terça-feira, 31 de janeiro de 2023

 

Peru: viagem ao centro da revolta

A um passo de derrubarem a presidente usurpadora, camponeses colorem o país com colchas, sombreros e huarácas. “Toda a cordilheira está dizendo chega”, afirmam após 58 mortes. Ninguém arreda pé. São os herdeiros de Tupac Amarú

Um grupo de manifestantes bloqueia a rodovia Panamericana Sur, a rodovia mais importante do país. Fotografia: Aldair Mejia/EPA

Por Tom Phillips, no The Guardian | Tradução: Rôney Rodrigues

Um a um, os campesinos rebeldes subiram no palanque improvisado que construíram no topo de uma barricada de terra de 2 metros, declarando estar determinados em derrubar a presidente do Peru.

“Irmãos e irmãs, agora nosso Peru precisa de nós mais do que nunca”, disse Nilda Mendoza Coronel, agricultora de 35 anos, a centenas de grevistas que se reuniram sob o sol forte da manhã.

“Vamos lutar até o fim, carajo!”, Mendoza gritou através de um megafone. “Ninguém vai parar nossa luta!”

Outro orador, Aparicio Meléndez, instou a multidão na cidade andina de Sicuani a ignorar os relatos de que tropas do Exército estavam a caminho para desbaratinar a revolta. “Ficaremos aqui até que eles gastem a última bala”, prometeu o criador de gado de 55 anos enquanto observava o protesto que bloqueava a rodovia 940 que atravessa os Andes peruanos.

Um grito de guerra de duas palavras havia sido pintado na pista atrás da barricada: “Insurgência do povo”.


Há sete semanas, a cidade de Sicuani está no centro desta insurreição contra a presidente do Peru, Dina Boluarte, e o establishment político do país, que começou no início de dezembro após o presidente esquerdista, Pedro Castillo, ser destituído e preso sob acusação de tentar encenar um golpe.

Ventos políticos estranhos e violentos têm fustigado a América Latina e o Caribe ultimamente, com uma “revolta” de extrema direita no Brasil, colapso político e social no Haiti e protestos na Bolívia após a prisão de um dos líderes mais proeminentes de oposição. Mas em nenhum lugar a turbulência foi mais generalizada — ou mortal — do que no Peru, onde pelo menos 58 vidas foram perdidas desde a dramática queda de Castillo.

Grandes áreas do quarto país mais populoso da América do Sul foram paralisadas por protestos e bloqueios de estradas, enquanto os apoiadores de Castillo – e aqueles indignados com a resposta mortal do governo – saem às ruas para exigir a renúncia de Boluarte, novas eleições e justiça para as dezenas de assassinatos de que as forças de segurança são acusadas.

Uma viagem do Guardian pela região mais afetada, entre as cidades andinas de Cusco e Juliaca – onde 17 pessoas morreram no pior dia de violência – ouviu as vozes do levante contra o governo peruano.

A cansativa jornada de 340 quilômetros levou três dias e envolveu a passagem por dezenas de postos de controle guardados por camponeses rebeldes, bem como centenas de barricadas feitas de pedras, troncos de árvores, veículos em ruínas, vidro e sucata.

Além dos bloqueios de estradas, foi também uma jornada pela profunda desigualdade social, pobreza opressiva e discriminação que estão por trás da explosão de raiva rural contra o que muitos manifestantes chamam de sistema político corrupto, egoísta e, em grande parte, branco de Lima, capital do país.

“É como se não fôssemos humanos… É como se não valêssemos nada”, disse Raúl Constantino Samilán Sanga, cujo irmão de 30 anos foi morto a tiros em Juliaca durante confrontos entre policiais e manifestantes. “Toda a Cordilheira dos Andes está dizendo que já chega – isso deve mudar.”

A viagem pelo centro do terremoto político do Peru começou em Cusco, outrora capital do império inca e hoje destino turístico mais importante do país sul-americano, com quase 3 milhões de visitantes por ano. Os turistas sumiram desde o início do levante, com o aeroporto de Cusco sendo diversas vezes trancado pelas autoridades e a vizinha Machu Picchu, fechada no início deste mês.

“Todo mundo está tenso, preocupado e um pouco assustado também”, disse Hannah Jenkinson, uma estilista britânica que administra uma butique no agora deserto centro histórico de Cusco.

Manifestantes chegam de comunidades vizinhas e se reúnem na praça Túpac Amaru em Cusco, Peru. Fotografia: Michael Bednar/Getty Images

A algumas ruas de distância, centenas de manifestantes marcharam em direção à praça onde no século 18 o líder indígena Túpac Amaru foi esquartejado e decapitado após se rebelar contra o domínio espanhol.

“Ela está caindo! Ela está caindo! A assassina está caindo!”, as multidões cantavam sobre Boluarte enquanto avançavam pelas ruas de paralelepípedos de Cusco, agitando a bandeira vermelha e branca do Peru.

A dezenas de quilômetros ao sudeste de Cusco, passando por ruínas pré-incas e montanhas pontilhadas de eucaliptos, fica a vila de Villahermosa – o local do primeiro grande bloqueio ao longo da rodovia Rota 3S do Peru.

Dezenas de aldeões, incluindo mulheres idosas segurando chicotes tradicionais, a huaraca, tecidos de lã de alpaca, bloquearam a estrada com troncos de árvores e pneus, expressando fúria contra décadas de negligência do governo e contra a recente onda de assassinatos, muitos dos quais foram atribuídos às forças de segurança.

Juvenal Luna Jara, 22, disse que se juntou à rebelião uma semana antes, indignado com o fato de tantos manifestantes terem sido mortos no sul rural do Peru, há muito tempo negligenciado e que estava no centro da brutal guerra travada pela guerrilha do Sendero Luminoso durante 12 anos. A seu ver, a maioria das vidas se perdia nessas regiões porque os provincianos eram considerados cidadãos de segunda classe, ou coisa pior. “É como se eles estivessem matando cachorros”, irritou-se ele.

Horas antes, Boluarte havia implorado aos manifestantes que aceitassem uma trégua nacional. Mas não havia sinal de adesão em Villahermosa, pois os agricultores se reuniram para expressar sua raiva pelo papel que a atual presidente desempenhou na destituição de Castillo, ex-líder sindical que nasceu na pobreza e chegou à presidência em 2021, com forte apoio de eleitores rurais empobrecidos de lugares como como este.

Juvenal Luna Jara, 22, em Villahermosa, Peru. Fotografia: Tom Phillips

“Se não houver solução, a luta continuará”, rugiram os aldeões.

Ao longo da rodovia repleta de pedregulhos, aldeia após aldeia a mensagem era a mesma, com agricultores desiludidos e oprimidos se reunindo por causa dos bloqueios que construiam e oferecendo discursos apaixonados sobre a situação nacional e de como sua região mineira, rica em recursos, havia sido ordenhada para lucros que nunca foram vistos.

Dina Quispe chorou ao denunciar como as autoridades peruanas rotularam os manifestantes de terrucos (terroristas) financiados pelo narcotráfico, respondendo ao apelos por mudanças políticas com repressão e derramamento de sangue. “Fomos humilhados e esquecidos”, disse a vendedora de 41 anos da comunidade de Checyuyoc. “Eles estão matando nossos irmãos com balas.”

Em meio às lágrimas, Quispe expressou desgosto por ter o mesmo primeiro nome da primeira mulher presidente do Peru. Boluarte se tornou um para-raios para uma desilusão muito mais profunda, uma desilusão com a política falida de um país que teve sete presidentes nos últimos seis anos e onde um quarto da população luta para se alimentar adequadamente.

Quispe disse aos repórteres: “Por favor, levem esta voz de protesto do mais profundo e humilde Peru [para o mundo].”

A alguns quilômetros de distância, em Sicuani, uma cidade agora quase completamente isolada do mundo exterior pelos bloqueios de estradas, centenas de mulheres quéchuas usando sombreiros, saias pollera e colchas deslumbrantes estavam em marcha.

“Estamos lutando pelo nosso futuro e pelo futuro de nossos filhos e netos”, disse Roxana Chahuanco, 40 anos, enquanto os moradores se preparavam para debater seu próximo passo depois que o governo anunciou que enviaria tropas para “limpar” as estradas.

Lá, Mendoza Coronel evocou os mártires indígenas Túpac Amaru e sua esposa, Micaela Bastidas, enquanto exortava os moradores locais a intensificar a rebelião camponesa contra as elites “corruptas” de Lima. “Eles nos desprezam porque somos filhos de camponeses e por sermos pessoas do campo”, disse ela.

Na aldeia seguinte, um crânio de vaca foi colocado em um poste, logo acima de uma barricada formada por dois montes de entulho e terra. “É a Dina”, brincou uma das mulheres que faziam o policiamento do posto de controle.

De Sicuani, a rodovia sube ainda mais nos Andes até a espetacular fronteira de 4.300 metros com o departamento de Puno, onde também comunidades indígenas aimarás se revoltam contra o novo governo.

Boluarte se enfureceu ainda mais os habitantes da região na semana passada, quando disse a jornalistas estrangeiros que “Puno não é o Peru” – uma declaração que, posteriormente, a presidente alegou ter sido mal interpretada.

“Somos peruanos ”, disse uma mulher que guardava uma barreira na estrada fora da cidade de Ayaviri. “Foi em Puno que nasceu o império Inca.”

Vista aérea de familiares e amigos das vítimas dos confrontos com a polícia peruana na praça principal da cidade andina de Juliaca, sul do Peru. Fotografia: Juan Carlos Cisneros/AFP/Getty Images

Depois de Ayaviri, a rodovia desce em direção à maior cidade de Puno, Juliaca, um centro de mineração e contrabando dilapidado, onde os protestos antigovernamentais continuam a acontecer enquanto as famílias locais lamentam seus mortos.

