sexta-feira, 31 de março de 2023

 

O Consenso de Washington está morrendo

Pressionados pelo avanço chinês, EUA e Europa reveem seus dogmas. Estão de volta, em todo o mundo, o estímulo estatal à economia, a industrialização dirigida e o protecionismo. Brasil atrasa-se, mas terá de acordar para a nova realidade

Imagem: Peter Reynolds/The Economist

Por Angela Nagle, no New Statesman | Tradução: Antonio Martins

Estaremos assistindo à morte do Consenso de Washington ? Concebido em 1989 e baseado na teoria de que o livre comércio era a base da riqueza das nações, ele defendia que as nações subdesenvolvidas deveriam se abrir ao livre comércio e à globalização para acumular riquezas. Qualquer estudante universitário das últimas décadas provavelmente pode se lembrar de como os debates sobre os direitos e erros do “capitalismo” normalmente tratavam a globalização e o livre comércio como sinônimos. Poucos que passaram pelas salas de seminários naqueles anos teriam encontrado um espectro de pensamento econômico sem Adam Smith de um lado e Karl Marx do outro.

Mas desde que a China emergiu como seu principal concorrente, os EUA se comportaram como se nunca tivessem acreditado na filosofia de desenvolvimento que sustenta a Consenso de Washington. Diante de um concorrente disposto a usar todo o arsenal de políticas econômicas nacionais dirigidas pelo Estado, os EUA, primeiro sob Donald Trump e agora com Joe Biden, voltaram ao nacionalismo econômico. Biden está empregando o desenvolvimento industrial dirigido pelo estado, o protecionismo, o esforço por atrair de novo indústrias (reshoring) e estratégias de guerra comercial de forma mais agressiva e eficaz do que Trump. A União Europeia (UE) está seguindo o mesmo caminho, aumentando os gastos do Estado em pesquisa e desenvolvimento com projetos como o Horizonte Europa, política de desenvolvimento industrial para todo o bloco, além de relaxar as restrições aos auxílios estatais para a indústria nacional. O retorno global à política industrial começou com o plano Made In China 2025 da China, anunciado em 2015, e foi seguido pelo Green Deal Investment Plan da UE em 2020. Em seguida, os EUA responderam com o 2022 Chips Act e o Inflation Reduction Act .

Este é um momento de transição, pois uma narrativa econômica central está sendo suplantada por outra. Como podemos entender isso? O historiador econômico Erik Reinert passou anos revivendo o que chamou de “outro cânone” da história e do pensamento econômico. Abandonado durante o domínio pós-guerra dos EUA (um período em que o livre comércio beneficiou o líder industrial inconteste do mundo), este outro cânone é um método para revelar os fatos, passado e presente, sob uma luz diferente. Não foi o imperialismo ou o laissez-faire, mas as políticas dirigidas pelo Estado que conduziram os milagres econômicos na Inglaterra do século XIX, na América pós-Guerra Civil, no Japão Meiji e no Wirtschaftswunder .na Alemanha do século XX. Entre os economistas mais importantes no aperfeiçoamento dessa escola de pensamento estão o alemão Friedrich List (1789-1846) e o americano Henry Charles Carey (1793-1879). Mas as raízes observáveis ​​de suas visões de mundo remontam a muito mais tempo.

Durante o Renascimento, as cidades-estado italianas alcançaram grande riqueza e êxito. Os pensadores tentaram formular teorias sobre a causa do sucesso desses estados e seu subsequente declínio. Giovanni Botero (1544-1617) argumentou que a riqueza das cidades era construída pelo que hoje chamamos de manufatura ou “valor agregado” – criando valor adicional às matérias-primas por meio da fabricação de bens mais complexos para exportação. De uma prisão em Nápoles, Antonio Serra escreveu seu Breve Tratado sobre a Riqueza e a Pobreza das Nações (1613), no qual argumentava que o incentivo ativo às exportações de manufaturados, e não a taxa de câmbio, era a causa da riqueza e a solução para o problema do declínio econômico. Foi o primeiro a teorizar sobre o que agora chamamos de efeito da atividade de “retorno crescente”.

A Inglaterra da dinastia Tudor já havia adotado esses princípios baseados na manufatura dirigida pelo Estado e os aplicado em larga escala. O país fora um importador retardatário de tecnologia do continente. Henrique VII conduziu-a de sua relativa pobreza à condição de potência industrial dominante no mundo. Começou a fazê-lo quando começou a tributar a lã bruta e a subsidiar a fabricação de tecidos de lã para exportação. A repetição dessa fórmula simples de desencorajar a simplicidade e encorajar a complexidade teve efeitos revolucionários. A decolagem industrial resultante da Inglaterra foi tão grande que acabou se tornando um problema para o resto do mundo ,que nem mesmo o bloqueio continental de Napoleão entre 1806 e 1814 conseguiu parar. Como alguma colônia ou nação independente poderia competir com a vantagem da Inglaterra, quando dependiam dos produtos manufaturados mais avançados ingleses e estavam presos a uma economia de matérias-primas? Os alemães e os americanos descobriram isso mais tarde.

