terça-feira, 12 de novembro de 2024

POR QUE OUVIR UM PODCAST DE UMA HISTORIA TÃO HORRIVEL?

 

Antes de ir ao ar o primeiro episódio do podcast Caso K - A História Oculta do Fundador da Casas Bahia, organizamos dois eventos de escuta do podcast, um presencial e um online, exclusivos para os nossos Aliados, que ajudaram a financiar a produção. 

Em um desses eventos, uma das nossas apoiadoras, a Elis, nos disse que se perguntou “por que as pessoas iriam querer ouvir um podcast sobre uma história tão terrível?”. 

Essa reflexão tem me acompanhado nos últimos dias e me ajudado imensamente a pensar nas ações de divulgação do Caso K (valeu, Elis!). 

As pessoas precisam ouvir essa história porque ela diz muito sobre nosso país e suas estruturas de poder. Samuel Klein manteve um esquema de exploração sexual de meninas por décadas porque era um homem poderoso. E explorava meninas pobres. As pessoas precisam ouvir essa história porque ela foi omitida por décadas. As pessoas precisam ouvir essa história porque cada vez que falamos dela, recebemos mais e mais e mais relatos e informações. As pessoas precisam ouvir essa história para que ela não se perpetue. Importante lembrar aqui que Saul Klein, filho de Samuel, recentemente foi condenado por manter um esquema de exploração sexual semelhante ao do pai.

Um exemplo de porquê contar essa história é importante foi o que aconteceu depois que publicamos a primeira reportagem sobre o caso, em 2021. Após a publicação, a Família Klein decidiu suspender as atividades do Instituto que levava o nome do empresário e promovia atividades na área da educação. Além disso, mulheres se reuniram na frente da sede das Casas Bahia, em São Caetano do Sul, em manifestação para pedir que a rua com o nome do empresário fosse rebatizada, assim como um centro médico público que o homenageia. Motivado pela reportagem, o Ministério Público do Trabalho também abriu inquérito para apurar a relação das Casas Bahia com as denúncias. Na época, o então vereador Toninho Vespoli (PSOL) propôs um PDL que retirasse o título de “Cidadão Paulistano” concedido em homenagem a Klein em 2006. 

Baseada nas revelações da Pública, a deputada Sâmia Bomfim (PSOL), apresentou um Projeto de Lei para alterar o prazo prescricional para a reparação civil das vítimas de crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes. O PL foi aprovado na Câmara no final de 2023 e aumentou para 20 anos o prazo para ações reparatórias que tratem destes crimes. Pela proposição, o prazo começaria a ser contado quando a vítima atingir 18 anos.

Samuel morreu impune, mas as sobreviventes de seu esquema perverso seguem vivas, provavelmente sendo bombardeadas por incontáveis anúncios da Casas Bahia em todas as mídias, assim como eu e você. As pessoas precisam conhecer e ouvir as histórias dessas mulheres.

Foi por isso que a gente decidiu fazer esse podcast, que vai muito além do que a reportagem foi. Nesta produção em áudio, conseguimos trazer novos relatos, novas investigações e novas entrevistas que mergulham mais fundo neste esquema. 

Os quatro episódios desta primeira temporada contarão como as acusações contra Samuel Klein envolvem camadas de violência, medo, manipulação e um jogo de poder e influência. Este podcast também é uma história sobre o papel da imprensa e do Judiciário brasileiro – uma verdadeira história de Brasil.

Por isso, não deixe de ouvir esse podcast. 

E também não deixe de apoiar o jornalismo independente, que não tem medo de investigar empresas e empresários, e que luta para pautar o debate e causar impactos reais na sociedade. Contar essa história só foi possível com o apoio do público, mas ela não termina aqui. 

Queremos seguir investigando essa engrenagem de poder em uma segundo temporada, e também fazer com que esses primeiros episódios mobilizem o público e cheguem em quem tem o poder de tomar decisões. Mas precisamos de você para fazer isso acontecer. 

Torne-se um Aliado da Pública e faça parte da denúncia de um dos maiores escândalos empresariais do país. Doe agora e financie mais ações de interesse público.

