajudará derrotar o “aliado”.
Acham mais: que a falta de água em São Paulo criará tanto embaraço ao governador Geraldo Alckmin, um dos presidenciáveis do PSDB para a eleição de 2018, que não interessaria ao partido acrescentar ao ambiente político do País um elemento de alto potencial desestabilizador, como seria a vitória de Cunha. Alckmin tinha, aliás, uma reunião marcada com Dilma nesta sexta-feira 30, a só dois dias da eleição na Câmara, para discutir a crise hídrica paulista.
Cunha é um parlamentar capaz de bagunçar a República com seu currículo, seu estilo ousado e seus planos, razão pela qual discretamente ministros de Dilma Rousseff trabalham contra ele. É provável que seja alvo de um processo de investigação por parte do Ministério Público Federal graças a indícios surgidos na Operação Lava Jato. Um integrante do governo com acesso parcial ao que já foi apurado pela Operação garante: Cunha está implicado. E ficará mais se Fernando Baiano, recolhedor e entregador de dinheiro sujo no PMDB, topar uma delação premiada.
O líder pode não ter qualquer envolvimento, como ele sustenta, mas é o preferido de deputados que temem ser cassados por vínculos com doleiros e trapaças identificados na Lava Jato. História contada por uma parlamentar que diz que votará no peemedebista: Cunha já foi procurado por colegas que andam com medo de cassação e ouviu um pedido de apoio para ajudá-los a se salvar, caso chegue a presidente da Câmara. A resposta teria sido positiva.
O candidato da dupla PSDB-PSB, Julio Delgado, pessebista de Minas, representa o oposto. Delgado foi o relator do processo no Conselho de Ética contra André Vargas, ex-petista cassado em dezembro por ligações com o doleiro Alberto Youssef. Seu parecer foi implacável. Não é de se esperar que, à frente da Câmara, resolva se tornar flexível.
Delgado entrou na disputa estimulado pelo senador mineiro Aécio Neves, de quem é amigo. Seu marqueteiro na empreitada é um velho colaborador de Aécio, Paulo Vasconcelos. A candidatura tinha o objetivo de manter a aliança entre PSDB e PSB firmada na eleição presidencial, evitando que setores pessebistas pudessem trabalhar por uma reaproximação com o governo petista.
Ele não tem, porém, chances reais de vitória. Conta com poucos partidos a seu lado. O nome com alguma condição de bater Cunha é o de Arlindo Chinglia, do PT. Em caso de segundo turno entre Cunha e Chinaglia, a dobradinha PSB-PSDB teria de optar entre um e outro. É aí que reside a esperança petista. Mesmo com voto secreto, seria possível ter alguma noção sobre o destino, no segundo turno, dos votos dados a Delgado no primeiro.
Um deputado do PT que faz campanha por Chinaglia e diz ter conversado com setores do PSDB nos últimos dias ficou animado com um movimento atribuído pela imprensa à cúpula tucana. Aécio, Alckmin, Fernando Henrique e José Serra teriam barrado a tentativa de deputados do partido de trocar Delgado por Cunha já. Segundo um parlamentar eleitor de Cunha, não importa a ação da cúpula tucana. O peemedebista está certo de que terá a maioria dos votos do PSDB.
“Eduardo Cunha é um problema para todo mundo, não só para o governo”, diz o deputado petista. “A oposição sabe qual é o estilo dele. Na presidência da Câmara, ele será uma aventura que pode terminar como o Severino Cavalcanti”. Severino elegeu-se presidente da Casa contra o governo e com o apoio da oposição em 2005 e durou apenas sete meses no cargo. Saiu sob acusação de receber “mensalinho” para permitir o funcionamento de restaurantes.
Mesmo na seara peemedebista, não há dúvidas de que Cunha vai criar problemas. Uma vez na Presidência da Câmara, terceiro posto mais importante da República, seus planos incluem aumentar seus tentáculos no Estado brasileiro, tomar o controle do PMDB e implodir a aliança federal do partido com o PT.