Na verdade, Adam Smith advertiu os EUA contra o protecionismo e as políticas estatais para promover as indústrias nativas, alegando que, em vez disso, o cosmopolitismo de livre comércio era o caminho para a prosperidade, escrevendo em A Riqueza das Nações Nations (1776) que:

“Se os americanos, por combinação ou por qualquer outro tipo de violência, impedissem a importação de fabricantes europeus e, dando assim o monopólio aos seus compatriotas que pudessem fabricar os produtos similares, e desviassem qualquer parte considerável de seus capital nesse emprego, eles retardariam, em vez de acelerar, o aumento adicional no valor de sua produção anual, e obstruiriam, em vez de promover, o progresso de seu país em direção à verdadeira riqueza e grandeza”.

O sucesso futuro da república norte-americana foi construído ignorando esse conselho. No entanto, quando os EUA sucederam a Grã-Bretanha como a economia mais poderosa do mundo, a teoria de Smith foi pregada dogmaticamente às nações menos desenvolvidas. Foram os EUA, com sua geografia protegida pelo oceano, vasta união política federal e idéias avançadas de pensadores europeus exilados, incluindo alemães, franceses e irlandeses, que conseguiram construir o modelo de manufatura nacional em maior escala por meio do uso do protecionismo estatal. De Alexander Hamilton (1757-1804) a Henry Clay (1777-1852) e ao pensador mais radical Carey (principal conselheiro econômico de Abraham Lincoln), o sistema americano planejado empregou tarifas para proteger indústrias nativas incipientes de alto valor e um banco de investimento nacional para melhorias internas na infraestrutura complementar.

A transformação exigiu uma guerra de independência e uma guerra civil, mas sem ela os EUA nunca teriam se tornado o líder econômico, militar e político do mundo. A escola americana tirou todas as lições certas da política industrial dos Estados europeus e as aperfeiçoou em grande escala.

Um avanço significativo no pensamento alemão foi a publicação de Sistema Nacional de Economia Política (1841), de Friedrich List . A obra funcionou como uma contra-narrativa à visão de mundo do livre comércio, mostrando o verdadeiro caminho para a riqueza nacional, demonstrando como qualquer país menos desenvolvido poderia se livrar dos efeitos coloniais do livre comércio com uma economia avançada. Ao documentar o papel que a política industrial desempenhou na criação da riqueza nacional, o livro de List mostrou a todas as nações retardatárias como recriar o sistema de manufatura inglês em escala nacional.

Quando List publicou seu trabalho em 1841, ele queria transformar o Zollverein , uma união aduaneira dos estados alemães, em um único sistema econômico organizado por uma estrutura política, com base industrial. O conceito da Comunidade Econômica Europeia, uma união econômica federal ampliada com desenvolvimento industrial dirigido centralmente, origina-se de List. A Escola Histórica Alemã do século XIX e início do século XX desenvolveu toda uma disciplina a partir do estudo do desenvolvimento , enraizada neste método historicista. Em seu estudo da escola histórica alemã, The Visionary Realism of German Economics(2019), Reinert define sua abordagem como uma rejeição das leis naturais imutáveis, axiomas abstratos e interesse próprio individual na economia, enfatizando o papel das instituições, leis, políticas e estágios de desenvolvimento.

Marx se opôs à visão de List como meramente expressando os interesses da burguesia industrial alemã. Chegou a argumentar que o livre comércio era preferível aos objetivos mais conservadores e nacionalistas do protecionismo. Mas List viu a nação como um meio para as nações retardatárias se desenvolverem e escaparem da armadilha econômica imperialista do livre comércio, que ele argumentou ter beneficiado o líder industrial, a Grã-Bretanha, em detrimento das nações menos avançadas.

O conhecimento de como transformar uma nação retardatária em uma potência industrial se espalhou pelo mundo no século XIX. No Japão, o feudalismo foi substituído pela Restauração Meiji, um regime modernizador que entre 1868 e 1889 seguiu estratégias estatais de rápido desenvolvimento industrial. Indústrias estatais foram estabelecidas, ferrovias, ferro e estaleiros foram desenvolvidos e a autonomia tarifária mais tarde alcançada em 1911. O catalisador para a transformação do Japão foi a chegada da marinha norte-americana, que chocou uma nação feudal com sua supremacia tecnológica.

List foi traduzido para húngaro, francês, inglês, sueco, japonês, russo, chinês, finlandês, espanhol, entre outros. Na Rússia, mesmo antes da Revolução Bolchevique, o ministro czarista Sergei Witte foi inspirado por suas ideias e começou a implementar esses métodos, construindo a indústria e as ferrovias por meio de subsídios estatais, bem como apoiando indústrias-chave, como mineração e aço e aumentando as tarifas, enquanto promovia as exportações.

Reinert apontou: o pensamento por trás da desindustrialização do Plano Morgenthau (a proposta norte-americana de 1944 para desmantelar a indústria avançada alemã como um meio de permanentemente destituí-la politicamente), e a reindustrialização mais tarde implementada pelo Plano Marshall, no pós-guerra, revelaram um total consciência de que o poder nacional vem do poder industrial, exigindo a direção do Estado. A China também buscaria estratégias do sistema nacional para escapar do feudalismo, e alguns historiadores argumentam que List influenciou o pensamento de Deng Xiaoping durante sua liderança na década de 1980. É em sua decolagem industrial, fortalecida pela economia nacionalista anti-imperialista, que os EUA agora se inspiram.