QUERO FAZER PARTE DISSO!
Um abraço,

Marina Dias
Diretora de comunicação da Agência Pública

 

Lula na encruzilhada

Por trás da hesitação diante pacote proposto por Haddad, há uma guerra. A Faria Lima e a mídia chantageiam para definir de vez os rumos do governo. O presidente parece ter percebido que, se ceder, caminha para uma derrota desonrosa em 2026

Imagem: Evaristo Sá
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Por José Luís Fevereiro

Lula foi eleito em 2022 numa frente ampla que ia da esquerda até a parte da Faria Lima, mais exatamente a Febraban.

O mesmo acordo, “com o STF com tudo” que tirou Lula de Curitiba e anulou suas condenações fajutas, viabilizou a sua candidatura em defesa das liberdades democráticas e contra Bolsonaro.

A Democracia Liberal não é apenas um conjunto de regras para arbitrar as disputas entre classes sociais, mas também para arbitrar os conflitos intra classes sociais. Bolsonaro era disfuncional para isso e parte da burguesia brasileira decidiu se livrar dele.

O acordo com Lula, a Frente Ampla, não era apenas colocar Geraldo Alckmin na sua roupagem de simpático médico do interior como vice. Alckmin era o símbolo de um acordo.

Lula obtinha um expressivo impulso fiscal garantido pela PEC da transição que somava quase 200 bilhões de reais ao já turbinado orçamento de 2022 com a PEC eleitoral de Bolsonaro, revogava-se o teto de gastos, mas em contrapartida se aprovaria um novo arcabouço fiscal que garantiria novas amarras ao gasto público a serem usadas quando o desemprego baixasse a patamares que elevassem o poder de barganha do trabalho em relação ao Capital , viabilizando ganhos reais de renda além do crescimento da produtividade, reduzindo desta forma a participação dos lucros na renda nacional.

Parte da esquerda achou boa ideia a Frente Ampla e agora manifesta seu espanto quando a Banca cobra o cumprimento do acordado. Desde 2023 que se sabe que o arcabouço fiscal não se sustentaria sem o pleno enquadramento aos seus limites do conjunto dos gastos contidos no orçamento. A quebra dos pisos constitucionais da saúde e educação, a limitação da política de valorização do salário mínimo e os gastos previdenciários acabariam sendo colocados na mesa.

Lula tentou administrar essa situação empurrando com a barriga se possível até depois de 2026. Só que o desemprego caiu ao menor patamar desde 2013 e o trabalho recuperou condições de barganha em relação ao Capital. A burguesia cobra para já o cumprimento do pactuado.

A Faria Lima em si não tem voto, mas os aparatos mediáticos que se alinham com ela, como a Globo, por exemplo, formam opinião e foram importantíssimos na eleição de Lula. E a Faria Lima tem força para chantagear o governo pressionando o câmbio e contando com a colaboração do Banco Central.

Por outro lado, uma investida do governo Lula cortando renda dos mais pobres, tornando mais rígidos os critérios de acesso ao BPC, alterando a política de valorização do salário mínimo, e mexendo nos pisos da saúde e educação, atingirá diretamente a sua base social.

Nestas horas é importante lembrar que o Partido Democrata acaba de perder as eleições, não porque Trump tenha aumentado sua votação (perdeu mais de 1 milhão de votos em relação a 2020), mas porque mais de 10 milhões de eleitores de Biden em 2020 desistiram de votar este ano.

Lula tem dois caminhos pela frente. Manter o pacto da Frente Ampla e garantir mais tempo de trégua com seus aparatos mediáticos (nenhuma garantia de apoio em 2026, porque seguem sonhando com um candidato dos seus sem a disfuncionalidade de Bolsonaro) , pagando o enorme preço da perda de confiança e de motivação de parcela importante da base social que o elegeu com consequências eleitorais dramáticas em 2026; ou romper esse pacto, enfrentar os riscos inerentes a essa ruptura, governar os dois anos restantes sob fogo de barragem da mídia e sob a chantagem dos mercados, mas manter coesa e mobilizada a sua base social.

Em qualquer cenário, perder as eleições em 2026 será uma forte possibilidade. Mas se for para perder que seja defendendo os seus porque isso constrói melhores condições para o futuro. Melhor o risco de uma derrota eleitoral que o risco de uma derrota eleitoral com cara de derrota histórica.