Cunha estará mais forte também para praticar um de seus hobbies, defender interesses privados contrariados. Um exemplo recente. No ano passado, assumiu a relatoria de uma medida provisória destinada a resolver um antigo impasse sobre a tributação de lucros empresas no exterior. Mudou algumas das regras propostas pelo governo. Dilatou de cinco para oito anos o prazo de pagamento de impostos atrasados e cortou pela metade o valor da parcela inicial. O Tesouro Nacional arrecadaria menos do que poderia. Mas as empresas economizariam um bom dinheiro - e bem às vésperas das eleições. Consta que ficaram tão felizes, que separaram alguns milhões para financiar a campanha de indicados por Cunha. Fala-se em algo como 400 milhões de reais.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Entrevista

A Grécia na hora do voto de protesto

Segundo Stan Draenos, um governo liderado pelo Syriza poderá desencadear um “efeito dominó” para incluir a FN de Marine Le Pen. E outros mais...
por Gianni Carta publicado 24/01/2015 09:29
Melaos Michalatos / AFP
Tsipras
Tsipras tem o mérito de promover o debate, mas ainda tem de mostrar a que vem, diz Draenos
Os extremismos se assemelham. É o que ficará claro se o Syriza conseguir formar um governo. Quase certa é a vitória dessa legenda de extrema-esquerda nas legislativas antecipadas de domingo 25, salvo uma grande surpresa. A previsão é de numerosos observadores, inclusive o greco-americano Stan Draenos, analista político e biógrafo do ex-premier socialista Andreas Papandreou (1919-1996). Medidas de austeridade impostas pela Troika (Banco Central Europeu, UE e FMI) não funcionaram durante seis anos de recessão. A Grécia sofreu uma queda de produtividade de 25%, tem um nível de desemprego de 26%. Pelo menos 30% da população está mergulhada na miséria.
Alexis Tsipras, líder do Syriza, pretende permanecer na Zona do Euro. No entanto, seu programa econômico de inspiração keynesiana não poderá ser implementado “sem violar os acordos de políticas econômicas selados com os credores”, diz o analista. Draenos leva em conta uma União Europeia, onde o mercado livre é o alvo abençoado pela chanceler alemã, Angela Merkel. Nem por isso ele tem certeza de que Tsipras é a solução.
Outro obstáculo: caso o Syriza não consiga formar um novo governo em três dias, a segunda legenda mais votada, certamente a conservadora Nova Democracia, do atual premier Antonis Samaras, tentará forjar outra aliança. Se também a ND falhar, será a vez do terceiro colocado, o partido social-democrata To Potam (O Rio), ou a legenda neonazista Aurora Dourada (Chrysi Avgí). Nesse contexto, o “efeito dominó”, observa Draenos, inclui extremistas de esquerda e direita Europa afora. Exemplo: a Frente Nacional e a Frente de Esquerda, na França. Ambos os partidos apoiam o Syriza. Contradição? Nada disso, sustenta Marine Le Pen. “Trata-se de o povo reassumir a luta contra o totalitarismo da UE.” Para Le Pen, embora o Syriza queira manter o euro, o importante é que eles se opõem às políticas de austeridade da UE.
CartaCapital: Como vê Tsipras como político?
Stan Draenos: Pouco mais de 40 anos, Tsipras tem uma voz sedosa, é articulado, autoconfiante e simpático. Mas não é carismático, imponente. Ainda tem de demonstrar capacidades de liderança. Sua inabilidade, ou falta de vontade, de confrontar a facção eurocética de sua legenda levanta questões para os eleitores indecisos e críticos de uma vitória convincente do Syriza.
CC: Nesta época em que legendas de extrema-direita como a Frente Nacional, na França, estão angariando cada vez mais votos, como explicar o fato de o Syriza ser o favorito, e não a Aurora Dourada?
SD: A ligação da Aurora Dourada com a violência é repulsiva para a maioria dos gregos. Além disso, com vários dos seus deputados na prisão por acusações criminosas, a legenda teve dificuldade em realizar uma eficaz campanha eleitoral. Seu apoio eleitoral parece ter caído para o núcleo de base de cerca de 5%. Por outro lado, o Syriza tem raízes na exposição progressista dos socialistas, que surgiu com a queda da junta militar em 1974. Essa linha atrai um público muito maior.
CC: Tsipras não quer a Grécia fora da Zona do Euro. Mas seu programa rema contra a austeridade imposta pela Troika. É possível a Grécia manter o euro e, ao mesmo tempo, implementar políticas keynesianas?