Atrás de uma porta de metal decorada com uma fita preta de luto estava sentada María Ysabel Samillan Sanga, que perdeu seu irmão mais novo no início de janeiro.

Marco Antonio Samilán Sanga era um estudante de medicina que trabalhava como médico voluntário em Juliaca quando manifestantes tentaram invadir o aeroporto da cidade e as forças de segurança responderam com munição real.

O estudante de 30 anos levou um tiro no coração enquanto atendia um menino que havia inalado gás lacrimogêneo – uma das pelo menos 17 pessoas que morreram em Juliaca naquele dia. “Foi um massacre”, disse a irmã. “Não há outra palavra para isso.”

Samillan Sanga chorou ao se lembrar de como seu irmão conseguiu sair da pobreza extrema e entrar na faculdade de medicina. Ele sonhava em se tornar um neurocirurgião e criar programas de saúde para a população pobre da zona rural de Puno.

“Neste momento, sinto que estou sendo obrigada a viver… Se dependesse de mim, eu morreria também porque tem dias que não consigo lidar com essa dor”, disse ela, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Samillan Sanga também viu o preconceito e a discriminação como uma das razões da morte de seu irmão — e da revolta no Peru. “Nós temos sentimentos. Nós somos humanos. Nós sentimos. Nós choramos. Nós temos emoções. E estamos sofrendo”, disse seu irmão, Raúl Constantino.

A família disse temer represálias do governo por se manifestar, mas não seria silenciada. “Espero que alguém leia isso e pense: como está a família Samilán Sanga?”, disse Maria Ysabel. “Porque a verdade é que fomos destruídos. Minha família nunca mais será a mesma.”

Um crânio de vaca em um bloqueio. Fotografia: Tom Phillips

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Pobre no orçamento, rico no imposto de renda

Publicado em 19/12/2022Escrito por  Paulo Nogueira Batista Jr.Lido 655 vezes

paulonogueira"O Brasil é um paraíso fiscal para os bilionários, a tenebrosa turma da bufunfa. Essa turma não quer nem ouvir falar em tributação"


Posso falar do Lula outra vez? Pergunto e eu mesmo respondo: posso! Afinal, este é o derradeiro artigo do ano de 2022. E quem foi a grande figura deste ano tão difícil que atravessamos? Existe salvador da pátria? Se existe, nós sabemos quem é.

Não pense, leitor, que este parágrafo inicial entusiasmado signifique admiração fervorosa e irrestrita pelo presidente eleito. Não! Tenho minhas reservas, minhas dúvidas. É natural. Ninguém é perfeito e ninguém merece ser poupado de críticas. E o papel de pessoas como eu será não apenas apoiar, mas também criticar, se necessário, o futuro governo brasileiro.

 E, em especial, cobrar o cumprimento das promessas de campanha. Por exemplo, o candidato Lula disse diversas vezes que pretendia “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. Perfeito. Nada mais justo, nada mais necessário.

O que significa essa fórmula feliz? Duas coisas, pelo menos. Primeiro, modificar a composição do gasto público. E, em segundo lugar, aumentar a tributação sobre os super-ricos.

 Vamos por partes, à moda de Jack, o Estripador. Do lado do gasto, o importante é assegurar que os programas governamentais beneficiem em primeira instância os pobres, os miseráveis, os mais necessitados. No jargão eufemístico do economista: as pessoas de baixa renda. Fundamental, portanto, abrir espaço no orçamento para aumento expressivo das transferências sociais, inclusive o Bolsa Família, para o aumento do poder de compra do salário-mínimo e, também, para maiores despesas de educação e saúde focadas no mais pobres. Merenda escolar, por exemplo. Farmácia popular, outro exemplo. Também moradia. Transporte público.

Veja, leitor, que falei em “abrir espaço”. Isso significa cortar gastos supérfluos, que beneficiam os mais aquinhoados. Como declarou o vice-presidente eleito, Geraldo Alckimin, será preciso passar um pente fino nas despesas de governo e identificar o que pode e deve ser cortado, os programas ineficientes, de baixa qualidade, e em especial as despesas que beneficiam os super-ricos, aqueles que já têm renda e riqueza em excesso. Isso inclui, diga-se de passagem, rever as isenções e os incentivos tributários, os chamados gastos tributários, que representam nada menos que R$ 371,1 bilhões em 2022, o equivalente a quase 4% do PIB, segundo estimativa da Receita Federal.

Bem sei que tudo isso é muito mais fácil de escrever do que de colocar em prática. Para cada programa ineficaz e de baixa prioridade, para cada incentivo fiscal inútil ou duvidoso, existem um ou mais grupos de interesse, não raro poderosos, que lutam para preservar os seus privilégios. E logo aparece, do lado do governo, a turma do deixa disso, sempre disposta a contemporizar. Se o presidente da República der ouvidos a esse pessoal, nada de importante será feito.

A linha de menor resistência, leitor, será sempre sobrepor os programas sociais aos programas ineficazes e concentradores de renda já existentes. Pequeno problema: o nível do gasto público é alto no Brasil. Novos aumentos serão difíceis de conciliar com a estabilidade e o desenvolvimento da economia.

E do lado da receita? Nesse ponto, o nível de embuste das discussões econômicas habituais alcança uma espécie de ponto máximo. O assunto é vasto. Tratarei de apenas alguns aspectos. Dedico, em todo caso, um pouco mais de espaço a esse lado da questão, que tende a ser negligenciado (et pour cause!).

De fato, é fundamental colocar os ricos no imposto de renda, como disse o candidato Lula. Melhor dizendo: colocar os super-ricos. Importante não deixar margem para exploração política ou politiqueira. Não se trata de aumentar a carga tributária sobre a classe média, que já é elevada. E muito menos sobre a população pobre, que suporta a pesada carga de tributos indiretos. Os super-ricos, que dominam a mídia tradicional, conseguem normalmente vender como aumento de impostos sobre “a sociedade” qualquer tentativa de fazê-los contribuir um pouco mais para o funcionamento do Estado.

Eis a verdade incômoda: o Brasil é um paraíso fiscal para os bilionários, a tenebrosa turma da bufunfa. Essa turma não quer nem ouvir falar em tributação.

Ora, o nosso país é um dos mais desiguais do planeta. Em 2021, de acordo com o IBGE, o 1% mais rico da população tinha uma renda média 38,4 vezes mais alta do que a renda média dos 50% mais pobres. Repare, bem, leitor: 38,4 vezes! Um dos fatores que contribuem para isso é a injustiça do sistema tributário. Em 2019, um único brasileiro declarou renda de R$ 1,4 bilhão, sendo R$ 1,3 bilhão em dividendos livres de tributação!

A quantidade de injustiças da tributação brasileira não cabe em um artigo. Remeto a meu livro mais recente, “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”, que traz, na sua segunda edição, um texto um pouco mais alentado sobre a subtributação dos super-ricos. E pretendo voltar ao assunto, nesta coluna, em 2023.

Por ora, listo alguns exemplos escandalosas. O imposto de renda da pessoa física se torna regressivo após a faixa de 30 a 40 salários-mínimos (isto é, tributa proporcionalmente menos as rendas mais elevadas). A renda do capital é isenta na pessoa física ou sujeita a tributação proporcional ou de baixa progressividade. A alíquota marginal máxima é pequena (em tese e do ponto de vista da justiça, nada impede estabelecer alíquotas marginais mais elevadas sobre os super-ricos). Além disso, a não correção da tabela progressiva sobrecarrega a classe média, inclusive a classe média baixa.

A injustiça é maior do que se imagina. Em 2020, para os declarantes que ocupam o topo da pirâmide (os 0,01% mais ricos), 63% dos rendimentos ficaram isentos, em média, e 30% sofreram tributação exclusiva na fonte! Ou seja: apenas 7% dos rendimentos, em média, entraram na tabela progressiva. Em 2020, a alíquota efetiva média dos 0,01% mais ricos foi de apenas 5,4%, próxima à dos assalariados que recebem em torno de R$ 6.500 mensais! (Dados da Receita Federal, que me foram repassados pelo auditor fiscal Paulo Gil Hölck Introíni.)

O Brasil é ou não é um tremendo paraíso fiscal para os super-ricos?

A tributação da riqueza também é modesta. Heranças e doações estão sujeitas à alíquota máxima de 8%. Iates e aviões particulares estão isentos de IPVA. O Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto na Constituição de 1988, nunca foi criado. O Imposto Territorial Rural corresponde a apenas 0,1% da arrecadação federal.

Para completar o quadro, as fragilidades da administração tributária, agravadas durante o governo Bolsonaro, permitem que os bilionários escapem dos impostos com relativa facilidade. Praticam o chamado planejamento tributário, com assessoria de advogados tributaristas regiamente remunerados.

Os beneficiários desse paraíso tributário são exatamente os mesmos que, por intermédio dos seus serviçais – uma legião de economistas e jornalistas econômicos –, entopem a mídia tradicional com clamores por “responsabilidade fiscal”.

Veremos o que o novo governo fará para colocar “o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. A resistência à mudança será grande, como sempre, mas é uma luta que vale a pena.

Fonte: Brasil 247

 

Lula acerta na Economia?

Publicado em 30/01/2023Escrito por  Paulo Nogueira Batista Jr.Lido 400 vezes

paulonogueiraO Lula 3 se configura agora como independente e assertivo na área econômica

 

Nas primeiras semanas de governo, o Presidente da República agiu com rapidez na área econômica. Autorizou diversas medidas e emitiu opiniões sobre a política econômica, dando sequência ao que fez na campanha eleitoral. Se ele vem acertando ou não, é objeto de intensa controvérsia.