TRUMP ESTÁ DE VOLTA A PUBLICA ESTÁ ATENTA

 

Donald Trump vence as eleições nos EUA

Aqui na Pública a gente vem acompanhando atentamente o andamento da disputa para saber quem irá governar uma das maiores potências do mundo.

Mas essa vitória começou muito, muito antes. E não é de agora que estamos de olho nisso. Fomos a agência que mais investigou a relação entre trumpistas e bolsonaristas, publicamos mais de 20 reportagens com base nessas investigações.

Mesmo quando o presidente do nosso próprio país vociferava contra a imprensa, e me bloqueava pessoalmente no Twitter, não paramos. Revelamos que há pelo menos 5 anos, Eduardo Bolsonaro articula estratégias para estreitar as relações com a extrema direita americana. Mostramos que uma comitiva de 16 americanos, entre financiadores de campanha e aliados do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, estava no Brasil quando Jair Bolsonaro (PL) fez ameaças golpistas contra a democracia e instigou seus apoiadores a atacar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em 7 de setembro de 2021.

Levantamos pistas inéditas sobre a presença de Eduardo Bolsonaro nos EUA na véspera da tentativa de golpe insuflada por Trump em 6 de janeiro de 2020. Um ex-embaixador disse para nossas repórteres: “As pessoas ao redor de Bolsonaro, e especialmente Eduardo, realmente estudaram os eventos de 6 de janeiro e concluíram que Trump falhou porque faltou apoio institucional de setores-chave, como os militares, e que Bolsonaro precisa descobrir isso e construir esse apoio institucional para ficar no poder se ele perder a eleição”.   

Três anos depois, acontecia o 8 de janeiro de 2023 aqui no Brasil. 

Você se lembra desses ataques? Pois bem, bolsonaristas usaram o código “Festa da Selma” nas redes para coordenar a invasão. A expressão chegou a ser utilizada junto à hashtag #BrazilianSpring — Primavera Brasileira, em inglês, lançada por Steve Bannon, ex-estrategista de Donald Trump, logo após a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022. 

Fomos nós que revelamos que esse foi o código dos golpistas. 

Na série de reportagens Mercenários Digitais, que mergulhou nas estratégias de desinformação ligadas à extrema direita, revelamos, ainda, que Eduardo Bolsonaro mantém conexão com uma empresa misteriosa nos EUA, teve 125 reuniões com membros da extrema direita do continente e formou uma rede internacional de desinformadores que ajudou na tentativa de golpe no Brasil, com nomes como Fernando Cerimedo, Steve Bannon e outros.

Finalmente, embora tenhamos sido atacadas pessoalmente por Eduardo - que fez até powerpoint para nos chamar de “agência de George Soros” em turnê na Europa - fomos nós que denunciamos que uma comitiva de deputados bolsonaristas foi aos EUA no começo deste ano para pedir sanções contra Alexandre de Moraes.

Eduardo, aliás, estava nos EUA em companhia de grandes aliados de Trump na noite de ontem. 

Alguém agora acha que eles voltarão atrás?  

Sabemos que, agora, Elon Musk também vai ganhar um carguinho na Casa Branca. O homem mais rico do mundo – a quem também investigamos em uma série de reportagens – também odeia as instituições brasileiras e vai vir pra cima delas. 

Contra essa gente, só há um remédio: boa informação

Com Trump na Casa Branca e Musk como aliado, torna-se ainda mais necessário investigar essa relação de líderes da extrema direita com o Brasil. Assim como eu, tenho certeza que você também já está pensando nas nossas eleições presidenciais de 2026. 

Vamos acompanhar com lupa cada passo dessa relação.

Não vamos deixá-los em paz.  

Estamos preparadas. Somos valentes, assim como nossos leitores. 

É por isso que peço de coração: precisamos da sua ajuda para seguir investigando essa rede de extrema direita. Este ano, recebemos 40% menos doações de apoiadores da Pública do que no ano passado. 

Mas os próximos dois anos serão cruciais para salvar o que resta da nossa democracia das garras da extrema direita mundial. 

Vem comigo? 

Faz um pix do valor que puder para contato@apublica.org ou clique aqui para nos ajudar a seguir investigando.
Um abraço,

Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública

domingo, 10 de novembro de 2024

 

Eleições nos EUA e os conflitos mundiais: o que muda com Trump ou Kamala?