SD: O Syriza ainda não explicou de forma convincente onde vai encontrar os fundos para os 12 bilhões de euros que colocariam um fim na austeridade, como promete aos eleitores. No atual contexto da UE, o Syriza não pode implementar políticas keynesianas sem violar os acordos de políticas econômicas selados com os credores. Mas, mesmo se pudesse, o keynesianismo é uma proposta questionável quando um país faz parte de uma comunidade econômica de livre mercado. Como Andreas Papandreou salientou décadas atrás, um estímulo keynesiano à demanda dos consumidores seria absorvido pelas importações de outros países produtores de bens que os gregos querem e não são oferecidos pela economia grega. Para ser eficaz, uma política keynesiana teria de integrar um programa geral da UE.
CC: Thomas Piketty, defensor de políticas keynesianas, disse que o problema não é Tsipras, e sim Angela Merkel.
SD: A Espanha sofreu um período mais longo de nível elevado de desemprego. De qualquer forma, esse fenômeno é a prova mais flagrante de que acabou a chamada vitória do “capitalismo” sobre o “socialismo real” da União Soviética, bem como sobre a social-democracia. Algo está errado em um sistema econômico que não pode fornecer níveis adequados de emprego. Piketty talvez tenha razão ao dizer que Merkel é o problema. Mas ainda tenho de ser convencido de que Tsipras é a solução. Dito isso, o Syriza pelo menos conseguiu dar início a um novo debate.
CC: A questão parece ser com quais siglas o Syriza formará uma aliança.
SD: Não é questão de pesquisas, mas das relações entre as legendas. Tsipras jamais colaboraria com o socialista Evangelos Venizelos, do Pasok. O Syriza o demoniza. Por sua vez, Stavros Theodorakis, do To Potami, está aberto a falar tanto com o Syriza quanto com a Nova Democracia. No entanto, Theodorakis se oporia às posições declaradas sobre a dívida do Syriza: as veria como perigosas para a permanência da Grécia na Zona do Euro. O Syriza não aceitaria comprometer sua estratégia em relação aos credores da Grécia, a fim de ganhar entre cinco e dez assentos adicionais para obter maioria parlamentar. O Syriza também rejeitou alianças pós-eleitorais com todas as siglas implicadas em políticas de austeridade nos últimos seis anos. E Tsipras tem feito apelos simbólicos para obter o apoio de dois partidos anti-UE, como o velho Partido Comunista e da extrema-esquerda Antarsya (Revolta). Tsipras, na verdade, quer minar a base eleitoral dessas agremiações. Diante da perspectiva de se tornar o primeiro partido, mas sem cadeiras suficientes para ganhar um voto de confiança, Tsipras anuncia aos eleitores a necessidade de votar no Syriza para a legenda obter maioria parlamentar. Se a tática der certo, o Syriza poderá angariar de 36% a 38% do voto popular. E, assim, ganharia o “bônus” de 50 assentos garantidos ao primeiro partido pela lei eleitoral da Grécia. No entanto, as pesquisas indicam que isso vai ser difícil, embora não impossível. Existe, é claro, a possibilidade de um segundo turno. Isso a despeito de a vasta maioria querer evitá-lo. Motivo: um segundo turno causaria mais danos para a economia. Haveria também um tremendo impacto na capacidade do país em lidar com as obrigações da dívida, em julho e agosto.
CC: Acredita em um efeito dominó desencadeado pelo Syriza em países como a Espanha, onde o movimento Podemos está à frente nas sondagens das eleições legislativas deste ano, e outras siglas, como a Frente de Esquerda, na França, o Die Link na Alemanha etc.?
SD: De fato, uma vitória do Syriza mobilizaria outras forças políticas europeias opostas à austeridade imposta pela Alemanha. No entanto, nesse quadro há legendas direitistas ultranacionalistas e eurocéticas, como a de Marine Le Pen. Governos de centro-esquerda na França e na Itália não aprovam a austeridade imposta pela Alemanha, mas não parecem se solidarizar com o programa do Syriza. Esse programa inclui não só uma considerável amortização da dívida, mas também a revogação de reformas públicas e no setor privado, e um relaxamento da disciplina fiscal. Tsipras cita possíveis vitórias do Podemos nas eleições espanholas no fim de 2015 como prova de mudanças na Europa. Contudo, goste-se ou não, a Grécia não tem acesso aos mercados financeiros. Depende dos credores da Troika.