A ortodoxia econômica, inclusive e destacadamente a turma da bufunfa e seus numerosos porta-vozes na mídia, parece cada vez mais inquieta. Esperavam um Lula mais dócil, mais parecido com o Lula 1 do tempo da dupla Antônio Palocci/Henrique Meirelles – período em que os economistas desenvolvimentistas, por sua vez, estavam furiosos, criticando publicamente o governo. Eu mesmo mandava ver, até com certo exagero, diria em retrospecto.

O Lula 3 se configura agora como independente e assertivo na área econômica, e mesmo mais do que o Lula 2, do período Guido Mantega, que já causava certos arrepios. O barulho é atualmente bem intenso. Fazer o quê? A insatisfação nas hostes mercadistas deve ser enfrentada com paciência e tranquilidade. Com diálogo e medidas consistentes, essas reações talvez possam ser mitigadas. Não acredito muito, confesso, mas manifesto a esperança.

Se fosse economista, o Lula atual seria um desenvolvimentista, keynesiano e heterodoxo. Não é à toa que a turma da bufunfa dá “arrancos triunfais de cachorro atropelado”, como diria Nelson Rodrigues. Não sendo economista, é natural que o Presidente dê escorregões quando entra na seara econômica com mais especificidade. Trato de alguns deles na sequência. No fundamental, porém, ele está acertando.

A controvérsia suscitada pelos primeiros passos do governo é vasta. Vou tratar apenas de certas questões relacionadas ao Banco Central (BC), à política monetária e à política fiscal.

Causou celeuma, por exemplo, a opinião do Presidente sobre a sacrossanta autonomia do Banco Central. Lula lembrou que no Brasil “se brigou muito para ter um BC independente”, mas que, com sua experiência, pode dizer que é “uma bobagem achar que um BC independente vai fazer mais do que do que quando era o Presidente da República quem indicava”. E acrescentou: “Duvido que o atual presidente do BC seja mais independente do que foi Meirelles’’, observando ainda que o BC, embora independente, não tem cumprido as metas de inflação nos anos recentes.

Está certo o Presidente? Basicamente, sim, ainda que não em alguns pontos mais específicos. O BC brasileiro se tornou autônomo, não independente. Na literatura acadêmica – que presidente nenhum tem obrigação de conhecer – “independente” é o BC que fixa as próprias metas de inflação; “autônomo” o que busca as metas fixadas pelo governo. No Brasil, é o Conselho Monetário Nacional (CMN) que fixa as metas e o intervalo em torno do centro das metas.

Mas isso é, em parte ficção, o que dá razão a Lula. A influência do BC no CMN é grande, pois tem um dos três votos e exerce a secretaria. Na prática, o BC fixa as metas para si mesmo, pelo menos em certos períodos. Já escrevi sobre isso em um artigo publicado no site A Terra é Redonda. Agora, pelo que sei, o CMN será integrado pelo ministro Fernando Haddad, que o preside, pela ministra Simone Tebet e pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto. Admitindo-se que a Tebet siga uma linha mais conservadora, Haddad será minoria no CMN. E o BC talvez tenha condições, na prática, de continuar fixando as próprias metas.

Outro ponto é que, diferentemente do que sugere a fala de Lula, o presidente e os diretores do BC continuam sendo indicados pelo Presidente da República. O que mudou? Com a lei de autonomia, aprovada durante o governo Bolsonaro, o comando da autoridade monetária tem mandatos fixos, não coincidentes com o do Presidente da República. Lula sabe disso, com certeza. O que ele quis dizer? A meu juízo, que o atual presidente do BC não será mais independente do que foi Henrique Meirelles, presidente do BC durante o Lula 1 e o Lula 2. Lei de autonomia ou não, Roberto Campos Neto terá de coordenar a política monetária com a política fiscal e outros aspectos da política econômica, como ocorre, aliás, em todos ou quase todos os países. Espero que isso aconteça realmente. Veremos.

Lula declarou, ainda, que uma meta de inflação excessivamente ambiciosa atrapalha o crescimento econômico. “Por que não estabelecer 4,5%, como fizemos nos meus mandatos anteriores?”, indagou. A controvérsia a esse respeito é internacional e ocorre também nos países desenvolvidos, onde também se questiona se os bancos centrais não fixaram metas de inflação excessivamente ambiciosas. A opinião do Presidente da República é defensável – conta com apoio de muitos especialistas tanto aqui como no exterior.

No Brasil, as metas atuais são de 3,25% para 2023 e de 3% para 2024. Este é o centro das metas, que têm um intervalo de 1,5 ponto percentual para cima e para baixo em torno desse centro. Seria perfeitamente razoável, na próxima ocasião em que o CMN se reunir para tratar do tema, aumentar um pouco o centro da meta de 2024 e 2025, digamos para 3,25% e o intervalo para 2 pontos percentuais. O teto da meta ficaria assim em 5,25%. Um ajuste minimalista que, entretanto, reduziria a pressão para que o BC mantivesse juros altos demais, prejudicando o crescimento, o emprego e as finanças públicas. Repare, leitor(a), que a taxa básica de juro fixada pelo BC afeta as finanças públicas direta e indiretamente, por pelo menos dois canais: diretamente, via custo da dívida pública interna; indiretamente, via produto e emprego.

No campo fiscal, o governo Lula tem tomado decisões importantes. Destaco duas. Primeira: no conjunto de iniciativas fiscais anunciadas pelo ministro Fernando Haddad em janeiro, foram propostas, por Medida Provisória, mudanças o âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), que corrigem distorções gritantes. A mudança mais significativa foi a volta do chamado voto de qualidade, isto é, voto de desempate da União.

Durante o governo Bolsonaro, havia sido aprovada no Congresso uma medida que suprimia o voto de qualidade e dava ganho de causa ao contribuinte em caso de empate no CARF. Num Conselho paritário, com número igual de membros da Fazenda e dos contribuintes, essa medida vinha levando a derrotas sucessivas da União. A Medida Provisória de Haddad suscitou protestos das grandes empresas e dos advogados tributaristas que ganham fortunas defendendo essas empresas. Bom sinal? Ou ótimo?

Segunda decisão: a manobra inteligente e habilidosa para eliminar o famigerado teto de gastos, criado no governo de Michel Temer, já na PEC de transição. Ficou estabelecido que nova regra ou âncora fiscal, definida em lei complementar, substituirá o teto constitucional de gastos. Ponto. De 2024 em diante, o teto Temer deixa de existir. Um drible sensacional, daqueles de deixar o adversário no chão.

Em resumo, Lula está batendo um bolão como economista.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai.

Fonte: A Terra é redonda

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

 

Pode haver fascismo racional?

Historiador marxista reporta como a ultradireita foi cuidadosamente urdida para destruir conquistas dos trabalhadores. A captura e reversão da força revolucionária em ódio e brutalidade. A origem nos anos 1920 e a repetição como farsa, hoje

Imagem do filme Os Deuses Malditos (1969), de Luchino Visconti

Leia com exclusividade o primeiro capítulo do livro Os Camisas Negras e a esquerda radical: o fascismo racional e a derrubada do comunismo, do historiador marxista Michael Parenti, publicado originalmente em 1997 e recém-lançado pela editora Autonomia Literária, em tradução de Red Yorkie e com prefácio de Jones Manoel.
Quem apoia Outras Palavras por meio do programa de financiamento solidário Outros Quinhentos tem desconto especial na compra dos livros da Autonomia Literária.

Fascismo racional

Enquanto caminhava pelo bairro nova-iorquino de Little Italy, passei por uma loja de quinquilharias que exibia pôsteres e camisetas de Benito Mussolini fazendo a saudação fascista. Quando entrei na loja e perguntei ao atendente o motivo daqueles itens estarem à venda, ele disse: “É porque algumas pessoas gostam deles. E, sabe, talvez precisemos de alguém como o Mussolini neste país”. Esse comentário foi um lembrete de que o fascismo sobrevive como algo mais do que uma simples curiosidade histórica.

Pior que pôsteres ou camisetas são as obras de vários escritores empenhados em “explicar” Hitler ou “reavaliar” Franco, ou de outro modo higienizar a história fascista. Na Itália, durante a década de 1970, surgiu uma autêntica indústria caseira de livros e artigos que alegavam que Mussolini não somente havia feito os trens andarem no horário, mas também havia feito a Itália funcionar. Todas essas publicações, junto com muitos estudos acadêmicos convencionais, têm uma coisa em comum: dizem muito pouco – se é que dizem alguma coisa – sobre as políticas de classe da Itália fascista e da Alemanha nazista. Como esses regimes lidaram com serviços sociais, impostos, empresas e condições de trabalho? Para benefício de quem e à custa de quem? A maior parte da literatura sobre o fascismo e o nazismo não nos diz nada sobre isso.1

Plutocratas escolhem autocratas

Vamos começar examinando o fundador do fascismo. Nascido em 1883, filho de um ferreiro, Benito Mussolini teve a juventude marcada por brigas de rua, detenções, prisões e atividades políticas radicais violentas. Antes da Primeira Guerra Mundial, Mussolini foi socialista. Um agitador e organizador brilhante, além de um talentoso jornalista, ele se tornou o editor do jornal oficial do Partido Socialista. No entanto, muitos de seus camaradas suspeitavam que ele estivesse menos interessado em promover o socialismo do que em se autopromover. De fato, ele não hesitou em trocar de lado quando a burguesia italiana o seduziu com reconhecimento, apoio financeiro e a promessa de poder.

Ao fim da Primeira Guerra Mundial, Mussolini, o socialista, que havia organizado greves para trabalhadores e camponeses, havia se tornado Mussolini, o fascista, que rompeu greves em nome de financistas e proprietários de terra. Usando as enormes somas que recebeu de interesses poderosos, ele se projetou na cena nacional como o líder reconhecido das fasci di combattimento [ligas de combate], um movimento composto por oficiais reformados do Exército e arruaceiros diversos que usavam camisas pretas e não seguiam nenhuma doutrina política clara além de um patriotismo militarista e uma aversão conservadora a qualquer coisa associada ao socialismo e ao trabalho organizado. Conhecidos como Camisas Negras, esses fascistas viviam atacando sindicalistas, socialistas, comunistas e cooperativas de agricultores.