Livre docente em relações internacionais na PUC-SP, o professor Reginaldo Nasser recorre a fatos históricos e documentos para desfazer medos e esperanças sobre o futuro dos principais conflitos mundiais conforme o resultado das eleições nos Estados Unidos nesse próximo 5 de novembro. 

Para Nasser, que também é pesquisador dos conflitos do Oriente Médio e sobre os Estados Unidos, nem Donald Trump nem Kamala Harris vão atuar para que Israel cesse os bombardeios na Faixa de Gaza e no Líbano - que mataram mais de 40 mil civis em um ano. Nesse sentido, “a diferença entre os dois candidatos é zero”, segundo o professor, embora o resultado das eleições americanas tenha impacto significativo na guerra na Ucrânia. 

Nasser também desmente teses bastante difundidas sobre a atuação internacional dos dois principais partidos dos Estados Unidos - e de seus candidatos nas atuais eleições -, como o suposto isolacionismo dos republicanos ou a força do lobby de Israel nos Estados Unidos como fator principal para que os democratas continuem apoiando Benjamin Netanyahu. “O lobby existe, claro, mas para os Estados Unidos, Israel é um instrumento de seus interesses no Oriente Médio”, diz. “Nesse caso, republicanos e democratas mantêm o mesmo tom”.

Já a Ucrânia, de fato, será tratada de forma diferente por Trump e Kamala. Enquanto a democrata deve manter o apoio ao país, tal como vem fazendo o presidente Joe Biden, Trump provavelmente cortará a ajuda a Volodymyr Zelensky que já consumiu mais de 64 bilhões de dólares no governo Biden. Recursos que, segundo Trump, deveriam ser usados internamente, privilegiando o que ele chama de “interesses nacionais”. 

É por esses motivos, além da conhecida proximidade de Trump com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, que Nasser acredita que “é quase líquido e certo” que, se eleito, o republicano, cortará o apoio ao país comandado por Volodymyr Zelensky, enquanto Kamala Harris deve continuar seguindo a linha da Otan.

Mas isso não se deve a um suposto isolacionismo dos republicanos, apontado pelos democratas e pela imprensa em geral, nem a um desvio de Donald Trump em relação ao comportamento dos líderes de seu partido, que desde a Guerra Fria evitam entrar nas áreas de influência da Rússia por considerar o risco grande demais para os americanos. Nesse sentido, “Trump não é um ponto fora da curva, embora ele mesmo goste de dizer que é diferente de todos”, diz o professor. 

“Os Estados Unidos vivem do comércio e das finanças internacionais. Como vão se isolar? Como um mega empresário corporativo como Trump pode ser isolacionista?”, questiona, citando exemplos de atuação internacional de Trump, como os acordos com a Coreia do Norte e com o Talibã, que deram início à retirada dos Estados Unidos do Afeganistão.

 “Quando se fala em isolacionismo republicano e multilateralismo dos democratas na verdade está se falando basicamente das relações com a Europa. Os Estados Unidos sempre se envolveram no mundo inteiro. Quando se fala em multilateralismo dos democratas é com a Europa, no resto do mundo não tem nada de multilateralismo”, provoca. “Isso vem desde o final da Primeira Guerra e é por isso que os europeus ficam tão bravos quando um republicano assume a Casa Branca”, diz. 
Nasser reconhece que os democratas são os idealizadores dos fóruns mundiais, como a ONU, enquanto os republicanos, principalmente Donald Trump, desprezam esse tipo de organização. Uma diferença que a depender do resultados das eleições na próxima semana pode impactar questões importantes, como a emergência climática, mas que é mais retórica do que concreta quando se fala “no genocídio que Israel faz contra os palestinos”. Afinal, como ele diz, “Biden é o presidente dos Estados Unidos que mais mandou ajuda em armas e tropas para Israel”.

“A era dos acordos de paz, que no fundo obedeciam mais aos interesses americanos do que a qualquer outra coisa, já morreu. Obama até acenou com a possibilidade de retomar essas negociações, mas não conseguiu apoio nem no Congresso americano, mas Kamala é outra coisa”, acredita. “Obama era uma liderança muito maior do que Kamala e nunca se envolveu com os grupos pró-Israel. Já o marido de Kamala, Douglas Emhoff, participa ativamente desses grupos tanto é que organizações pró-palestina retiraram formalmente o apoio a ela”, lembra, acrescentando que a postura de Trump não deve ser muito diferente em relação a Israel. 