CC: Mas o eleitor de Tsipras não difere daquele de Le Pen?
SD: Na Grécia, o voto anti-imigrante é, em grande parte, da direita. A “conexão” entre o Syriza e a FN, na França, baseia-se na crescente oposição do povo ao establishment. Isso se deve ao fato de as políticas europeias terem falhado nas áreas da economia e da imigração.
CC: O senhor mencionou o fato de os partidos de centro-esquerda como os de François Hollande e o de Matteo Renzi não aprovarem o programa antiausteridade do Syriza. Mas esses seguidores da “Terceira Via” de Blair desiludiram seus eleitores. Além disso, alguns críticos argumentam que o partido político, na sua acepção tradicional, está morto.
SD: O partido político pode estar “espiritualmente” morto como veículo adequado para algo que poderíamos chamar de vida política democrática. No entanto, ainda por meio dos partidos opera a democracia parlamentar, ao menos formalmente.

França

Todos à la place. Por quê?

A adesão imediata à manifestação de Paris mostra como é fácil hoje manipular uma opinião pública tolhida para o exercício do espírito crítico
por Mino Carta publicado 27/01/2015 06:07
AFP
Hollande
François Hollande administra um país dilacerado entre os que clamam pela "guerra ao terror" e aqueles que querem segurança sem comprometer as liberdades civis
Perguntaria Hamlet: “Ser ou não ser?” Charlie, está claro. A personagem de Shakespeare é o paradigma da dúvida atormentada pela invulnerabilidade do efêmero. Surpreende, porém, e até espanta, a rapidez com que a larga maioria fez sua escolha. Por quê? A que se deve o imediatismo da resposta? Agir às pressas, de impulso, precipita amiúde equívocos, enganos, erros. Não seria o caso de parar para pensar?
Pois é, pensar. Explorar a faculdade que o ser humano tem de constatar sua pessoal existência. O mundo vive uma quadra de enormes incertezas e de graves conflitos, e a situação se apinha de inúmeros por quês. Por que aqui estamos a padecer uma crise econômica que poupa somente banqueiros e especuladores, aliás, a eles aproveita acintosamente? Por que o rentismo grassa enquanto o desemprego aumenta? Por que o desequilíbrio social se aprofunda em todos os cantos? Por que uma centena de multinacionais impõe sua vontade a Estados soberanos? Por que a senhora Merkel e seus banqueiros ditam as regras à inteira Comunidade Europeia e decretam a austeridade em lugar do desenvolvimento? Por que o atual presidente da UE é o ex-premier do Luxemburgo, o aprazível paraíso fiscal?
Interrogações sem conta, propostas pela circunstância. Pode-se, se quisermos, perguntar aos nossos botões por que o mundo carece hoje de poetas, ou por que pagam-se dezenas de milhões de dólares por um tubarão morto mergulhado em uma caixa de vidro cheia de formol, ou por que navegantes da internet divulgam aos quatro ventos o cardápio do seu jantar da noite anterior. Ou por que, de súbito, a humanidade concentra-se na Place de la République, de corpo presente ou em espírito, para manifestar contra o terrorismo.
O espetáculo parisiense assinala, ao mesmo tempo, o triunfo do modismo e da hipocrisia. Fácil identificar o lado de cada qual, a ser clara a desfaçatez das autoridades. Em boa parte, tem responsabilidades em relação ao terrorismo, quando não são seus instigadores, cúmplices, ou até mesmo praticantes, competentes ou não. Conseguiram o que queriam, admitamos. Juntaram o Ocidente em uma praça parisiense para ostentar os seus poderes e cuidar dos seus interesses políticos, sem exclusão de golpes baixos, ações de guerra, assaltos aos cofres públicos e terrorismo de Estado, sem contar as violações dos Direitos Humanos.
Diante deles, incitada pelas frases feitas da propaganda midiática, súcuba dos apelos da retórica globalizada, a grei automatizada. Incapaz de entender se, de pura e sacrossanta verdade, o massacre na redação do Charlie Hebdo configura um ataque sem precedentes à liberdade de imprensa, ou de expressão. Ou à liberdade na acepção total, sem qualificativos.