Após a Primeira Guerra Mundial, a Itália havia se acomodado a um padrão de democracia parlamentarista. A situação das baixas remunerações estava melhorando, e os trens já estavam andando no horário. Mas a economia capitalista atravessava uma recessão no pós-guerra. Os investimentos estagnaram, e a indústria pesada operava muito abaixo de sua capacidade. Além disso, os lucros empresariais e as exportações agrícolas encontravam-se em declínio.

Para manter o nível dos lucros, os grandes industriais e proprietários de terra teriam de cortar salários e subir preços. O Estado, por sua vez, teria de lhes oferecer enormes subsídios e isenções fiscais. A fim de financiar esse Estado de bem-estar social empresarial, a população teria de ser tributada mais pesadamente, e os gastos com serviços sociais e de bem-estar teriam de ser drasticamente reduzidos – medidas que poderiam soar familiares para nós atualmente.

Mas o governo não estava totalmente livre para seguir esse curso. Em 1921, muitos operários e camponeses italianos já haviam se sindicalizado e tinham suas próprias organizações políticas. Com manifestações, greves, boicotes, tomadas de fábricas e ocupação forçada de terras agrícolas, eles haviam conquistado o direito de se organizar, junto com concessões referentes a seus salários e condições laborais.

Para que pudessem impor a máxima austeridade a operários e camponeses, os interesses econômicos dominantes teriam de abolir os direitos democráticos que ajudaram as massas a defender seus modestos padrões de vida. A solução era esmagar seus sindicatos, suas organizações políticas e liberdades civis. Industriais e grandes latifundiários queriam à frente do timão alguém que pudesse acabar com o poder dos camponeses e dos operários organizados e impor uma ordem implacável às massas. Armado com suas gangues de Camisas Negras, Benito Mussolini parecia ser o candidato ideal para levar a cabo essa tarefa.2

Em 1922, representantes de associações do agronegócio e do setor bancário, além da Federação Industrial, composta pelas lideranças industriais do país, reuniram-se com Mussolini para planejar a “Marcha sobre Roma”, para a qual contribuíram com 20 milhões de liras. Com o apoio adicional dos principais oficiais das Forças Armadas e dos chefes de polícia italianos, foi assim que a “revolução” fascista – na verdade, um golpe de estado – ocorreu.

No espaço de dois anos após tomar o poder, Mussolini havia fechado todos os jornais de oposição e esmagado os partidos Socialista, Liberal, Católico, Democrático e Republicano, os quais, juntos, reuniam cerca de 80% dos votos. As lideranças camponesas e operárias, delegados parlamentares e outros críticos do novo regime foram surrados, exilados ou assassinados pelo terrorismo fascista dos squadristi [esquadristas, isto é, membros das milícias fascistas]. Apesar de sofrer a mais severa repressão de todas, o Partido Comunista Italiano conseguiu manter uma corajosa resistência clandestina, que, mais tarde, evoluiu para a luta armada contra os Camisas Negras e a força de ocupação alemã.

Na Alemanha, surgiu um padrão similar de cumplicidade entre fascistas e capitalistas. Os operários e camponeses alemães haviam conquistado o direito de se sindicalizar, a jornada de oito horas e o seguro-desemprego. Mas, a fim de reavivar o nível dos lucros, a indústria pesada e o grande capital queriam reduções salariais para seus trabalhadores e enormes subsídios estatais e cortes de impostos para si mesmos.

Durante a década de 1920, as Sturmabteilung (ou sa) nazistas, as tropas de assalto que utilizavam camisas marrons, subsidiadas por empresas, eram usadas principalmente como uma força paramilitar antitrabalhador, cuja função era aterrorizar operários e camponeses. Em 1930, a maioria dos magnatas havia chegado à conclusão de que a República de Weimar não atendia mais a suas necessidades e era muito complacente com a classe trabalhadora. Por isso, aumentaram substancialmente seus subsídios a Hitler, catapultando o Partido Nazista no cenário nacional. Os magnatas empresariais forneceram aos nazistas recursos generosos para a obtenção de frotas de carros e alto-falantes, a fim de saturar as cidades e os vilarejos da Alemanha, além de fundos para organizações partidárias, grupos de juventude e forças paramilitares nazistas. Na campanha de julho de 1932, Hitler dispunha de recursos suficientes para, somente nas duas últimas semanas, voar para cinquenta cidades.

Nessa mesma campanha, os nazistas conquistaram 37,3% dos votos, a porcentagem mais elevada recebida por eles em uma eleição democrática. Jamais a maioria da população os apoiou. Se pudermos considerar que eles contavam com algum tipo de base confiável, esta geralmente estava entre os membros mais afluentes da sociedade. Além disso, elementos da pequena burguesia e muitos membros do lumpesinato atuavam como gângsteres truculentos do partido, organizados nas tropas de assalto das SA. Apesar disso, a massa da classe trabalhadora organizada apoiou os comunistas ou sociais-democratas até o último segundo.

Nas eleições de dezembro de 1932, três candidatos concorreram à presidência: o presidente em exercício e candidato conservador, o Marechal de Campo von Hindenburg, o candidato nazista, Adolph Hitler, e o candidato do Partido Comunista, Ernst Thälmann. Em sua campanha, Thälmann argumentou que um voto em Hindenburg significava um voto em Hitler, e que Hitler levaria a Alemanha a uma guerra. A imprensa burguesa, inclusive os sociais-democratas, denunciava esse ponto de vista como sendo “inspirado por Moscou”. Hindenburg foi reeleito, enquanto os nazistas perderam aproximadamente 2 milhões de votos na eleição para o Reichstag, em comparação com o pico de mais de 13,7 milhões.

Conforme o esperado, as lideranças social-democratas recusaram a proposta do Partido Comunista de formar uma coalizão de última hora contra os nazistas. Na Alemanha, como em muitos outros países, no passado e no presente, os sociais-democratas preferiram se aliar à direita reacionária do que cerrar fileiras com a esquerda radical.3 Enquanto isso, alguns partidos de direita se uniram aos nazistas e, em janeiro de 1933, apenas algumas semanas após a eleição, Hindenburg convidou Hitler para ser o chanceler.

Após assumirem o poder, Hitler e os nazistas seguiram uma agenda político-econômica parecida com a de Mussolini. Eles esmagaram os trabalhadores organizados e erradicaram todas as eleições, partidos de oposição e publicações independentes. Centenas de milhares de opositores foram presos, torturados ou assassinados. Na Alemanha, como na Itália, os comunistas sofreram a mais dura repressão entre todos os grupos.

Aqui estavam dois povos, italianos e alemães, com diferentes histórias, culturas e idiomas, e supostamente diferentes temperamentos, que acabaram chegando às mesmas soluções repressivas em razão das inegáveis similaridades de poder econômico e luta de classes que prevaleciam em seus respectivos países. Em países tão diversos quanto a Lituânia, a Croácia, a Romênia, a Hungria e a Espanha, emergiu um padrão fascista similar, que não media esforços para salvar o grande capital das imposições da democracia.4

Quem os fascistas apoiaram?

Há uma vasta literatura sobre quem apoiou os nazistas, mas relativamente pouco sobre quem os nazistas apoiaram depois da chegada ao poder. Isso está em sintonia com a tendência da pesquisa acadêmica convencional de evitar totalmente o tema do capitalismo sempre que alguma coisa negativa possa ser dita a seu respeito. Quais interesses Mussolini e Hitler apoiaram?

Tanto na Itália dos anos 1920 quanto na Alemanha da década de 1930, antigos males industriais, os quais se imaginava que já tivessem ficado no passado, reemergiram à medida que as condições de trabalho se deterioravam abruptamente. Em nome da salvação da sociedade contra a Ameaça Vermelha, greves e sindicatos foram proscritos. Propriedades pertencentes a sindicatos e cooperativas agrícolas foram confiscadas e transferidas para mãos privadas. Leis sobre salário mínimo, pagamento de horas extras e regulamentos de segurança nas fábricas foram abolidos. A ampliação da jornada de trabalho sem aumento salarial tornou-se lugar comum. Demissões ou prisões aguardavam aqueles que reclamassem de condições de trabalho desumanas ou inseguras. Os trabalhadores labutavam por mais tempo e menos dinheiro. Os salários, que já eram baixos, sofreram cortes substanciais: na Alemanha, de 25% a 40%, e na Itália, de 50%. Além disso, o trabalho infantil foi reintroduzido na Itália.

Sem dúvida, algumas migalhas foram atiradas à população. Havia eventos esportivos e concertos gratuitos, alguns programas sociais insuficientes, uma ajuda para desempregados financiada principalmente por contribuições de trabalhadores e projetos de obras públicas chamativas, concebidos para evocar o orgulho cívico.

Tanto Mussolini quanto Hitler mostravam sua gratidão a seus patronos do grande capital ao privatizar muitas empresas estatais perfeitamente solventes, como siderúrgicas, usinas de energia elétrica, bancos e empresas de navios a vapor. Ambos os regimes utilizaram recursos substanciais do Tesouro Público para relançar ou subsidiar a indústria pesada. A agricultura baseada no agronegócio foi expandida e amplamente subvencionada. Os dois países garantiram um retorno sobre o capital investido por conglomerados gigantescos, ao mesmo tempo que assumiram a maioria dos riscos e perdas sobre os investimentos. Como muitas vezes costuma ser o caso em regimes reacionários, o capital público foi saqueado pelo capital privado.