Se há bons motivos para torcer pela derrota de Trump, como o tratamento desumano que dá aos imigrantes, o recuo em relação aos direitos das mulheres e o desprezo à democracia, depois de ouvir o professor Nasser fiquei bem menos esperançosa que uma eventual vitória de Kamala possa deter o massacre contra os palestinos que presenciamos impotentes. 

Para quem se preocupa com esse quadro de horror, o melhor é apostar no multilateralismo para valer, que ainda está para ser construído. Melhor a utopia do que a ilusão. 


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org 

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

 

Por que os brasileiros confiam tanto nos empresários e desconfiam da política?

Os brasileiros consideram as empresas muito mais competentes e éticas do que os governos. As companhias quase empatam com as ONG nas avaliações positivas em relação à ética, embora estejam à frente em competência, e têm uma imagem muito melhor do que a mídia brasileira nos dois quesitos. 

Os achados do relatório de 2024 do Edelman Trust Barometer, um “medidor” da reputação das empresas e instituições ao redor do mundo, mostram que o Brasil está entre os países que mais desconfiam de governos – e do jornalismo – e mais confiam nas empresas. 

Isso apesar do desrespeito contumaz aos brasileiros não apenas como consumidores, mas como cidadãos, como mostraram recentemente os apagões da Enel

Talvez o exemplo mais gritante seja o rompimento das barragens da Vale em Brumadinho, com 270 mortos, e em Mariana – essa de propriedade da Samarco, joint venture da Vale com a megamineradora anglo-australiana BHP Billiton, que, nesta semana, enfrentam o julgamento da maior ação coletiva ambiental da história da Justiça britânica. 

O processo em Londres, que deve ser finalizado em março do ano que vem, busca determinar a reparação a ser feita pelas mineradoras pela tragédia que matou 19 pessoas e afetou toda a bacia do rio Doce em novembro de 2015. Os pedidos de indenização somam 46,8 bilhões de dólares (R$ 266 bilhões) e são movidos por cerca de 620 mil pessoas atingidas, 46 municípios, comunidades quilombolas e pelo povo indígena Krenak.

No Brasil, depois do fracasso da Justiça e da Fundação Renova para reparar de forma proporcional os danos e violações de direitos humanos causados pelo rompimento da barragem em Mariana, o governo acelerou as negociações para fechar um novo acordo com as mineradoras, provavelmente nesta sexta-feira (25/10). Trata-se da repactuação de um acordo assinado em 2016, que vem sendo discutido desde 2022, com atualização dos valores de reparação para R$ 167 bilhões (R$ 130 bilhões de novos recursos).

De acordo com a coluna Entrelinhas do Poder, da Agência Pública, os atingidos reclamam que não participaram das negociações, que estão sendo fechadas a toque de caixa por interesse das mineradoras, para que elas possam alegar “perda de objeto” na ação em Londres, como explicou à reportagem a professora de direito do campus Governador Valadares da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Luciana Tasse. 

 Tanto em Brumadinho como em Mariana ninguém foi responsabilizado criminalmente, apesar da reincidência da mineradora Vale em tragédias evitáveis, provocadas por negligência e fraude, que tiraram a vida de centenas e atingiram os direitos de milhares de pessoas, além da destruição ambiental.
Nesta semana foi divulgado o Projeto Rio Doce – FGV, um estudo da Fundação Getulio Vargas com base em dados do Datasus que mostra uma redução média de dois anos e meio na expectativa de vida nas localidades atingidas. Em alguns municípios, a perda pode significar até 24 anos a menos de vida. "A gente identifica um aumento de até 100% em casos de câncer em municípios atingidos pelo rompimento da barragem, casos de aborto de até 400% acima nos municípios atingidos, quando comparado com os não atingidos, e também de mais de 400% no caso de arboviroses, como chikungunya, por exemplo”, afirma Leandro Patah, coordenador do projeto.

