Custo Brasil
Judiciário brasileiro: caro e ineficiente
O Judiciário brasileiro, o mais caro do mundo, consome 1,2% do PIB
nacional, mas seus integrantes querem mais privilégios e mordomias
Renato S. Cerqueira/ Futura Press/ Estadão Conteúdo
O governo vetou o reajuste. Os servidores pressionam.
O recorde de gastos está detalhado na pesquisa “Abrindo a caixa-preta: três décadas de reformas do sistema judicial
do Brasil”, uma parceria entre Luciano da Ros, professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Matthew Taylor, da
Universidade Americana, de Washington. O trabalho completo só ficará
pronto em 2016, mas Ros publicou uma prévia. Em “O custo da Justiça no
Brasil: uma análise exploratória”, há uma comparação das despesas entre
países. O gasto é de 0,32% do PIB na Alemanha, de 0,28% em Portugal, de
0,19% na Itália, de 0,14% na Inglaterra e de 0,12% na Espanha. Nos
Estados Unidos, 0,14%. Na América do Sul, a Venezuela consome 0,34%, o
Chile, 0,22%, a Colômbia, 0,21%, e a Argentina, 0,13%.
A folha de pessoal é a principal causa do altíssimo custo. No Judiciário, há gente e mordomias demais. O pagamento
de 434.932 funcionários, entre juízes e servidores, mordeu 89,5% das
despesas totais em 2014. O salário médio alcança 10,8 mil mensais.
Apesar disso, a fatia de 1,2% no PIB é a mais baixa em seis anos,
motivo, segundo Ros, de estar em curso uma ofensiva por mais recursos.
Servidores de tribunais cercam o
Congresso há semanas em uma pressão pela derrubada do veto presidencial à
lei que reajustava o holerite da turma entre 53% e 78%. Se a lei
vigorar, o Judiciário ficará 5 bilhões de reais mais caro a partir de
2016. O custo dobrará de 2018 em diante. No mesmo Legislativo, avança um
projeto do STF, datado de agosto, que reajusta em 16% o salário dos 11
ministros da Corte. As excelências passariam a receber 39.293 reais
mensais. Detalhe: o salário dos ministros, hoje em 33.763 reais, foi
corrigido há menos de um ano.
Aumentar os vencimentos do STF tem
potencial para provocar um efeito dominó. Desde 2003, o salário dos
ministros da corte é referência para a remuneração máxima no setor
público. Na prática, a teoria é outra. A começar pelo próprio guardião
das leis. Inúmeros são os subterfúgios usados para proporcionar à
magistratura vencimentos acima do teto. Dados disponíveis na internet
mostram gente ilustre a estourar o limite. O juiz Sergio Moro, da Operação Lava Jato,
recebeu 82.370 reais em setembro. O presidente da Associação dos
Magistrados Brasileiros, José Ricardo dos Santos Costa, 41.262 reais. O
da associação dos juízes federais, Antonio César Boechenek, 34.787
reais.
O pagamento acima do teto resulta dos
chamados “penduricalhos”. Auxílios, indenizações, gratificações e uma
penca de adicionais não definidas como “salário” e adotados do Oiapoque
ao Chuí. No Rio Grande do Sul, paga-se um “auxílio-táxi” de 123,80
reais. Goiás instituiu em 2013 um “auxílio-livro” de 3,2 mil anuais. No
Rio de Janeiro, há desde setembro um “auxílio-educação” de 953 reais por
filho de juiz. Em 2011, o Conselho Nacional de Justiça, cuja missão é
vigiar o Judiciário, criou um “auxílio- alimentação” e uma licença
remunerada para cursos no exterior, entre outros.
Tudo serve de pretexto. No início do mês,
o STF aprovou uma “diária” de 5,4 mil mensais a ser paga a 17 juízes
que trabalham como auxiliares dos ministros. Justificativa: os
magistrados precisam deixar seus lares para trabalhar. Durante a
aprovação, o ministro Luiz Fux,
com uma verve sindicalista, disse que “a magistratura é uma atividade
espinhosa que merece valorização em relação a todas as outras
categorias”.