O economista sul-coreano Chang Ha-joon escreveu em 2002 seu livro Chutando a Escada – Estratégias de Desenvolvimento em Perspectiva Hitórica. No auge do Consenso de Washington. Chang observou como o dogma do livre comércio serviu como propaganda imperial para os EUA, assim como serviu para a Grã-Bretanha no auge de seu poder, e como as nações retardatárias da Ásia usaram a política industrial dirigida pelo Estado para recuperar o atraso. Reinert também escreveu, sobre as relações centro-periferia na UE, que “quando duas nações em níveis tecnológicos amplamente diferentes se integram, a primeira vítima é a atividade econômica mais avançada da nação menos avançada”. Para manter seu domínio, a economia líder usa esse efeito de “primarização”. Mas se outra grande nação alcançar esse salto industrial dirigido pelo estado, Ela pode potencialmente superar mais forte, assim como os EUA fizeram após sua independência e como muitos por lá agora temem que a China faça.

O que nos leva à situação complexa a que chegamos hoje. O argumento mais forte da esquerda contra a UE foi seu conservadorismo fiscal e o enfraquecimento neoliberal da ajuda estatal às indústrias. No entanto, uma mistura de pressão populista e novas realidades geopolíticas levaram a UE a defender uma política de desenvolvimento industrial e tecnológico centralizada. Embora existam divergências entre os Estados membros, como parte do Plano Industrial Green Deal, a UE também começou a permitir as iniciativas de seus Estados- membros para aumentar os investimentos e desenvolver de forma mais rápida as energias renováveis, enquanto despeja fundos no desenvolvimento de todo o bloco. Isso dá ao mundo três grandes uniões econômicas e políticas: China, Europa e Estados Unidos – cada uma envolvida em uma corrida de desenvolvimento centralizada e dirigida pelo Estado, com tecnologia renovável em primeiro plano.

Os críticos do aspecto “verde” desse desenvolvimento argumentam que, para a Europa em particular, pode não ser uma boa ideia fazer uma transição muito rápida para se afastar dos combustíveis que construíram a Revolução Industrial, porque as tecnologias verdes ainda não seriam avançadas o suficiente para serem verdadeiramente renováveis. – ainda dependem da mineração. Mas os formuladores de políticas parecem confiantes de que um grande impulso como esse é necessário à medida que as fontes de energia não renováveis ​​diminuem. De qualquer forma, o período de globalização neoliberal acabou e a industrialização dirigida pelo Estado está de volta.

Junto com os muitos benefícios das estratégias de desenvolvimento do século XIX, vieram a competição geopolítica e depois a guerra. Isso também é inevitável agora? Biden e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, reuniram-se na semana passada para ampliar a cooperação entre os EUA e a UE e formar um bloco mais próximo contra a China e a Rússia, com base no protecionismo e nas cadeias de fornecimento conjuntas de matérias-primas críticas. Isso ocorreu depois de algum pânico na Europa sobre os danos potenciais causados ​​às indústrias européias pela Lei de Redução da Inflação norte-americana, com seus grandes subsídios e substituição de importações.

A Alemanha também está prometendo maiores gastos com a Otan e a Polônia anunciou que está enviando caças à Ucrânia. Numa estratégia agressiva contra a China, EUA, Reino Unido e Austrália estão agora na Aukus, uma organização trilateral militar que revelou recentemente, planos para construir um sistema de submarinos atômicos. Em resposta, agora há alguma especulação sobre uma cooperação naval nuclear “anti-Aukus” entre a Rússia e a China.

Apesar de todos os fatos relacionados ao declínio e decadência do Ocidente, é extraordinário ver o que um pouco de pressão geopolítica pode fazer. Para estabelecer a pax americana, o “velho continente” teve que fazer de um antinacionalismo cosmopolita liberal mais pacífico e humilde seu sistema moral oficial. Mas agora os governos ocidentais estão voltando às estratégias de desenvolvimento do século XIX, organizando o poder de um Estado ativo, em ciência, tecnologia, indústria e poder militar contra uma contra-aliança emergente da Rússia, China e talvez do Irã. A questão não é se isso levará a um conflito ou não. O conflito já começou na Ucrânia. A questão é apenas como e quando isso terminará e um novo acordo global será estabelecido.

quinta-feira, 30 de março de 2023

ATAQUES DE MOURÃO

 

Olá, tudo bem? 

Sou Anna Beatriz Anjos, repórter da Agência Pública.

Nos últimos meses, você deve ter se deparado com fotos de indígenas Yanomami desnutridos. As imagens aterradoras de crianças, adultos e idosos com ossos visíveis sob a pele, que infelizmente têm inundado as redes, nos dão a dimensão da tragédia que essas comunidades vêm enfrentando por causa da invasão de 20 mil garimpeiros ilegais em seu território, incentivada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

Eu, assim como você, sinto uma tristeza profunda ao olhar para essas fotos. Sinto que falhamos enquanto país e sociedade. Não só porque faço a cobertura da questão indígena já há alguns anos e sou apaixonada pelo modo de vida, resiliência e capacidade de resistência dessas populações. Mas também porque imagino o sofrimento dessas pessoas ao assistir a seus pais, filhos e parentes morrendo por causas totalmente evitáveis enquanto seus pedidos de ajuda eram ignorados.

Foi por isso que, quando descobri que o ex-vice presidente e agora senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) admitiu, em agosto de 2022, que os garimpeiros seguiam invadindo a Terra Indígena Yanomami e que era necessária uma “operação de grande envergadura” para retirá-los de lá – o que não feito pelo governo Bolsonaro –, só consegui pensar que precisava revelar isso o quanto antes para os nossos leitores

Nos últimos anos, organizações indígenas e veículos de imprensa como a Pública denunciaram exaustivamente o que vinha acontecendo com os Yanomami, mas Bolsonaro não fez o necessário para enfrentar o problema. Quando me deparei com a fala do Mourão, percebi que era mais uma prova contundente de que o ex-governo tinha conhecimento da situação e deliberadamente não agiu para frear a crise humanitária sem precedentes que acomete os Yanomami na maior terra indígena do país.