Mas, se os governos e a Justiça falharam em punir a empresa, a imprensa também poupou a companhia, passada a comoção das tragédias. O foco da cobertura recente da Vale até o momento em que foi noticiado o julgamento em Londres foi a escolha do novo CEO, Gustavo Pimenta, que tomou posse em agosto. O tom da maioria das reportagens era de crítica, mas ao governo federal, que estaria tentando interferir na sucessão. 

Mesmo nos casos de lobbies e corrupção – que quase sempre envolvem atores privados –, as denúncias recaem principalmente sobre os agentes públicos, o que contribui para a impunidade das empresas e para minar a credibilidade da política, elemento essencial da democracia.

Fiscalizar governos é fundamental para a população e dever dos jornalistas, mas o mesmo vale em relação às empresas que têm um papel cada vez mais relevante na vida das pessoas. É por esse motivo que desde a fundação, a Pública apura as violações de direitos humanos provocadas por companhias públicas e privadas: foram 184 investigações, 55 delas apenas no setor de mineração, seguido pelo agronegócio (21) e energia (20) em dez anos (2012 a 2022).

O caso mais chocante de silêncio da mídia que presenciamos durante esse período se refere às investigações que fizemos a partir de 2020 sobre os crimes sexuais de Samuel Klein, fundador da maior empresa de varejo do país, as Casas Bahia – e, como a Vale, uma das maiores anunciantes do país. Mesmo com tanta gente envolvida e abusos cometidos por Klein dentro da sede da empresa, os crimes ficaram ocultos por 30 anos. 

Quando a primeira reportagem foi publicada, em abril de 2021, trazendo, além de depoimentos de vítimas e funcionários da empresa, imagens e documentos, a pergunta inevitável era: como uma rede de aliciamento de crianças e adolescentes para exploração sexual sob o comando de um poderoso homem de negócios se escondeu por tanto tempo? 

A resposta começou a aparecer quando, apesar dos elogios profusos dos colegas sobre a qualidade da apuração, que viralizou nas redes, provocou protestos públicos e motivou a criação de um projeto de lei, nenhum veículo grande repercutiu as denúncias. Uma decepção, mas que reforçou a nossa fé no jornalismo independente. 

É essa história triste, mas imprescindível, que você poderá agora ouvir, a partir do dia 5 de novembro, quando a Pública lança o podcast narrativo “Caso K – A História Oculta do Fundador da Casas Bahia”, financiado com apoio da nossa audiência. Uma aliança entre leitores e jornalistas para romper o pacto de silêncio bancado por aquela outra aliança – a de empresas e donos de mídia. E você pode nos ajudar a fazer mais barulho com essa história: apoie a Pública e não deixe que ela seja esquecida.


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org 

 

Corrupção à americana 


Se Donald Trump ganhar as eleições americanas na votação cujo principal dia de votação acontece amanhã, ele deverá muito a Elon Musk. No último mês, o homem mais rico do mundo abraçou com tanto entusiasmo a campanha do republicano que acabou garantindo um empurrão final – e dando uma enorme lição ao mundo sobre como funciona a corrupção à americana. 

O cenário é escandaloso. Tendo obtido uma promessa de um cargo poderoso num futuro governo, Musk prometeu doar pelo menos 500 milhões de dólares para a campanha, segundo o próprio Trump. Fez mais. Organizou jantares para convencer outros milionários a doar, como ele, “em grandes números”, garantindo que seria um investimento seguro. Criou um Super Pac, uma organização para levantar fundos e fazer ações para apoiar uma campanha eleitoral, chamada America Pac, cujo orçamento de 180 milhões de dólares, além de pagar 2.500 pessoas para irem de porta em porta convencendo eleitores, contratou advogados para travarem na Justiça batalhas legais que podem favorecer Donald Trump.
 
No X, Musk elogiou Trump, botou seu grande alcance para promover teorias da conspiração de extrema direita e criticar a candidata democrata Kamala Harris – ele, inclusive, se apossou de um perfil que estava dormente, @America, para fazer campanha. Usou, ainda, sua conta com 200 milhões de seguidores para entrevistar Donald Trump em 12 de agosto. Durante a entrevista, penosa de se ver, ambos deram risada sobre demitir trabalhadores que fazem greve (a Tesla é a única grande fabricante de carros que não permite que seus trabalhadores montem um sindicato).   