Resta entender o significado e o alcance das palavras. Sabemos, em primeiro lugar, ou pretendemos saber, que a liberdade de cada um acaba na liberdade do semelhante. Nem todos se dão conta disso. De qualquer forma, a liberdade proclamada pela Revolução Francesa acaba por ser de poucos se não for completada pela igualdade. Livre é realmente uma sociedade de iguais. Se há canto da Terra onde esta simbiose acontece, louvado seja quem fez o milagre. Nem se fale do Brasil, o país de casa-grande e senzala.
Outra questão diz respeito à liberdade de imprensa, que na mídia nativa conta com paladinos aguerridos. A liberdade que defendem é a de fazer o que bem entendem. Não é assim em outros países democráticos e civilizados, onde a mídia é devidamente regulamentada, para impedir, entre outros objetivos, o monopólio e o oligopólio. Na França, é certo, o Charlie Hebdo podia circular à vontade, a despeito dos seus discutíveis propósitos e de certo autoritarismo a vingar na redação. O cartunista Siné, célebre desde o fim dos anos 50, foi despedido porque suas charges não tinham a desejada agressividade e evitavam certos assuntos.
A virulência antimuçulmana, no Charlie Hebdo, não é inferior àquela dirigida contra as religiões monoteístas de cristãos e judeus. Tempos atrás, uma charge mostrava, da forma mais crua, o encontro (seria um rendez-vous?) entre a Virgem Maria e um centurião romano, com o resultado de trazer à vida quem mais, se não Jesus Cristo. Ocorre a lembrança de um Pif-Paf, a seção entregue pelo O Cruzeiro dos Diários Associados a Millôr Fernandes, por mais de duas décadas. O humorista estava disposto a contar a história fracassada de Adão e Eva no Paraíso Terrestre. Jocosa e sem vulgaridade, no traço steinberguiano de Millôr.
ACNBB protestou oficialmente, e Millôr foi despedido com a habitual pusilanimidade. Não houve manifestação na Cinelândia carioca.
Não convém ao Ocidente aceitar a ideia de que a tragédia decorre de uma ação de guerra levada a cabo por um comando bem treinado, mas é assim que pensam os fanáticos arregimentados pela Jihad. Se uma bomba um dia desses explodir, digamos, no Grand Palais, não podemos alegar o atentado contra a liberdade de expressão, como não o foi o ataque às Torres Gêmeas. O objetivo do terrorismo, de resto, é solapar a capacidade de resistência do inimigo designado, de certa maneira é semear o pânico com a humilhação do alvejado.
Não se trata, de todo modo, de buscar explicações, e sim de entender que a liberdade de expressão tem necessariamente limites, bem como a intenção de provocar, desbragada na publicação satírica. O que talvez esclareça quanto ao seu escasso êxito junto ao público francês. Nesta semana, o Charlie Hebdo saltou de uma tiragem de algumas dezenas de milhares de cópias para milhões. Também este é fruto do modismo, a contar, para a manipulação da opinião pública, com instrumentos cada vez mais capilares e eficazes. Vezos e tendências momentâneos assumem a ribalta e tomam conta da plateia de forma avassaladora. Até levá-la, se for o caso, à Place de la République.
É provável que na multidão também figurassem muitos cidadãos franceses de origem árabe, ou africana, e de religião muçulmana, impelidos pela repulsa ao terrorismo, conquanto ofendidos pela charge que visava o Profeta. Que fazer com 6 milhões de muçulmanos franceses donos de todos os direitos de cidadania? Expulsá-los em bloco? Não faltarão aqueles que aprovariam a solução com entusiasmo. Caso se trate de torcedores do futebol, a xenofobia os teria levado a não considerar o triste destino da seleção francesa, privada de muitos entre seus melhores craques.
Deste ponto de vista, o Brasil é um país resolvido, embora não isento do preconceito racial e social. Por aqui pobres e pretos vivem sob suspeita. Manda, porém, o jus soli, pelo qual somos todos brasileiros. Na França, e em toda a Europa, meta de forte migração de áreas subdesenvolvidas, a questão suscita ásperas polêmicas, mesmo porque em muitos países a tradição soletra o jus sanguinis. O sangue determina a cidadania. Eventos como o massacre que abalou o mundo vão excitar o ódio racial na França, na Europa, e alhures, em benefício da direita mais reacionária.