Essa fala do general da reserva do Exército aconteceu em uma das dez reuniões do Conselho Nacional da Amazônia Legal, do qual ele era presidente. Obtive as atas inéditas dos encontros pela Lei de Acesso à Informação (LAI) e publiquei duas reportagens contando o que Mourão e outros integrantes do governo discutiram nesses eventos. Essas reportagens fazem parte do especial "Caixa Preta do Bolsonaro", viabilizado graças ao apoio dos Aliados da Pública. Na semana passada, revelamos outro forte indício da inação proposital da gestão Bolsonaro em relação à crise Yanomami: um “plano estratégico” de dezembro de 2021 mostrando que o setor de inteligência do Ministério da Justiça – na época comandado por Anderson Torres, hoje preso – sabia que desnutrição infantil, mortalidade infantil e malária atingiam oito regiões com 22 aldeias na TI Yanomami. Ou seja, eles sabiam muito bem do problema, mas escolheram não agir

Antes de publicar as reportagens, dei a Mourão a oportunidade de se manifestar a respeito do que ele mesmo disse em reuniões oficiais. Se tivesse respondido, teríamos colocado sua defesa no texto matéria – dar espaço para o "outro lado" é praxe no jornalismo profissional. Ele preferiu ir às redes sociais depois que os textos já estavam no ar para atacar a Pública, dizendo que nosso jornalismo é de “baixa qualidade” e que distorcemos os fatos. Como justificativa, elencou uma série de mentiras: confundiu, por exemplo, as Terras Indígenas Yanomami e Raposa Serra do Sol, ambas em Roraima, mas de características e habitantes totalmente diferentes. E teve a desfaçatez de dizer que nos últimos quatro anos “não houve qualquer denúncia” em relação à crise Yanomami. Por que, então, ele próprio admitiu que o governo precisava realizar uma grande ação para expulsar os garimpeiros do território?

O que dificulta a vida do senador é que as atas são documentos oficiais e agora públicos, pois estão disponíveis no site da Pública a qualquer cidadão que queira consultá-las. Mourão pode divulgar mentiras para tentar se eximir de eventuais responsabilizações, mas os fatos são incontornáveis. Antes escondidos, agora estão expostos à sociedade e a autoridades nacionais e internacionais para que os examinem e tirem suas próprias conclusões.

A Pública existe justamente para jogar luz sobre fatos como esses. Nosso jornalismo sério, rigoroso e comprometido com os direitos humanos é forte e não se intimida frente aos interesses escusos de quem tenta detratá-lo. Os ataques de Mourão mostram, inclusive, que o jornalismo da Pública está no caminho certo. Nós incomodamos os poderosos que precisam ser incomodados, seja porque cometem crimes, seja porque atacam a democracia, seja porque ficam de braços cruzados diante de tragédias humanitárias como a que atinge os Yanomami.

Você pode demonstrar que Mourão está errado quando diz que nosso jornalismo é de “baixa qualidade” se tornando um Aliado da Pública hoje. Ter os leitores ao nosso lado é essencial para seguirmos fazendo o jornalismo que precisa ser feito. 

 
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E em março, mês do aniversário da Pública, todo mundo que entrar para o Programa de Aliados vai ganhar de presente nosso livro comemorativo de aniversário, em que contamos nossa história e refletimos sobre o futuro. Aproveite! 
 
Até a próxima! 

Anna Beatriz Anjos
Repórter de Clima da Agência Pública

 

Insulina: um desafio a ser enfrentado

Medicamento para diabetes é utilizado por cerca de 1,3 milhões de brasileiros diariamente. Mesmo assim, sua produção se concentra em três corporações da Big Pharma, que minam tentativas de fabricação nacional. Como superá-las?

Imagem: Will Ludwig/C&EN
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Por Reinaldo Guimarães, autor convidado

De acordo com a International Diabetes Federation (IDF), em 2021 havia cerca de 537 milhões de adultos com diabetes no mundo, o que representa cerca de 9,3% da população adulta global (1). A estes pode-se somar os diabéticos abaixo de 20 anos, todos insulinodependentes. Em 2021 foram 6,7 milhões de óbitos pela doença. Para efeito de comparação, o total acumulado de mortes por covid-19 durante todo o período pandêmico até 21/3/2023 foi de 6,87 milhões (2).

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (2019) realizada pelo ministério da Saúde e o IBGE, a prevalência do diabetes mellitus no Brasil é de cerca de 7,7%, o que representa aproximadamente 13,4 milhões de pessoas com a doença (3). De acordo com as estatísticas internacionais, cerca de 10% dos diabéticos fazem uso de insulina, o que aponta cerca de 1,3 milhões de brasileiros fazendo uso contínuo do medicamento, mais de uma vez por dia. 

Sugere-se ainda que esses números podem estar subestimados. Esse quadro, por si só, revela o papel central da insulina na política de assistência farmacêutica brasileira. Talvez seja o medicamento individual e eficaz de maior impacto para a garantia de sobrevivência de tantas pessoas.