Como sabemos, os tweets de Musk são impulsionados de maneira desproporcional pelo algoritmo da corporação que ele adquiriu e que perdeu 70% do seu valor desde então – hoje, o Twitter é pouco mais que uma máquina de propaganda do menino Elon na sua busca por poder.

Tanto que, embora pose de defensor da liberdade absoluta, o Twitter suspendeu a conta de um repórter que tinha obtido informações confidenciais sobre a campanha republicana e ainda baniu links para a postagem original no Substack.

Além disso, para quem ainda não sabe, Musk prometeu distribuir 1 milhão de dólares por dia para eleitores de estados-chave que assinarem uma petição defendendo a Constituição – uma maneira disfarcada de fazer uma loteria para quem vota em Trump, medida ilegal em qualquer país do mundo, mas que nos EUA recebeu apenas um “alerta” do Departamento de Justiça de que “potencialmente” seria irregular.
   
Em uma entrevista ao pseudojornalista Tucker Carlson, Elon Musk admitiu que “detona” Kamala sem parar e perguntou: se Trump perder, “de quanto tempo você acha que vai ser minha sentença de prisão?”. 

Elon está preocupado em saving his own ass.

Tamanho envolvimento de um bilionário na campanha “não tem paralelo na história recente”, segundo o New York Times

Trata-se da compra mais escancarada de um cargo público por um interesse privado da história recente. 

Imagine você se o finado Roberto Marinho, magnata das comunicações, tivesse feito o mesmo: entrado no palanque de um candidato presidencial, despejado milhões, abertamente, tendo já garantido seu lugar no governo.
Ou algum Odebrecht. Seria um escândalo, colunas de opinião como esta aqui se multiplicariam, não só no Brasil como no mundo, e todas elas iam lembrar que, de fato, o Brasil é um país corrupto, a corrupção aqui é endêmica, isso aqui não tem jeito mesmo. Nunca vai dar certo. 

Só que a corrupção americana é perversa porque ela é legalizada. Ali, as corporações gananciosas e as pessoas sem escrúpulos como Elon Musk, laudados como grandes empreendedores que levam o país adiante, conseguem alterar as leis de maneira que comprar partes do Estado seja tido como um ato de grande visão empreendedora. Gênios do business. A criação dos Super Pacs é exatamente isto: uma maneira de normalizar a influência política direta por corporações e milionários. Uma maneira de legalizar o caixa dois, dinheiro para campanha que, lembremos, formava grande parte das denúncias de corrupção que tanto chocaram a opinião pública e a imprensa durante a Lava Jato. Corrupção essa que gerou até multa bilionária à Petrobras e à Odebrecht nos Estados Unidos, aplaudida daqui do Brasil como um país muito mais evoluído, muito mais limpinho que o nosso e, portanto, com estatura moral para multar nossas empresas por corrupção sujinha que nem ocorreu na terra deles.

Ora, quando a Odebrecht financiava o marqueteiro João Santana para fazer campanha política para candidatos de esquerda em outros países da América Latina, era disto que se tratava: uma corporação milionária pagando campanha política para levar vantagem. 
 

Me choca que isso não choque ninguém. Que sejamos colonizados a ponto de não ver o que grita na nossa cara. O sistema americano é corrompido desde o âmago, por mais que se dê um verniz de normalidade a isso. 

A conquista do Estado por Musk será um passo a mais na empreitada por poder da nova oligarquia digital, os tecno-oligarcas, que agem exatamente como os tradicionais oligarcas, os plutocratas que o Departamento de Justiça tanto propagandeou que estava combatendo quando lançou sua investigação contra corrupção estrangeira, em empresas como Odebrecht e Petrobras.  

É a quintessência da corrupção à americana, cínica, autocomplacente e imperialista. Um país tão corrupto que se engana a si e ao resto do mundo sobre a própria lisura e as próprias boas intenções.   

Vejamos. No caso de Musk, de que vantagens estamos falando?  