Quem leva vantagem? Na França, Marine Le Pen, que se fortalece como candidata à Presidência da República. Na Itália, crescerá a Lega. Na Alemanha, o Pegida, grupo ultradireitista. Rajoy, na Espanha, reforça seu poder. De todos os líderes, Netanyahu é aquele que, ao carregar sua campanha eleitoral até Paris, exibe com maior clareza seus propósitos. E a orquestração bem trabalhada acaba por acentuar as incompatibilidades, os contrastes, as divergências, os conflitos. A violência e o desvario em geral.
Neste caldo de cultura germinam, como no magma primevo a se esfriar teria nascido a vida do planeta, o fanatismo assassino, a criminalidade nas suas distintas fisionomias. Isto é do conhecimento até do mundo mineral, mas não de todos os homens. Fatos como a chacina parisiense repetem-se à toda hora, provocados pelo fanatismo, pela revolta, pela insanidade, pela desgraça. E pelo terror de Estado. Não cabe justificar o horror. Recomenda-se, entretanto, aquilatar envolvimentos e responsabilidades. E anotar que inomináveis delitos cometidos pelos senhores do mundo ocidental não costumam merecer a repulsa das praças lotadas.
Para evocar fatos próximos, é da incompetência impafiosa da diplomacia norte-americana que eclode a Guerra do Iraque, ou brota a maior ameaça terrorista representada pelo Estado Islâmico. Tal é a inexorável verdade factual. Há culpas em cartório, contribuições transparentes ao descalabro dos dias de hoje, às quais a maioria se presta de pronto porque tolhida fatalmente ao exercício da razão.
O alpiste servido aos incautos, aos desmemoriados, aos crédulos, aos ignorantes, é a versão dos cavalheiros tão bem representados na praça parisiense. Aproveitam-se da eficácia dos instrumentos chamados a entorpecer as consciências e demolir o mais pálido resquício de espírito crítico.
Talvez estejamos no limiar de uma nova Idade Média, contradição apenas aparente do dito progresso tecnológico. Se o homem dispõe de computador e celular de infinitas funções, e vive bem mais do que as gerações precedentes, nem por isso ganha em sabedoria, pelo contrário. O respeito à memória, base de todo conhecimento, dispersa-se na moda contingente. Nesta moldura, o livro tende a se tornar objeto obsoleto. Na mesmice globalizada instalam-se, disfarçados pela banalidade, a ignorância, a indiferença. E os desbordantes porquês não logram resposta.

O calor e a seca que continuará: que fazer?

"Se o Brasil tivesse cumprido o Plano Nacional de Mudanças Climáticas, aprovado em 2009, dizem os estudos, estaríamos chegando já em 2015 ao desejado desmatamento zero. Mas, como diz o dirigente do Instituto SocioAmbiental, Beto Ricardo, todos os projetos multilaterais para a Amazônia são "ridículos'", escreve Washington Novaes, jornalista, em artigo publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo e reproduzido pelo sítio Comissão Pastoral da Terra, 23-01-2015.
Eis o artigo.
Acendem-se muitos sinais de alerta diante de notícias como a de que 2014 foi o ano mais quente desde quando se registram temperaturas no planeta (1880), diz a National Oceanic and Atmospheric Administration, a agência meteorológica dos Estados Unidos. Os dez anos mais quentes aconteceram após 2000, com uma única exceção: 2015 tende a ser ainda mais quente, pois neste ano teremos o fenômeno El Niño, que aquece as águas do Pacífico e influi na atmosfera continental - o que não se verificou em 2014.
O aumento das emissões de poluentes para a atmosfera foi muito forte e ao lado da formação de "ilhas de calor" em áreas urbanas muito adensadas já é causa bem estudada de eventos problemáticos, dizem os cientistas do Instituto Climatempo. Assim como o aumento do desmatamento no País, principalmente na Amazônia, e a ocupação de novas áreas pela pecuária e pela agricultura. E tudo isso nos coloca entre os países que mais contribuem para mudanças no clima.
Outro estudo, de 18 cientistas respeitados (ScienceXpress, 15/1), adverte que mudanças no clima e perdas na biodiversidade podem "levar o planeta Terra a um novo estágio, se a ultrapassagem de limites continuar ocorrendo", afetando mesmo a camada de ozônio e intensificando a acidificação dos oceanos. Na verdade, dizem eles, deveríamos até, ao calcular a evolução do produto econômico no mundo, incorporar o que acontece em terra, na água, no ar.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) dá-lhes razão, ao lembrar que, como a população terrestre vai chegar a 9 bilhões até 2050, nas próximas décadas precisaremos aumentar a produção de alimentos em 60% (para atender inclusive aos 40% da população que vive abaixo do nível de pobreza fixado pelaONU), aumentar a produção de energia em 50% e a utilização de recursos hídricos em 40%. E tudo sem aumentar a degradação - o que exigirá modos de viver adequados às possibilidades do planeta.