Frente a este “diagnóstico”, qual é a situação global da insulina? Melhor dizendo, qual a situação global das insulinas (pois há vários tipos de apresentação e modos de dispensação)? Como pode um medicamento com tal impacto estratégico e sanitário ter o seu mercado mundial dominado por apenas três empresas que, entre si, dividem-no com práticas que se aproximam de cartéis? A norte-americana Eli Lilly, a dinamarquesa Novo Nordisk e a francesa Sanofi respondem por cerca de 90% de todas as vendas no mundo (4).

Como a imensa maioria das doenças e agravos, é o sul do planeta que suporta a maior carga no diabetes, mas nem de longe os problemas postos pelo oligopólio da insulina são vividos apenas por nós. Em 2022, o presidente Joe Biden sancionou uma lei impondo um teto para o pagamento nas compras de insulina feitas diretamente pelos pacientes inscritos no componente público do seu desregulado sistema de saúde (Medicare). Pediu a compreensão das três empresas e recentemente agradeceu a Eli Lilly por ter baixado voluntariamente seus preços.

Mais um comentário geral: alguém poderia perguntar por que não há genéricos para um medicamento com mais de 100 anos de uso. Bem, isso acontece porque a cada pequeno desenvolvimento no produto (análogos) e, principalmente na via de administração, novas patentes são depositadas. E, ao lado disso, maciças campanhas publicitárias são realizadas junto aos médicos que em sua maioria são bastante receptivos às novidades. 

E no Brasil, como estão as coisas? Nossas tentativas de romper com a dependência do oligopólio nos últimos 50 anos não foram, até hoje, bem sucedidas. Para este cenário contribuíram fragilidades de nossas políticas industriais no período, a captura de alguns agentes políticos e regulatórios pelos interesses desse oligopólio e também a fragilidade de algumas iniciativas construídas para enfrentá-lo. 

No centro dessas tentativas encontra-se a ascensão e queda da empresa mineira originalmente familiar Biobrás, de propriedade das famílias Mares Guia e Emerich. A empresa explorava então a rota tecnológica da época, a partir do pâncreas porcino, matéria prima que fornecia à Eli Lilly, sua sócia minoritária. Com o desenvolvimento da nova rota biotecnológica, a Biobrás teve que explorar essa nova tecnologia e, para isso, desfez a sociedade com a empresa norte-americana e iniciou processo com a contratação de dois pesquisadores – Spartaco Astolfi Filho e Josef Ernest Thiemann, então na Universidade de Brasília.  

Mesmo bem sucedida no desenvolvimento dessa insulina recombinante, ela terminou excluída do mercado público pela prática de dumping por parte das duas empresas oligopolistas na virada do século. Após manobras que retardaram uma decisão favorável à Biobrás pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), não lhe restou outra saída senão vender a empresa à Novo Nordisk que, alguns anos depois, a extinguiu.

A outra iniciativa foi o convênio entre Farmanguinhos e a empresa estatal ucraniana Indar, que foi submetido a inúmeros constrangimentos regulatórios que, quando superados, enfrentou a repetição de processos de dumping na competição para a venda para o SUS. Nesse caso, vale mencionar que após a saída da Biobrás do mercado, os preços da insulina nas concorrências explodiram e os vencedores eram quase sempre ou uma ou outra (Eli Lilly ou Novo Nordisk). Quando foi anunciado o acordo entre Farmanguinhos e a empresa ucraniana, os preços desabaram com redução de cerca de 2/3 do preço anterior.

De modo bastante detalhado, deixo abaixo dois links que ajudam a compreender o desafio da autossuficiência brasileira em insulina.  

Matéria da Revista Fapesp (Edição 302 abril 2021) https://revistapesquisa.fapesp.br/a-descoberta-da-insulina/

Bárbara Ferreira. Produção Pública de Insulina. Cadernos de Farmanguinhos 4: http://www2.far.fiocruz.br/farmanguinhos/images/producaoinsulinabarbara.pdf 


Notas: 

1) https://diabetesatlas.org/atlas/tenth-edition/ 

2) WHO Coronavirus (COVID-19) Dashboard. https://covid19.who.int/ 

3)  https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-11/ibge-pelo-menos-uma-doenca-cronica-afetou-52-dos-adultos-em-2019#:~:text=A%20PNS%20estimou%20que%207,homens%2C%206%2C9%25 

4) https://investigateinsulinnow.com/insulin-cartel

terça-feira, 28 de março de 2023

 

Exclusivo: Prostitutas de Brasília relatam abusos em boate durante visita de frente de prefeitos

 Atualizado em 28 de março de 2023 às 8:21
Mensagem da boate Paradise para as garotas de programa
Mensagem da boate Paradise para as garotas de programa. Foto: Reprodução

Prostitutas da boate Paradise World Class Clube, uma das mais exclusivas de Brasília, estão relatando abusos os mais variados. As garotas de programa são cobradas em R$ 100 se entrarem depois das 22h. É cobrada multa R$ 285 pela falta.

Além das condições precárias de trabalho, os empregadores taxam ainda R$ 700 pelo alojamento semanal das profissionais em cima da boate. A alimentação não está incluída para as profissionais.

A pressão pelo trabalho leva-as a dormir na área de fumantes. Algumas atendem o dia todo, até as 4h da madrugada, e trabalham à noite sob efeito de drogas, de acordo com diferentes relatos obtidos pelo DCM.

A Paradise está recebendo políticos da Frente Nacional de Prefeitos, que realizam reuniões com o governo Lula.