Uma vez na Casa Branca, Elon Musk terá energia de sobra para fazer o estrago que ele quiser, assim como o candidato a vice-presidente J. D. Vance, que, como eu já escrevi aqui, é amigo de outro tecno-oligarca próximo a Musk, Peter Thiel. O que ele pretende não é apenas o carguinho de coordenador do “departamento de eficiência governamental” que Trump lhe prometeu de presente. O que ele quer é evitar a qualquer custo que seus negócios sejam regulados, paguem impostos, respondam criminalmente pelo mal que têm causado à sociedade, cumpram a lei. Sob o mantra falacioso de “manter a competitividade”, “reduzir o Estado”, “manter a livre iniciativa”, o que ele quer é não ceder um centímetro do lucro, das suas empresas e o pessoal. Quer manter o faroeste digital.  

Mas também ganhar apoio governamental – subsídios do governo que ele diz querer reduzir. Um exemplo levantado pelo site Político diz respeito ao subsídio que a Starlink quer receber de 885 milhões de dólares dentro de um programa de apoio rural criado por Joe Biden. Vale ler: o site descreve como Musk tem formado aliados pessoais em Washington para conseguir essa boquinha. 

Outro sonho de Musk, segundo o site, é refrear legislações ambientais que impedem sua empresa SpaceX de enviar pessoas para Marte mais rapidamente – qualquer relação com o tecnocrata bilionário do filme Don’t Look Up não é mera coincidência –, manter e ampliar seus vultosos contratos com o Departamento de Estado e a Nasa, que superam R$ 15 bilhões, e, claro, controlar a legislação relativa à Inteligência artificial (IA). Embora a ordem executiva de Joe Biden que exige o governo a monitorar mais firmemente a aplicação de IA seja bem tímida, Trump já prometeu que vai jogá-la no lixo.      
  
Lembremos que na última eleição um dos fatores decisivos para segurar a tentativa de golpe foi a ação das Big Techs, incluindo aí Twitter, Facebook e Google (YouTube), de “desplataformizar” as contas de Donald Trump e suprimir seu discurso golpista. Hoje, o jogo mudou, em grande parte operado por bilionários de extrema direita como Musk. Uma parte do Vale do Silício entendeu que um governo Trump seria mais favorável a eles do que um governo democrata, depois de dezenas de ações do Departamento de Justiça para quebrar o oligopólio e sanar as práticas anticoncorrenciais dessas empresas. Trump, que já gastou as cordas vocais em críticas às Big Techs, aceitou de bom grado esses tecno-oligarcas como novos aliados.   

A maior prova de que estamos falando de uma oligarquia, e não apenas de um tecnocrata isolado, é a postura, também escandalosa, do jornal Washington Post, de Jeff Bezos, dono da Amazon, que pela primeira vez em 48 anos decidiu não endossar um dos dois candidatos à presidência. A postura gerou uma crítica aberta do ex-editor-chefe do jornal Marty Baron, que chamou a postura de “covarde” em um momento em que claramente um dos candidatos é uma ameaça à democracia. Bezos desconversou: disse que o endosso do segundo maior jornal americano não importa. Mas a realidade é transparente como o ar: o dono da Amazon prefere um governo que não se meta a querer regular as empresas de tecnologias. Está pagando as contas do jornal para isso, já há muitos anos. (Vale lembrar também o editorial do Washington Post condenando o STF brasileiro quando suspendeu o Twitter, chamando a decisão de “irresponsável” e “autoritária”. Já então Bezos demonstrava ser aliado na cruzada antileis dos tecno-oligarcas da qual Musk é apenas a face mais descarada.) 

Talvez a derrota para o nosso STF – quando ele teve de enfiar o rabinho entre as pernas, pagar as multas e cumprir nossa lei – tenha ensinado a Elon Musk que, para seguir melando as leis de outros países, ele precisa, também, de um Estado para chamar de seu. O Estado americano. 

Seria ingênuo achar que, entre os planos recentemente descritos pelo jornalista Jamil Chade, de um potencial governo Trump usar a Usaid para fomentar a extrema direita mundial, não estariam incluídos chamados para a defesa incansável de liberdade de expressão, que hoje já se mistura com a narrativa orquestrada por spin doctors das Big Techs para refrear qualquer regulação.    
  
Se Trump ganhar, e a tecno-oligarquia tomar conta do Estado americano, sobrará para o resto do mundo a inglória tarefa de combatê-la em seus países, de tentar estabelecer respeito às leis locais e de criar novas regras que limitem o poder dessas empresas que, hoje, operam por regras próprias sem nenhuma supervisão. Estamos a um passo de saber o que virá.  


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública
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