Concomitantemente, impostos eram majorados para a população em geral, mas reduzidos ou eliminados para os ricos e o grande capital. Os impostos sobre herança dos abastados foram largamente minimizados ou simplesmente abolidos.

Qual foi o resultado de tudo isso? Na Itália, durante a década de 1930, a economia viu-se às voltas com uma recessão, uma gigantesca dívida pública e corrupção generalizada. Porém, os lucros industriais aumentavam, e as fábricas de armamentos trabalhavam a todo vapor, produzindo armas em preparação para a guerra que se aproximava. Na Alemanha, o desemprego foi cortado pela metade com a expansão considerável dos empregos na indústria bélica, mas, de modo geral, a pobreza aumentou por conta dos drásticos cortes salariais. E, de 1935 a 1943, os lucros industriais aumentaram substancialmente, ao passo que o lucro líquido das lideranças empresariais cresceu 46%. Durante os radicais anos 1930, nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Escandinávia, os grupos de maior renda experimentaram um modesto declínio em seu quinhão na renda nacional; mas, na Alemanha, os 5% no topo da pirâmide obtiveram um ganho de 15%.5

Apesar desses números, a maioria dos autores prefere ignorar a colaboração próxima do fascismo com o grande capital. Alguns até mesmo argumentam que, longe de serem beneficiárias, as empresas foram vítimas do fascismo. Angelo Codevilla, um autor conservador da Instituição Hoover, afirmou casualmente: “Se o fascismo significa alguma coisa, significa propriedade governamental e controle de empresas” (Commentary, ago. 1994). Assim, o fascismo é falsamente apresentado como uma forma mutante do socialismo. Na verdade, se o fascismo significa alguma coisa, significa apoio absoluto do governo aos negócios e repressão pesada das forças favoráveis aos trabalhadores e contrárias às empresas.6

O fascismo é simplesmente uma força ditatorial a serviço do capitalismo? Talvez ele não se resuma a isso, mas, sem dúvida, essa é uma faceta importante do propósito fascista, função à qual o próprio Hitler se referia quando falava sobre salvar os grandes industriais e banqueiros do bolchevismo. Um tema que merece muito mais atenção do que recebeu.

Embora os fascistas pudessem acreditar que estavam salvando os plutocratas das garras da esquerda radical, na verdade, a esquerda revolucionária nunca foi forte o bastante para tomar o poder do Estado, nem na Itália nem na Alemanha. As forças populares, contudo, eram fortes o bastante para forçar um corte nas taxas de lucros e interferir no processo de acumulação de capital. Isso frustrava as tentativas do capitalismo de resolver suas contradições internas ao transferir cada vez mais seus custos para as costas da classe trabalhadora. Com ou sem revolução, essa resistência democrática dos trabalhadores era problemática para os interesses do capital.

Além de atender aos interesses capitalistas, as lideranças fascistas atendiam a seus próprios interesses, participando da pilhagem sempre que surgia uma oportunidade. Essa ganância pessoal e sua lealdade de classe eram as duas faces da mesma moeda. Mussolini e seus apaniguados levavam uma vida nababesca, convivendo com os altos círculos da aristocracia e do capital. Oficiais nazistas e comandantes das SS acumularam fortunas pessoais, saqueando os territórios conquistados e roubando detentos nos campos de concentração e outras vítimas de perseguição política. Somas enormes foram acumuladas procedentes de negócios bem conectados que pertenciam a indivíduos cuja identidade era mantida em sigilo, além da contratação de trabalho escravo dos campos de concentração por empresas industriais, como I. G. Farben e Krupp.

De modo geral, Hitler é retratado como um fanático ideológico, sem interesse em coisas materiais vulgares. Na verdade, ele acumulou uma fortuna imensa, boa parte da qual obtida por meios questionáveis. Ele expropriou obras de arte do domínio público. Roubou somas enormes dos cofres do Partido Nazista. Além disso, inventou um novo conceito – o “direito de personalidade” – que permitiu que cobrasse uma pequena taxa de cada selo postal exibindo sua imagem, iniciativa que lhe rendeu centenas de milhões de marcos.7

A maior fonte de riqueza de Hitler era um caixa dois para o qual os principais industriais alemães contribuíam com regularidade. Hitler “sabia que, desde que a indústria alemã estivesse lucrando, suas fontes privadas de dinheiro seriam inexauríveis. Assim, ele se certificaria de que as indústrias alemãs sob seu governo estariam melhores do que nunca – ao lançar, por exemplo, projetos armamentistas gigantescos”,8 ou aquilo que, atualmente, chamaríamos de gordos contratos de defesa.

Longe de ser um asceta, Hitler vivia uma vida faustuosa. Durante todo seu governo, foi favorecido por regras especiais da receita alemã que permitiam que não pagasse imposto de renda nem impostos sobre bens imóveis. Dispunha de uma frota de limusines, apartamentos privados, casas de campo, uma ampla equipe de serviçais e uma propriedade imponente nos Alpes. Seus momentos mais felizes eram passados entretendo a realeza europeia, inclusive o Duque e a Duquesa de Windsor, que estavam entre seus admiradores fervorosos.

Adolph e Benito estão de parabéns

O fascismo italiano e o nazismo alemão tinham seus admiradores na comunidade de negócios dos Estados Unidos e na grande imprensa. Banqueiros, editores e industriais, inclusive personalidades como Henry Ford, viajavam a Roma e Berlim para prestar homenagens, receber medalhas e realizar negócios lucrativos. Muitos se empenharam ao máximo para promover o esforço de guerra nazista, compartilhando segredos industriais militares e participando de negociações secretas com o governo alemão, mesmo depois da entrada dos Estados Unidos na guerra.9 Durante a década de 1920 e o início da década de 1930, publicações importantes, como FortuneWall Street JournalSaturday Evening PostNew York TimesChicago Tribune Christian Science Monitor saudavam Mussolini como o homem que resgatou a Itália da anarquia e do radicalismo. Elas criavam fantasias rapsódicas de uma Itália ressurreta na qual a pobreza e a exploração haviam desaparecido repentinamente, onde a esquerda radical havia sido derrotada, a harmonia reinava e os Camisas Negras protegiam uma “nova democracia”.

A imprensa de idioma italiano nos Estados Unidos juntava-se ao coro com entusiasmo. Os dois jornais mais influentes – o L’Italia, de São Francisco, financiado principalmente pelo Bank of America, pertencente a Amadeo P. Giannini, e Il Progresso, de Nova York, de propriedade do multimilionário Generoso Pope – viam com bons olhos o regime fascista e sugeriam que os Estados Unidos poderiam se beneficiar de uma ordem social similar.

Algumas vozes discordantes se recusavam a aderir ao coro de “Adoramos Benito”. O The Nation lembrava seus leitores de que, em vez de salvar a democracia, Mussolini a estava destruindo. Progressistas das mais variadas estirpes e inúmeras lideranças trabalhistas denunciavam o fascismo. Mas seus sentimentos críticos recebiam pouca exposição na mídia empresarial estadunidense.

O mesmo acontecia em relação a Hitler. A imprensa não via com maus olhos a ditadura nazista do Führer. Havia um grupo substancial que acreditava no lema “Dê uma chance a Adolph”, alguns deles comprados com dinheiro nazista. A fim de obter uma cobertura mais positiva nos jornais de William Randolph Hearst, por exemplo, os nazistas pagavam quase dez vezes o valor da assinatura padrão pelo ins (International News Service), o serviço de notícias do magnata estadunidense. Em troca, Hearst instruía seus correspondentes na Alemanha para que preparassem matérias amigáveis sobre o regime de Hitler. Aqueles que se recusassem a fazer isso eram transferidos ou demitidos. Os jornais de Hearst abriram suas páginas até mesmo para colunas de convidados ocasionais redigidas por líderes nazistas proeminentes, como Alfred Rosenberg e Hermann Göring.

Entre meados e o final da década de 1930, a Itália e a Alemanha, aliadas ao Japão, outro país de industrialização tardia, estavam buscando de maneira agressiva uma participação nos mercados do mundo e na pilhagem colonial, um expansionismo que os levava cada vez mais perto de um conflito com as potências capitalistas ocidentais mais estabelecidas, como Reino Unido, França e Estados Unidos. À medida que as nuvens da guerra se acumulavam, a opinião da imprensa estadunidense sobre as potências do Eixo passou a ter um tom decididamente crítico.

O uso racional de ideologia irracional

Alguns autores destacam as características “irracionais” do fascismo. Ao fazer isso, eles negligenciam as funções político-econômicas racionais que ele desempenhava. Boa parte da política consiste na manipulação racional de símbolos irracionais. Sem dúvida, isso é válido para a ideologia fascista, cujos apelos emocionais desempenhavam uma função de controle de classe.

Em primeiro lugar, havia o culto ao líder: na Itália, il Duce [o Líder], na Alemanha, der Führerprinzip [o princípio da infalibilidade da liderança]. Junto com a adoração ao líder, vinha a idolatria do Estado. Como escreveu Mussolini: “A concepção de vida fascista salienta a importância do Estado e aceita o indivíduo somente na medida em que seus interesses coincidam com os do Estado”. O fascismo prega o governo autoritário de um Estado totalmente abrangente e um líder supremo. Ele promove os impulsos humanos mais baixos de conquista e dominação, ao mesmo tempo que rejeita o igualitarismo, a democracia, o coletivismo e o pacifismo como doutrinas débeis e decadentes.

Uma devoção à paz, escreveu Mussolini, “é hostil ao fascismo”. A paz perpétua, ele declarou em 1934, é uma doutrina “deprimente”. Somente na “luta cruel” e na “conquista”, homens e países alcançam a mais plena realização. “Embora palavras sejam coisas belas”, ele afirmou, “rifles, metralhadoras, aviões e canhões são ainda mais belos.” E, em outra ocasião, escreveu: “Somente a guerra… confere a marca da nobreza nos povos que têm a coragem de encará-la”. Ironicamente, a maioria dos recrutas do Exército italiano não tinha estômago para as guerras de Mussolini, tendendo a se retirar da batalha assim que descobriam que o outro lado estava usando munição de verdade.