Mensagem de WhatsApp da casa dá o tom: “Boa tarde, meninas! Semana da Marcha (sic) dos Prefeitos. Não percam, contamos com todas vocês. Nosso Instagram está bombando, com muitas reservas de camarote”.

Há relatos de alcaides que gastaram até R$ 50 mil numa noite.

boate Paradise
A boate Paradise lotada. Foto: Reprodução/Metrópoles

O site Metrópoles noticiou em 19 de março que a Paradise encheu de prefeitos no dia 14. Mais de cinquanta homens lotaram o lugar, caro e de perfil discreto, na Asa Norte pelo preço de entrada de R$ 220.

Os programas naquela festa, segundo o site, chegaram a R$ 1 mil, com pagamento de R$ 250 do uso do quarto e três bebidas. Um drink com gim chega a R$ 95.

Um dia antes, a boate recebeu apenas quatro clientes, reportou o Metrópoles.

DCM procurou a boate Paradise World Class Clube Brasília para prestar seus esclarecimentos. Até o momento da publicação desta reportagem, não recebemos novas informações.

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Economia: tudo o que falta mudar

Num seminário histórico, pensadores de relevo internacional reunidos pelo BNDES sugerem: país continua refém do rentismo. Juros impostos pelo BC são sabotagem. Mas há saída – em políticas que o ministério da Fazenda ainda resiste em adotar

Imagem: Dana Schutz

MAIS
A íntegra às gravações ao seminário Estratégias para o Desenvolvimento no século XXI está disponível em dois vídeos [20/03 e 21/03]. O texto a seguir não se propõe a resenhar o evento, mas a destacar suas contribuições essenciais ao debate sobre a reconstrução nacional

A muralha de silêncio erguida para que o Brasil mantenha-se tão desigual e regredido foi vazada brevemente esta semana. Pensadores convidados pelo economista André Lara Resende sustentaram, num seminário promovido pelo BNDES1 em 20 e 21/3, ao menos quatro ideias esperançosas, e contrárias à ortodoxia econômica que sufoca o país há muito. Num Ocidente mergulhado em crise civilizatória e acossado pelo fascismo, afirmam eles, um processo de reconstrução nacional com redução das desigualdades, desencadeado por aqui, pode ter repercussão global. O prestígio internacional de Lula é um catalisador muito potente.

Falta romper obstáculos. A taxa de juros obscena mantida pelo Banco Central em favor do rentismo é o primeiro – mas não o único. Ao invés de lançar sinais de bom-mocismo ao BC e aos oligarcas financeiros, o governo federal pode, por meio do ministério da Fazenda, fazer a sua parte. Significa multiplicar o investimento público, em duas direções complementares: serviços públicos e infraestrutura. Além de melhorarem as condições de vida da população, desfazendo a sensação de desamparo que alimenta o fascismo, estas ações são capazes de gerar milhões de postos de trabalho.

De onde virão os recursos? Não faltam ao Estado – que emite todos os anos centenas de bilhões de dólares não previstos no Orçamento, para pagar juros ao 0,1% – condições de financiar este movimento. Mas no seminário surgiu uma ideia suplementar. Num ambiente parlamentar fisiológico, em que cada mínima elevação do gasto público é negaceada por deputados e senadores em busca de “compensações” pelos seus votos, talvez um tipo específico de capital externo tenha papel acelerador. A visita de Lula à China, a ser remarcada, ajudará a testar a hipótese.

* * *

A ambição do seminário, de arejar um debate econômico marcado pelo marasmo e pelos dogmas, ficou clara já nas intervenções de abertura. André Lara Resende, em cujo currículo está a condição de cocriador do Plano Real, fez uma das provocações essenciais [veja no vídeo 1, entre 1h14m22 e 1h26m20]. Lembrou que a teoria não pode permanecer cega aos fatos novos e marcantes ocorridos nos últimos anos. Referia-se à criação maciça de dinheiro pelos Estados, para salvar o sistema financeiro na crise de 2008 e na pandemia. Este movimento não provocou inflação – frisou ele – e desmente a velha teoria quantitativa da moeda, base teórica usada como pretexto pelos bancos centrais do Ocidente para elevar as taxas de juros. Uma nova concepção, prosseguiu André, precisa rever o viés antiestatista, que marcou os anos do neoliberalismo, e perceber que a ação de um “Estado competente” tornou-se cada vez mais essencial para ativar as economias, livrá-las do peso do rentismo e voltá-las à realização dos objetivos éticos das sociedades. (Vale acompanhar uma exposição mais detalhada das ideias do economista, em aula seminal que ele proferiu na Unicamp, a convite da professora Simone Deos, em 2022).

A mudança nos rumos do debate macroeconômico, que tarda tanto em chegar ao Brasil, foi realçada na intervenção de Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, que fez questão de vir ao seminário em pessoa e dialogou diretamente com Lara Resende [vídeo 1, de 1h26m30 até 2h06m25].“Há hoje a compreensão profunda de que os mercados, sozinhos, não solucionam os problemas das sociedades – nem os da economia”, frisou ele. Na revisão das velhas teorias, acrescentou, algumas mudanças estão ficando claras. Os países que seguiram o neoliberalismo estagnaram. E a crença no “trickle-down” – ou seja, a ideia de que o dinheiro despejado no topo da pirâmide social escorreria para o conjunto da sociedade – fracassou inteiramente. Ela só resultou em mais desigualdade. “É ótimo”, avançou o pesquisador, “que um novo governo Lula possa assumir sob os novos ares”.