Deveríamos também, todos, ler o relatório O Futuro Climático da Amazônia, do professor Antônio Donato Nobre, pesquisador no Inpe, MCT e Inpa, produzido para a Articulação Regional Amazônica. Ele chama a atenção para os efeitos devastadores do desmatamento na Amazônia e sua influência muito forte em todo o País, inclusive para quem vive nas áreas urbanas. E destaca alguns ângulos da questão:
1) A capacidade da Floresta Amazônica de contribuir decisivamente para manter a umidade do ar naquele bioma e em outras partes distantes; as árvores extraem água pelas raízes, levam-na para as folhas, que jogam o líquido, evaporado, para a atmosfera; isso leva a que uma árvore de grande porte contribua a cada dia com o equivalente a mil litros de água - o que se traduz em quase 20 bilhões de toneladas de ar diárias evaporadas pela floresta, mais que o aporte diário de água para o Rio Amazonas; e que equivale, em energia solar, a mais do que toda a energia gerada por uma usina como Itaipu.
2) Esse processo leva a um rebaixamento da pressão atmosférica sobre a floresta, que suga o ar úmido que está sobre o oceano para dentro do continente, mantendo as chuvas "em quaisquer circunstâncias".
3) No processo a Amazônia também exporta "rios aéreos de vapor", que transformam a água transportada em "chuvas fartas que irrigam regiões distantes no verão hemisférico"; o processo florestal também distribui e dissipa a energia transportada nos ventos que chegam e impede a formação de "eventos climáticos extremos", como furacões e similares.
Mas todo esse processo está em risco. Até 2013 o desmatamento na Amazônia chegou a quase 763 mil km2. Se forem somadas as áreas onde ocorreu a "degradação florestal", serão mais 1,2 milhão de km2 - chegando o total final a quase 2 milhões de km2.
A tudo isso ainda se podem somar as perdas no Cerrado (mais de 50% da área já desmatada), na Mata Atlântica e em outros biomas. A impermeabilização do solo do Cerrado com o desmatamento impede que a água se infiltre - e se reduz a capacidade de geração de fluxos para as três grandes bacias brasileiras.
Cinco passos essenciais são apontados por Antônio Nobre e outros cientistas:
1) Ter uma estratégia de "guerra à ignorância" quanto às questões das chuvas e da Amazônia;
2) conseguir, com políticas competentes e obrigatórias, chegar ao desmatamento zero na Amazônia;
3) abolição do uso do fogo;
4) estratégias de recomposição de espaços das florestas;
5) conscientizar as "elites" de seu papel decisivo no processo.
Se o Brasil tivesse cumprido o Plano Nacional de Mudanças Climáticas, aprovado em 2009, dizem os estudos, estaríamos chegando já em 2015 ao desejado desmatamento zero. Mas, como diz o dirigente do Instituto SocioAmbiental, Beto Ricardo, todos os projetos multilaterais para a Amazônia são "ridículos".
Então, será decisivo impedir que o desmatamento propicie a expansão de pastagens (com o aumento das emissões de metano), é preciso mudar os caminhos da pecuária. Repensar nossos formatos de mobilidade urbana, para reduzir as emissões de poluentes por veículos. Tratar com competência a área de energia e não utilizar fontes térmicas, altamente poluentes, como o carvão. Sempre lembrando o que é conclusão quase unânime na Convenção do Clima: teremos de reduzir em 80% o uso dos chamados "combustíveis fósseis".
Nas cidades, onde as "ilhas de calor" causadas pelo adensamento atraem chuvas problemáticas, vale a pena enfatizar o recente "apelo à população" feito pelo diretor executivo da Rede Nossa São Paulo, Oded Grajew: "A cidade de São Paulo está diante de uma catástrofe social, econômica e ambiental sem precedentes (...). A Cantareira pode secar em 60 dias (...). Estamos acomodados e tranquilos num Titanic, sem nos dar conta do iceberg que está se aproximando".