A doutrina fascista enfatiza valores monistas: Ein Volk, ein Reich, ein Führer [um povo, um império, um líder]. O povo não deve mais se preocupar com divisões de classe, mas precisa se ver como parte de um todo harmonioso, ricos e pobres unidos, uma visão que apoia o status quo econômico ao ocultar o sistema permanente de exploração de classe. Isso em contraste com uma agenda de esquerda que defende a articulação de demandas populares e uma conscientização mais aguçada da injustiça social e da luta de classes.

Esse monismo é sustentado por apelos atávicos às raízes míticas do povo. Para Mussolini, era a grandiosidade da Roma Antiga; para Hitler, o antigo volk [povo ou raça]. Uma peça escrita pelo autor pró-nazista Hanns Johst, chamada Schlageter, apresentada por toda a Alemanha tão logo os nazistas tomaram o poder (Hitler esteve presente na noite de abertura em Berlim), contrapõe o misticismo racial à política de classe. O entusiasmado August está falando com o pai, Schneider:

August: O senhor não vai acreditar, papai, mas… os jovens não prestam mais muita atenção nesses antigos slogans… a luta de classes está morrendo.
Schneider: E o que vocês colocaram no lugar?
August: A comunidade racial. Schneider: E isso é um sloganAugust: Não. É uma experiência!
Schneider: Meu Deus, a nossa luta de classes, as nossas greves, elas não foram uma experiência, né? O Socialismo, a Internacional, foram fantasias talvez?
August: Elas foram necessárias, mas… são experiências históricas. Schneider: O futuro, portanto, terá a sua comunidade racial. Explica para mim como vocês efetivamente visualizam isso? Pobres, ricos, gente saudável, da classe alta, da classe baixa, tudo isso desaparece com vocês? É isso?
August: Pai, veja bem, a classe alta, a baixa, pobres, ricos, isso sempre existiu. É somente a importância que se dá a essa questão que é decisiva. Para nós, a vida não é retalhada em horas trabalhadas e fornecidas com tabelas de preços. Em vez disso, acreditamos na existência humana como um todo. Nenhum de nós acredita que ganhar dinheiro seja a coisa mais importante; queremos servir. O indivíduo é um corpúsculo no fluxo de sangue de seu povo.10

Os comentários do filho são reveladores: “A luta de classes está morrendo”. A preocupação do pai com os abusos do poder de classe e com a injustiça de classe é facilmente rejeitada como apenas um estado mental sem contato com a realidade objetiva. Ela é até mesmo falsamente equiparada a uma preocupação fútil com dinheiro: “Nenhum de nós acredita que ganhar dinheiro seja a coisa mais importante”. Presumivelmente, questões envolvendo riqueza devem ser deixadas para os abastados. Temos algo melhor, August nos diz: uma experiência monista e totalitária como um único povo, todos nós, ricos e pobres, trabalhando juntos para alcançarmos alguma glória maior. Convenientemente omitido está o modo como os “sacrifícios gloriosos” são feitos pelos pobres em benefício dos ricos.

A posição enunciada nessa peça e em outras propagandas nazistas não revela uma indiferença às classes; muito pelo contrário, ela representa uma profunda consciência de interesses de classe, um esforço bem engendrado de mascarar e calar a forte consciência de classe que existia entre os trabalhadores na Alemanha. Na negação astuciosa, muitas vezes descobrimos a admissão oculta.

O fascismo e a pseudorrevolução

O chauvinismo nacional, o racismo, o sexismo e os valores patriarcais do fascismo também serviram a um interesse de classe conservador. A doutrina fascista, especialmente a da variedade nazista, tem um compromisso explícito com a supremacia racial. Diz-se que atributos humanos, inclusive status de classe, são herdados por meio do sangue; a posição de uma pessoa na estrutura social é tomada como uma medida da natureza inata dessa pessoa. Genética e biologia são reunidas para justificar a estrutura de classe existente. Nada diferente do que acadêmicos racistas fazem atualmente com suas teorias de “curva normal”11 e embustes requentados envolvendo eugenia.

Junto com a desigualdade racial e de classe, o fascismo apoia a homofobia e a desigualdade de gênero. Entre as primeiras vítimas do nazismo estava um grupo de homossexuais nazistas, líderes das tropas de assalto da SA. Quando reclamações sobre o comportamento abertamente homossexual do líder das SA, Ernst Röhm, e de algumas de suas tropas de assalto que usavam camisas marrons continuaram a chegar a Hitler depois de ele tomar o poder, ele emitiu uma declaração oficial, argumentando que a questão pertencia “puramente à esfera privada” e que a “vida privada” de um oficial das SA “não pode ser objeto de escrutínio, a não ser que isso estivesse em conflito com os princípios básicos da ideologia nacional-socialista”.

As forças paramilitares das SA haviam sido usadas para vencer a batalha das ruas contra sindicalistas e a esquerda radical. As tropas de assalto agiam como uma força pseudorrevolucionária que apelava às queixas das multidões com uma condenação retórica do capital financeiro. Quando o número de membros das SA explodiu para 3 milhões em 1933, o patriciado militar e os barões da indústria sentiram-se bastante incomodados. Era necessário resolver o problema dos arruaceiros das SA, que denunciavam a decadência burguesa e clamavam pela redistribuição da riqueza e a conclusão da “revolução nazista”.

Depois de usar as SA para tomar o poder do Estado, Hitler então usou o Estado para neutralizar as SA. Agora, do nada, a homossexualidade de Röhm estava em conflito com a ideologia nacional-socialista. Na verdade, as SA tinham de ser decapitadas. Não porque seus líderes fossem homossexuais – embora essa tenha sido a razão dada –, mas porque havia a ameaça de elas se tornarem um problema sério. Röhm e cerca de trezentos outros membros das SA foram executados. Nem todos eram gays. Entre as vítimas, estava o propagandista veterano do nazismo, Gregor Strasser, que era suspeito de ter tendências de esquerda.

Sem dúvida, muitos nazistas eram extremamente homofóbicos. Um dos nazistas mais poderosos, o líder das SS, Heinrich Himmler, via os homossexuais como uma ameaça à masculinidade alemã e à fibra moral dos povos teutônicos, pois um “homossexual efeminado” não procriaria nem daria um bom soldado. A homofobia e o sexismo de Himmler uniram-se quando ele anunciou: “Nos Estados Unidos, se um homem apenas olha para uma moça, ele pode ser forçado a se casar com ela ou a ter de pagar uma indenização… Por isso, lá, os homens se protegem virando homossexuais. Nos Estados Unidos, as mulheres são como machados de guerra – elas atacam os homens”.12 Assim falou uma das grandes mentes do nazismo. Com o tempo, Himmler conseguiu estender a opressão aos gays para além da liderança das SA. Milhares de gays sem ligação com o partido pereceram em campos de concentração das SS.

Ao longo das eras, em diversas sociedades, as mulheres, se conseguissem encontrar uma oportunidade, tentavam limitar o número de filhos que tinham. Isso representa um problema em potencial para um patriarcado fascista, que necessita de amplos números de soldados e trabalhadores no setor de armamentos. Mulheres são menos capazes de defender seus direitos reprodutivos se mantidas subservientes e dependentes. Por isso, a ideologia fascista venerava a autoridade patriarcal. Cada homem precisa ser um marido, um pai e um soldado, dizia il Duce. A maior vocação de uma mulher era cultivar suas virtudes domésticas, cuidar de maneira devotada das necessidades de sua família, ao mesmo tempo que gerava tantos filhos para o Estado quanto pudesse.

A ideologia patriarcal era vinculada a uma ideologia de classe conservadora, que via todas as formas de igualdade social como uma ameaça aos privilégios e ao controle hierárquico. O patriarcado sustentava a plutocracia: o que seria da família se as mulheres não seguissem o roteiro? E, quando se perde a família, toda a estrutura social é ameaçada. O que seria do Estado e da autoridade, privilégios e riqueza da classe dominante? Os fascistas gostavam de defender aquilo que hoje é chamado de “valores familiares” – embora a maioria das principais lideranças nazistas dificilmente pudessem ser descritas como homens de família devotados.

Na Alemanha nazista, o racismo e o antissemitismo serviam para desviar a atenção de queixas legítimas para bodes expiatórios convenientes. A propaganda antissemita era habilmente personalizada para atrair diferentes públicos. Superpatriotas ouviam que os judeus eram internacionalistas estrangeiros. Desempregados ouviam que seus rivais eram o banqueiros e o capitalista judeus. Para fazendeiros endividados, era o usurário judeu. Para a classe média, eram o sindicalista e o comunista judeus. Aqui, novamente, temos um uso racional consciente de imagens irracionais. Os nazistas podem ter sido loucos, mas não eram estúpidos.

O que distingue o fascismo das autocracias patriarcais de direita é o modo como ele tenta cultivar uma aura revolucionária. O fascismo oferece um misto ilusório de apelos à massa que soam revolucionários e uma política de classe reacionária. O nome completo do Partido Nazista era Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, um nome que soa de esquerda. Conforme já observado, as tropas de assalto das SA tinham em suas fileiras militantes que defendiam a redistribuição da riqueza e que foram reprimidos por Hitler depois de sua tomada do poder.

Tanto os fascistas italianos quanto os nazistas alemães fizeram um esforço consciente para roubar a cena da esquerda. Havia mobilizações de massa, organizações de jovens, brigadas de trabalho, comícios, desfiles, faixas, símbolos e slogans. Falava-se muito sobre uma “revolução nazista” que revitalizaria a sociedade, varrendo toda a antiga ordem e construindo um novo mundo.