Feitas estas considerações conceituais, Stiglitz passou a debater explicitamente o cenário brasileiro. Seu foco concentrou-se em desnudar a política do Banco Central, demonstrando que seu objetivo não é combater a inflação, mas manter e até ampliar a concentração de riquezas. Nas condições atuais, argumentou o Prêmio Nobel, juros altos não debelam a espiral de preços, podendo inclusive expandi-la ainda mais. É que a inflação de hoje não é causada por excesso de demanda, mas por estrangulamento de pontos importantes das cadeias produtivas. Para saná-lo, seria preciso investir: por exemplo, na produção de alimentos para o consumo interno, de chips para automóveis e eletrônicos, ou de casas para suprir o déficit habitacional. Ocorre que, ao remunerar as aplicações especulativas com taxas de juro real muito superiores até mesmo que o crescimento da economia chinesa, o BC desestimula estes investimentos. As empresas em condições de especular, ou de exercer controle monopolista sobre os mercados (as concessionárias de serviços públicos, por exemplo), lucram – mas não aplicam seus ganhos na expansão das atividades.

A economia patina. Stiglitz citou dados eloquentes. Entre 2010 e 2021, o PIB brasileiro per capita cresceu mirrados 0,53% ao ano, muito abaixo dos 4% alcançados pelos países de renda média-alta e mesmo do 1,4% nas economias maduras da OCDE. “Os números da taxa de juros brasileira – 13,75% ao ano, ou 8% acima da inflação – teriam condenado à morte qualquer economia. Se o Brasil escapou, foi porque ainda conta com os bancos públicos como o BNDES”, concluiu o economista.

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Menos de 48 horas depois de ele falar, o Banco Central brasileiro manteria, em reunião mensal, sua aposta na taxa de juros mais alta do planeta e na política que mediocriza a economia brasileira para que siga intacta a captura da riqueza social pelos mais ricos. Dirigido por um bolsonarista que tem mandato até o final de 2024, o BC dificilmente mudará, exceto se crescer muito a pressão política e social sobre ele. E o que fazer até lá? Foi ao tratar deste tema que o seminário do BNDES apontou a importância crucial do investimento público. Evidenciou-se, por consequência, o erro desastroso de perspectiva do ministério da Fazenda, ao não adotar ações que ampliem este investimento, preferindo apostar até o momento num “ajuste fiscal”. Dois expositores ilustres abordaram o tema: a indiana Jayathi Ghosh e o norte-americano Jeffrey Sachs.

Ghosh, que é professora na Universidade de Massachussets (EUA) e cocoordena a ICRICT – Comissão Independente para a Reforma da Tributação Internacional sobre as Corporações – usou um termo forte e raro no ambiente macroeconômico: “masoquista”. É esta, segundo ela, a impressão transmitida pelo Brasil, quando adota por iniciativa própria medidas que restringem o investimento público, não vivendo condições que o obriguem a isso [ver vídeo 2, entre 1h56m50 e 2h18m40].

“Não consigo pensar em nenhum outro país que esteja obcecado em obter superávits primários, quando não tem débito externo relevante e não está constrangido a fazê-lo por um acordo com o FMI”, destacou Ghosh. Ela disse considerar a ausência de um grande plano de investimentos públicos tão grave quanto as taxas de juros estratosféricas impostas pelo Banco Central. E explicou por quê: “Os programas sociais são ótimos, mas não bastam. Para transformar o país, vocês precisam de gastos que só o Estado é capaz de realizar, porque têm como objetivo reduzir a desigualdade. E são estes gastos, aliás, que estimularão as empresas a também investir, para aproveitar as oportunidades criadas”.

Ao final de sua fala, a economista enviou dois recados suplementares, que o ministério da Fazenda também deveria ouvir. Nenhuma reforma tributária, afirmou ela, ajudará a transformar a sociedade, se não tiver como foco central obrigar os mais ricos – “o 0,1%, e não a classe média” – a pagar impostos relevantes. E o Brasil não deveria apressar-se em ingressar na OCDE, nem em firmar acordos de “livre” comércio como o que está em negociação com a União Europeia. Tais compromissos impõem cláusulas que constrangem a ação dos Estados, em favor das grandes corporações. Fazem-no, por exemplo, ao impedir determinados tipos de tributação sobre as transnacionais e ao proibir o controle dos fluxos cambiais. São limites que o Brasil não tem por quê aceitar.

Já Sachs, diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Colúmbia e assessor da secretaria-geral da ONU [vídeo 2, de 36m30s a 1h01m], foi ainda mais enfático e incisivo ao abordar a necessidade de multiplicar o investimento público. Para ele, a falta deste componente é a razão essencial para a estagnação da economia brasileira, há quatro décadas e – pior – para o fato de o país estar se distanciando dos grandes saltos tecnológicos previstos para futuro breve.

Se a taxa geral de investimento já é raquítica (17% do PIB, contra cerca de 30% na China, por exemplo), o caráter minúsculo das inversões realizadas pelo Estado impressiona ainda mais, afirmou o economista. Educação e Saúde públicas, necessárias para a formação de capacidades humanas, recebem menos de 2,5% do PIB cada uma. Como resultado, há um declínio abrupto da escola frequentada pelas maiorias, o que se escancara em testes comparativos internacionais, como o PISA e os da OCDE. Neles, o país, cujo PIB é hoje o 12º do mundo (tendo chegado a ser o 6º), está atrás de mais de 80 nações. E a mesma condição paupérrima, acrescentou Sachs, repete-se na infraestrutura – bastando, para constatá-lo, observar a falta de saneamento básico, as precaríssimas condições de transporte nas cidades, os riscos recorrentes de apagões elétricos ou a ausência completa de uma rede ferroviária para passageiros.