É tempo de juízo.

Crise se agrava e os três principais Estados do país cogitam racionar água

Depois de São Paulo, agora é a vez das autoridades de Minas Gerais e do Rio de Janeiro admitirem oficialmente que já há planos de racionamento de água nos dois Estados. Com o agravamento da crise hídrica na região Sudeste, o coração econômico do país, o ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, afirmou que o Brasil também enfrentará “problemas graves” no fornecimento de energia, inclusive um possível racionamento, se os reservatórios das principais hidrelétricas do país ultrapassarem o limite mínimo “prudencial” de 10% de armazenamento de água.Braga participa de uma reunião com o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, na tarde desta sexta-feira, para discutir a crise no setor.
A reportagem é de Heloísa Mendonça, publicada pelo jornal El País, 23-01-2015.
Em Minas Gerais, a presidenta da Copasa (Companhia de Saneamento de MG), Sinara Meireles Chenna, disse que a situação dos reservatórios no Estado está “crítica”. Ela alertou, durante coletiva de imprensa nesta quinta-feira, que Minas pode ficar sem água dentro de quatro meses caso não chova ou a população não diminua o consumo em até 30%. “Se todo mundo continuar gastando o que estamos gastando, em quatro meses já não teremos mais nada. É preciso racionar água”, afirmou.
Nesta sexta-feira, a Copasa irá encaminhar ao Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) uma declaração da situação de escassez, que, caso seja aprovada, permitirá a empresa adotar mecanismos como racionamento de abastecimento e multas ou sobretaxas para os consumidores que abusarem da utilização da água.
No Rio, o secretário estadual do Ambiente, André Corrêa, afirmou que o Estado enfrenta a pior crise hídrica da região dos últimos 84 anos. Em entrevista à TV Globo nesta sexta-feira, Corrêa disse que a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos) já tem um plano de racionamento de água, caso seja necessário. O nível do reservatório doParaibuna, o maior dos que abastecem o Rio de Janeiro, atingiu o volume zero pela primeira vez, desde a época que começou a ser feito. Segundo técnicos da secretaria, o volume morto pode durar, pelo menos, mais seis meses.
Após as declarações do secretário, o governador do Estado, Luiz Fernando Pezão, enfatizou que o Rio não deve enfrentar racionamento. De acordo com o jornal O Globo, Pezão afirmou que o Estado poderá suportar além do período da seca, mas reiterou que a população precisa contribuir com a economia de água. Ainda de acordo com a publicação, Pezão disse também que a tarifa de água não vai aumentar, uma vez que a Cedae já sinalizou que não há necessidade.
Racionamento de energia
Preocupado com a seca que assola a região Sudeste, o ministro Eduardo Braga admitiu que um racionamento de energia elétrica será decretado caso o nível dos reservatórios chegue ao limite chamado de "prudencial", estabelecido em 10%. Ele destacou, no entanto, que o Brasil está longe deste cenário.
"Mantido o nível que nós temos hoje dos reservatórios, nós temos energia para abastecer o Brasil. É óbvio que, se tivermos mais falta de água, se passarmos do limite prudencial de 10% nos nossos reservatórios, aí estamos diante de um cenário que nunca foi previsto em nenhuma modelagem”, afirmou.
Segundo os dados mais recentes publicados pelo site Operador Nacional do Sistema (ONS), os reservatórios no Sudeste/Centro-Oeste, os mais importantes para geração hídrica no país, estão em 17,43%.
Nenhum reservatório de hidrelétrica pode funcionar com menos de 10% de água. Ele tem problemas técnicos que impedem que as turbinas funcionem. Portanto não é no Sudeste. É em qualquer lugar", destacou.
Braga se reuniu com o ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, nesta quinta-feira para tratar o assunto. "Estamos também muito preocupados com a situação hidrológica. Inclusive amanhã [nesta sexta-feira] teremos uma reunião na casa Civil com a ANA (Agência Nacional de Águas), o Ministério do Meio Ambiente, de Ciência e Tecnologia e outros, porque o nível hidrológico chegou a níveis mínimos em várias regiões", explicou.
Os reservatórios no Nordeste estão com 17,18% e os do Norte com 35,2%. Apenas a região Sul apresenta indicadores melhores, com 67,17%, de acordo com a ONS.