Por esse motivo, escritores convencionais sentem-se livres para tratar o fascismo e o comunismo como gêmeos totalitários. Isso nada mais é do que reduzir essência à forma. A similaridade na forma é tomada como razão suficiente para obscurecer a enorme diferença em termos de conteúdo real de classe. É muito comum ver escritores como A. James Gregor e William Ebenstein, inúmeros líderes políticos do Ocidente, além de outras vozes que supostamente pertencem à esquerda democrática misturarem fascismo com comunismo. Assim, Noam Chomsky afirma: “A ascensão das corporações foi na verdade uma manifestação do mesmo fenômeno que levou ao fascismo e ao bolchevismo, os quais surgiram do mesmo solo totalitário”.13 Mas, na Itália e na Alemanha da época, a maioria dos operários e dos camponeses fazia uma clara distinção entre o fascismo e o comunismo, assim como o faziam industriais e banqueiros que apoiavam o fascismo por medo e ódio do comunismo, um juízo amplamente baseado nas realidades de classe.

Antigamente, eu costumava dizer que o fascismo jamais conseguiu resolver as contradições irracionais do capitalismo. Hoje em dia, acredito que ele concretizou essa meta – mas somente para os capitalistas, não para o povo. O fascismo jamais teve a intenção de oferecer uma solução social que atendesse à população em geral, somente uma solução reacionária, que empurrava todo o ônus e prejuízo para a massa trabalhadora. Desnuda de sua parafernália ideológica e organizacional, o fascismo não passa de uma solução final para a luta de classes, a submersão totalitária e a exploração das forças democráticas para benefício e lucro de altos círculos financeiros.

O fascismo é uma revolução falsificada. Ele cultiva a aparência de política popular e uma aura revolucionária sem oferecer um autêntico conteúdo de classe revolucionário. Ele propaga uma “nova ordem” enquanto serve aos mesmos velhos interesses burgueses. A culpa de seus líderes não é a confusão que criam, mas a fraude que disseminam. O fato de que eles se esforçam para iludir o público não significa que eles mesmo estão iludidos.

Deferente com o fascismo

Um dos temas convenientemente negligenciados por autores convencionais é o modo como os Estados capitalistas ocidentais cooperaram com o fascismo. Em seus esforços colaboracionistas, o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain era definitivamente receptivo aos nazistas. Ele e muitos membros de sua classe viam Hitler como uma linha de defesa contra o comunismo na Alemanha, e a Alemanha nazista como uma linha de defesa contra o comunismo na Europa.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os aliados capitalistas ocidentais não se esforçaram para erradicar o fascismo da Itália nem da Alemanha, exceto no que diz respeito a julgar alguns dos principais líderes do nazifascismo em Nurembergue. Em torno de 1947, conservadores alemães começaram a retratar os promotores de Nurembergue como incautos enganados por judeus e comunistas. Na Itália, o forte movimento guerrilheiro que havia travado uma luta armada contra o fascismo logo passou a ser tratado como suspeito e impatriótico. No espaço de um ano após a guerra, quase todos os fascistas italianos foram soltos, ao passo que centenas de comunistas e outros guerrilheiros de esquerda que haviam lutado contra a ocupação nazista foram presos. A história foi colocada de pernas para o ar, transformando os Camisas Negras em vítimas e a esquerda radical em criminosa. Autoridades das forças Aliadas contribuíram para essas medidas.14

Sob a proteção das autoridades de ocupação dos Estados Unidos, a polícia, os tribunais, as Forças Armadas, as agências de segurança e a burocracia permaneceram, em grande medida, nas mãos de indivíduos que haviam trabalhado para os antigos regimes fascistas ou nas de seus recrutas ideológicos – como é verdade até os dias de hoje. Os responsáveis pelo Holocausto assassinaram 6 milhões de judeus, meio milhão de ciganos, milhares de homossexuais, vários milhões de ucranianos, russos e poloneses, entre outros, mas não sofreram consequência alguma. Isso se deu, em grande medida, porque as pessoas que deveriam investigar esses crimes eram também cúmplices dos mesmos atos.

Em comparação, quando os comunistas tomaram o poder na Alemanha Oriental, removeram cerca de 80% dos juízes, professores e autoridades públicas por sua colaboração nazista; prenderam milhares e executaram 600 lideranças nazistas por crimes de guerra. Eles teriam executado mais criminosos de guerra não fosse o fato de que muitos destes fugiram para o abraço protetor do Ocidente.

O que aconteceu com as empresas estadunidenses que colaboraram com o fascismo? O Chase National Bank, da família Rockefeller, usou seu escritório em Paris, na França de Vichy, para ajudar a lavar dinheiro alemão, a fim de facilitar o comércio internacional nazista durante a guerra, e fez isso com total impunidade.15 Conglomerados empresariais, como DuPont, Ford, General Motors e itt, eram proprietários de fábricas em países inimigos, onde produziram combustível, tanques e aviões que infligiram enormes prejuízos às forças Aliadas. Depois da guerra, em vez de ser processada por traição, a itt recebeu 27 milhões de dólares do governo dos Estados Unidos a título de reparações de guerra por danos causados em suas fábricas alemãs pelos bombardeios dos Aliados. A General Motors recebeu mais de 33 milhões de dólares. Os pilotos recebiam instruções para não atingir fábricas na Alemanha que fossem de propriedade de empresas dos Estados Unidos. Assim, enquanto a cidade de Colônia foi quase totalmente destruída pelo bombardeio dos Aliados, a fábrica da Ford, que fornecia equipamentos militares para o Exército nazista, permaneceu intocada; de fato, até a população civil alemã começou a usar a fábrica como abrigo antiaéreo.16

Durante décadas, as lideranças estadunidenses fizeram sua parte para manter o fascismo italiano vivo. De 1945 a 1975, as agências governamentais estadunidenses deram cerca de 75 milhões de dólares para organizações de direita na Itália, inclusive algumas com laços próximos à agremiação neofascista Movimento Social Italiano (MSI). Em 1975, o então secretário de Estado, Henry Kissinger, se encontrou com o líder do MSI, Giorgio Almirante, em Washington, para discutir quais “alternativas” poderiam ser avaliadas caso os comunistas italianos vencessem as eleições e assumissem o controle do governo.

Centenas de criminosos de guerra nazistas encontraram refúgio nos Estados Unidos, seja vivendo confortavelmente no anonimato, seja trabalhando para agências de inteligência estadunidenses durante a Guerra Fria, além de desfrutarem da proteção de indivíduos em posições de destaque. Alguns chegaram a participar dos comitês de campanhas presidenciais do Partido Republicano de Richard Nixon, Ronald Reagan e George Bush.17

Na Itália, de 1969 a 1974, elementos do alto escalão da inteligência militar e das agências civis de inteligência; membros da p2, uma loja maçônica de burgueses reacionários, autoridades pró-fascistas do Vaticano e membros do alto escalão militar do país; e a Gladio, uma força mercenária anticomunista criada pela Otan, embarcaram em uma campanha orquestrada de sabotagens e terror conhecida como a “estratégia de tensão”. Outros participantes incluíram um grupo neofascista secreto chamado Ordine Nuovo [Nova Ordem], autoridades da Otan, membros dos carabineiros, chefes da máfia, trinta generais, oito almirantes, além de membros influentes da maçonaria, como Licio Gelli (um criminoso de guerra fascista recrutado pela inteligência estadunidense em 1944). O terrorismo contou com a ajuda e o encorajamento do “aparato de segurança internacional”, inclusive da cia. Em 1995, a cia recusou-se a cooperar com uma comissão parlamentar italiana que investigava a estratégia de tensão (Corriere della Sera, 12 abr. 1995, 29 maio 1995).

Os conspiradores terroristas executaram uma série de sequestros, assassinatos e ataques a bomba (i stragi) [os massacres], inclusive a explosão que matou 85 e feriu cerca de 200 pessoas, algumas das quais gravemente, na estação de trem de Bolonha, em agosto de 1980. Conforme investigações judiciais posteriores concluíram, a estratégia de tensão não foi um simples produto do neofascismo, mas o resultado de uma campanha maior conduzida por forças do aparato estatal de segurança contra a crescente popularidade da esquerda democrática parlamentar. O objetivo era “combater por qualquer meio os ganhos eleitorais do Partido Comunista Italiano” e criar, por meio da campanha de terror, medo o bastante na população, a fim de solapar a social-democracia multipartidária e substituí-la por uma “República presidencial” autoritária, ou, em todo caso, “um Executivo mais forte e estável” (La Repubblica, 9 abr. 1995; Corriere della Sera, 27 mar. 1995; 28 mar. 1995; 29 maio 1995).

Na década de 1980, dezenas de pessoas foram assassinadas na Alemanha e na Bélgica, entre outros países da Europa Ocidental, por membros da extrema direita a serviço de agências de segurança estatais (Z Magazine, março de 1990). Esses atos de terrorismo foram praticamente ignorados pela mídia empresarial estadunidense. Tal como na estratégia de tensão anterior na Itália, os ataques foram concebidos para criar incertezas e semear o medo entre a população, de modo a debilitar essas sociais-democracias.

As autoridades nesses países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos fizeram pouco para expor as redes neonazistas. À medida que os bafejos de fascismo se transformam em um fedor inquestionável, somos lembrados de que a prole de Hitler continua conosco e de que eles têm vínculos perigosos entre si e no âmbito das agências de segurança de vários países capitalistas ocidentais.