Por tudo isso, “não é momento pra austeridade fiscal, mas de aumento firme dos investimentos públicos”, frisou o professor. Ao apontar os caminhos para fazê-lo, uma de suas sugestões despertou polêmica. O Brasil tem, segundo ele, capacidade de se endividar externamente. Poderia fazê-lo, em especial, em agências oficiais – em vez de recorrer aos bancos privados. Entre tais agências, Sachs destacou a Banco dos BRICS, que passará a ser presidido por Dilma Rousseff e as “Novas Rotas da Seda” (ou “Iniciativa do Cinturão e da Rota”), por meio da qual a China tem investido centenas de bilhões de dólares em todo o mundo.

Intervenções posteriores discordaram deste aspecto da fala de Sachs. A indiana Jayathi Ghosh, e o economista Leonardo Burlamaqui, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e da UERJ, lembraram que não faltam ao Estado brasileiro condições para criar recursos e destiná-lo aos investimentos públicos. E realçaram que esta faculdade é hoje empregada para alimentar o rentismo.

Ainda assim, há ao menos uma razão para observar a sugestão de Sachs de forma mais atenta. A capacidade material do Estado brasileiro em criar moeda não se traduz automaticamente em capacidade política. A razão é a captura das instituições pelo capital financeiro. Para destinar bilhões de reais aos rentistas, basta uma reunião do Banco Central, sem necessidade alguma de consulta ao Congresso Nacional ou de alteração do Orçamento. No entanto, para cada autorização mínima do Parlamento à elevação do investimento público é necessário muitas vezes emendar a própria Constituição. Conservadores em sua grande maioria, os parlamentares vendem muito caro o seu voto. Frequentemente, negam-no, tanto para evitar que um governo democrático seja bem-sucedido quanto por estarem alimentados pelo discurso em favor da “disciplina fiscal”.

Nestas condições específicas, talvez a entrada de recursos estatais ou paraestatais externos pudesse ter efeito-demonstração saudável. Ela tornaria visível a importância do investimento público, sua capacidade de melhorar as condições de vida e de gerar ocupações dignas em quantidade. E ajudaria a evidenciar o absurdo das restrições atuais. O tema demanda mais debate e talvez a hipótese de Sachs possa ser averiguada num evento importante, como a viagem que Lula fará à China.

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É impossível relatar todo o seminário neste texto breve. A programação completa está disponível aqui e a íntegra das falas, nos vídeos citados no texto. Entre os participantes brasileiros, destacaram-se três mulheres. A procuradora Élida Graziane coordenou a segunda mesa do primeiro dia de maneira cortês, porém mordaz. Fez questão de frisar mais de uma vez, aos palestrantes que convergiam para cálculos sobre superávit primário, que o Orçamento não pode ser, num governo democrático, um amontoado de planilhas – mas uma peça política destinada a fazer valer os direitos inscritos na Constituição. A ministra Esther Dweck, que falou na abertura, destacou a necessidade de abandonar a busca de índices que agradam aos mercados e buscar o planejamento de médio e longo prazos. A ex-ministra Tereza Campello, hoje diretora do BNDES, lembrou (video 2, de 1h17m até 1h35m20) que, nos últimos anos, o país regrediu, em diversos campos, à condição que vivia no início do século passado. Referiu-se ao trabalho escravo, à fome, ao garimpo em áreas indígenas. Afirmou que o BNDES estará a serviço da reconstrução nacional, objetivo proposto por Lula. Mas sustentou que este processo não pode servir para reprisar as distorções do passado – em especial a desigualdade. Suscitou um exemplo expressivo: o do agronegócio atual, que se apresenta como “contemporâneo”, mas produz devastação ambiental e índices baixíssimos de emprego, estando também associado a um sistema alimentar deplorável. Beneficia-se ainda assim a grande massa de empréstimos destinados à agricultura, restando à produção familiar menos de 20%…

O ministro Fernando Haddad fez, à distância, a penúltima fala. Foi correto, porém protocolar. Não se envolveu no debate dos temas suscitados pelos palestrantes – embora estes dialogassem com opções políticas de sua pasta. Preferiu expor, sem entrar em polêmicas, a agenda do ministério, baseada na apresentação de um “novo arcabouço fiscal” e numa “reforma” tributária.

A última intervenção coube a Aloísio Mercadante, presidente do banco. Saudou Haddad e desejou-lhe sucesso. Mas realçou: “o BNDES está de volta”, frisando que o banco exerceu historicamente, além do papel de financiador, o de espaço de reflexão sobre os rumos da economia brasileira. Lembrou que na condução das políticas econômicas conviveram, em muitos momentos da República, pontos de vista diferentes – “uns pisando mais no acelerador, outros no freio”. E prometeu: “estarei sempre do lado esquerdo”…

Houve quem visse, nesta expressão de não-unanimidade, um alento e um alívio. É ótimo saber que o debate está aberto no próprio governo e que, portanto, a Economia brasileira não está fadada outra vez ao comando de um pensamento único.


1O evento foi realizado com cooperação do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e com a Fiesp