Na Itália, em 1994, venceram as eleições gerais a Aliança Nacional, uma versão mais ampliada do neofascista msi, em coalizão com uma liga separatista do Norte, e o Força Itália, um movimento semifascista chefiado pelo industrial e magnata da mídia Silvio Berlusconi. A Aliança Nacional jogou com o ressentimento em relação ao desemprego, impostos e imigração. Ela pedia uma alíquota única de impostos para ricos e pobres, vouchers escolares, o desmantelamento dos benefícios sociais e a privatização da maioria dos serviços.

Os neofascistas italianos aprendiam com os reacionários estadunidenses como atingir as metas de classe do fascismo dentro dos limites de formas semidemocráticas: usar um otimismo “reaganesco” contagiante; substituir os militares de coturno por celebridades promovidas pela mídia; convencer as pessoas de que o governo é o inimigo – especialmente a área de serviços sociais –, ao mesmo tempo que se reforçam as capacidades repressivas do Estado; instigar antagonismos e a hostilidade racista entre a população residente e imigrantes; pregar as virtudes míticas do livre mercado; e buscar medidas tributárias e de gastos que redistribuam a renda para cima.

Nos países ocidentais, os conservadores utilizam maneiras difusas do apelo às massas fascista. Nos Estados Unidos, eles disseminam mensagens de tom populista para o “típico cidadão médio estadunidense”, ao mesmo tempo que sutilmente fazem pressão por medidas que atendam aos interesses das pessoas e dos grandes conglomerados empresariais mais abastados. Em 1996, o presidente da Câmara dos Deputados, o político de direita Newt Gingrich, ao anunciar uma nova agenda de cortes financeiros que supostamente revitalizariam a sociedade, declarou ser “um autêntico revolucionário”. Na Itália, na Alemanha, nos Estados Unidos ou em qualquer outro país, quando a direita fala em uma “nova revolução” ou uma “nova ordem”, faz isso a serviço dos velhos interesses endinheirados de sempre, levando-nos para aquela antiga estrada da reação e da repressão que tantos países do Terceiro Mundo foram forçados a pegar, a estrada que aqueles no topo querem que todos nós peguemos.

Notas

Entre os milhares de títulos que lidam com o fascismo, há algumas poucas exceções que valem a pena ser lidas, que não evitam questionamentos sobre a economia política e a luta de classes, por exemplo: Gaetano Salvemini, Under the Ax of Fascism [Sob o machado do fascismo] (Nova York: Howard Fertig, 1969); Daniel Guérin, Fascismo e grande capital (Campinas: Editora da Unicamp, 2021); James Pool e Suzanne Pool, Who Financed Hitler [Quem financiou Hitler] (Nova York: Dial Press, 1978); Palmiro Togliatti, Lições sobre o fascismo (São Paulo: Ciências Humanas, 1978); Franz Neumann, Behemoth [Colosso] (Nova York: Oxford University Press, 1944); R. Palme Dutt, Fascism and Social Revolution [Fascismo e revolução social] (Nova York: International Publisher, 1935).

Entre janeiro e maio de 1921, “os fascistas destruíram 120 sedes de agremiações de trabalhadores, atacaram 243 centros socialistas e outros edifícios, mataram 202 trabalhadores (além dos 44 mortos pela polícia e pela gendarmaria) e feriram 1.144”. Durante esse período, 2.240 trabalhadores foram presos, dos quais apenas 162 eram fascistas. No período de 1921-1922 até a tomada do poder por Mussolini, “500 escritórios de emprego de sindicatos e lojas de cooperativas foram queimados e 900 municipalidades socialistas foram dissolvidas”. Cf. R. Palme Dutt, Fascism and Social Revolution, p. 124.

3   No início de 1924, autoridades sociais-democratas no Ministério do Interior usaram o Reichswehr [as forças armadas alemãs de 1919 a 1935] e os Freikorps, as tropas paramilitares fascistas, para atacar manifestantes de esquerda. Eles aprisionaram 7 mil trabalhadores e fecharam jornais do Partido Comunista. Cf. Richard Plant, The Pink Triangle [O triângulo rosa] (Nova York: Henry Holt, 1986), p. 47.

Isso não quer dizer que diferenças culturais não possam levar a variações importantes. Consideremos, por exemplo, o papel horroroso que o antissemitismo desempenhou na Alemanha nazista quando comparada à Itália fascista.

Simon Kuznets, “Qualitative Aspects of the Economic Growth of Nations”, Economic Development and Cultural Change, v. 5, n. 1, 1956, p. 5-94.

Eugene Genovese (New Republic, 4 jan. 1995), um ex-esquerdista e neoconservador, prontamente chegou à conclusão de que ver o “fascismo como uma criatura do grande capital” é uma “interpretação disparatada”. Genovese estava aplaudindo Eric Hobsbawm, que argumentava que a classe capitalista não era a principal força por trás do fascismo na Espanha. Vicente Navarro (Monthly Review jan. 1996 e abr. 1996) respondeu, observando que os “principais interesses econômicos da Espanha”, auxiliados por pelo menos um magnata do petróleo do Texas e outros elementos do capital internacional, de fato financiaram a invasão fascista de Franco e o golpe contra a República Espanhola. Uma fonte crucial, Navarro escreve, foi o império financeiro de Joan March, fundador do Partido Liberal e proprietário de um jornal liberal. Considerado um modernizador e uma alternativa ao setor oligarca e reacionário do capital baseado na propriedade agrária, March cerrou fileiras com esses mesmos oligarcas tão logo percebeu que os partidos da classe trabalhadora estavam ganhando terreno e seus próprios interesses econômicos estavam sendo afetados pelo reformismo republicano.

Já havia um selo de von Hindenburg em homenagem a sua presidência. O velho Hindenburg, que não morria de amores por Hitler, disse sarcasticamente que faria de Hitler seu ministro dos Correios, porque “assim, ele pode lamber o meu traseiro”.

Wulf Schwarzwäller, The Unknown Hitler [O Hitler desconhecido], p. 197.

Charles Higham, Trading with the Enemy [Negociar com o inimigo] (Nova York: Dell, 1983).

10 George Mosse (org.), Nazi Culture [Cultura nazista] (Nova York: Grosset & Dunlap, 1966), p. 116-118.

11 Referência ao livro The Bell Curve [A curva normal], de Charles Murray e Richard Herrnstein, no qual os autores defendem uma tese extremamente conservadora e racista segundo a qual a inteligência e a riqueza seriam hereditárias, e os negros seriam menos inteligentes do que os caucasianos. (n.t.)

12 Richard Plant, The Pink Triangle: The Nazi War Against Homosexuals [O triângulo rosa: a guerra nazista contra os homossexuais] (Nova York: Henry Holt, 1988), p. 91.

13 Chomsky em entrevista para Husayn Al-Kurdi, Perception, mar./abr. 1996.

14 Roy Palmer Domenico, Italian Fascists on Trial, 1943-1948 [Fascistas italianos em julgamento, 1943-1948] (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1991), passim. Na França, igualmente, pouquíssimos colaboradores de Vichy foram  expurgados. “Ninguém  em cargo algum foi punido seriamente por seu papel na captura e deportação de judeus para os campos de concentração nazistas”, Herbert Lottman, The Purge [O expurgo] (Nova York: William Morrow, 1986), p. 290. O mesmo argumento pode ser dito da Alemanha; ver Ingo Muller, Hitler’s Justice [A justiça de Hitler] (Cambridge, ma: Harvard University Press, 1991), parte 3, “The aftermath” [As consequências]. As autoridades militares dos Estados Unidos reconduziram colaboradores fascistas ao poder em vários países do Extremo Oriente. Na Coreia do Sul, por exemplo, colaboradores coreanos e a polícia, treinada pelos japoneses, foram usados para suprimir forças democráticas de esquerda. O Exército sul-coreano foi comandado por oficiais que haviam servido no Exército imperial japonês “e tinham orgulho disso”. Vários deles haviam sido culpados de crimes de guerra nas Filipinas e na China: Hugh Deane, “Korea, China and the United States: A Look Back”, Monthly Review, fevereiro de 1995, p. 20 e 23.

15 Depois da guerra, Hermann Abs, conselheiro do Deutsche Bank e, na realidade, “tesoureiro de Hitler”, foi louvado por David Rockefeller como “o mais importante banqueiro de nossa época”. Segundo seu obituário no New York Times, Abs “desempenhou um papel dominante na reconstrução da Alemanha Ocidental depois da Segunda Guerra Mundial”. Nem o Times nem Rockefeller disseram uma palavra sobre as conexões nazistas de Abs, as incursões predatórias de seu banco na Europa sob ocupação nazista, tampouco de sua participação, como membro do conselho da I. G. Farben, no uso de trabalho escravo em Auschwitz: Robert Carl Miller, Portland Free Press, set./out. 1994.

16 Charles Higham, Trading with the Enemy.

17 Um deles, Boleslavs Maikovskis, um chefe de polícia letão que fugiu para a Alemanha Ocidental para escapar das acusações soviéticas de crimes de guerra e, na sequência, para os Estados Unidos, estava bastante implicado no massacre nazista de mais de duzentos aldeões letões. Ele trabalhou em um subcomitê do Partido Republicano na reeleição do presidente Nixon e, em seguida, fugiu de volta para a Alemanha, a fim de evitar uma investigação tardia nos Estados Unidos por crimes de guerra, morrendo na provecta idade de 92 anos (New York Times, 8 maio 1996). Criminosos de guerra nazistas foram ajudados por agências de inteligência, interesses empresariais, corpos militares do Ocidente e até mesmo pelo Vaticano. Em outubro de 1944, o comandante de paraquedistas alemão major Walter Reder foi responsável pelo massacre de 1.836 civis indefesos em um vilarejo próximo a Bolonha, na Itália, em represália contra as atividades dos guerrilheiros. Em 1985, após um apelo em seu nome pelo papa João Paulo ii, entre outros, ele foi solto – a despeito dos enérgicos protestos de parentes das vítimas.

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