Essa autoimagem do juiz nativo explica
muito da proliferação dos penduricalhos. Os togados parecem se sentir
cidadãos especiais. Em outubro de 2014, o presidente do Tribunal de
Justiça de São Paulo, José Roberto Nalini, disse em entrevista à TV
Cultura que só “aparentemente” o magistrado brasileiro ganha bem. “Ele
tem de comprar terno, mas não dá para ir toda hora a Miami comprar
terno, a cada dia da semana ele tem de usar um terno diferente, uma
camisa razoável, um sapato decente, ele tem de ter um carro.” Um
contraste com o entendimento em outros países. Entrevistado para o livro
“Um país sem excelências e mordomias”, da jornalista brasileira Claudia
Wallin, moradora na Suécia há 12 anos, Goran Lambertz, um dos 16
ministros da Corte Suprema sueca, disse que “luxo pago com o dinheiro do
contribuinte é imoral e antiético”. Ao comentar os privilégios dos
colegas brasileiros foi impiedoso: “É absolutamente inacreditável que
juízes tenham o descaramento e a audácia de ser tão egocêntricos e
egoístas a ponto de buscar benefícios como auxílio-alimentação e
auxílio-escola para seus filhos. Nunca ouvi falar de nenhum outro país
onde juízes tenham feito uso de sua posição a este nível para beneficiar
a si próprios e enriquecer”.
A mordomia da moda é um auxílio-moradia
de 4.377,33 reais mensais. Foi determinada pelo STF em setembro do ano
passado, graças a uma liminar de Fux. Em abril de 2013, a associação dos
juízes federais, a Ajufe, havia ingressado no Supremo com uma ação a
favor do auxílio. Invocava isonomia. Se a benesse vigora para promotores
e procuradores de Justiça, conforme uma lei de 1993, por que não para
eles? Fux mandou pagar não só aos representados da Ajufe, mas a todos os
magistrados, 16.927 em todo o País. Custo da liminar para o Erário: 900
milhões de reais por ano. Procurado via assessoria de imprensa do STF,
Fux não se manifestou sobre o futuro da ação.
A liminar do ministro detonou um rastilho de
pólvora. Dias depois, o Conselho Nacional do Ministério Público resolveu
liberar o pagamento geral e irrestrito do auxílio-moradia a todos os
seus integrantes. Um casal de procuradores recorreu ao Superior Tribunal
de Justiça para receber um auxílio cada, apesar de morarem juntos. O
pedido foi atendido provisoriamente pelo relator, Napoleão Maia, que
entre outras justificativas invocou trechos da liminar de Fux. Um
manifesto liderado pelo ex-procurador-geral da República Claudio
Fonteles condena a “visão profissional estritamente mercantilista” por
trás do auxílio-moradia e classifica este como tentativa de “ludibriar o
teto constitucional”. “Auxílios, gratificações e modalidades outras de
penduricalhos de tal jaez ofendem tratamento remuneratório democrático”,
afirma o texto.
Outro penduricalho na crista da onda é
uma gratificação para juízes federais, trabalhistas e militares por
acúmulo de função. O mimo é devido a quem assumir casos de um colega ou
atuar em outra vara ou corte. Enriquecerá em até um terço o salário das
excelências. A categoria arrancou a benesse na marra. Em setembro do ano
passado, houve uma espécie de greve contra o acúmulo de processos.
Semanas depois, o Congresso aprovou a gratificação, sancionada em
janeiro por Dilma Rousseff.
A gratificação foi regulamentada em abril
por uma resolução do Conselho da Justiça Federal, o CJF. E há quem
tenha visto esperteza em excesso na resolução. Para o procurador da
República Luciano Rolim, o CJF extrapolou os termos da lei e abriu a
porteira para um juiz federal
obter ganhos iguais àqueles de um ministro do STF e mais 15 dias de férias, além da boa vida de 60 dias garantidos. Em um país com 99 milhões de processos encalhados, não seria o caso de reduzir as férias a 30 dias, regra para os demais trabalhadores, em vez de esticá-las?
obter ganhos iguais àqueles de um ministro do STF e mais 15 dias de férias, além da boa vida de 60 dias garantidos. Em um país com 99 milhões de processos encalhados, não seria o caso de reduzir as férias a 30 dias, regra para os demais trabalhadores, em vez de esticá-las?
Entre os procuradores da Advocacia-Geral
da União, também há críticas às artimanhas do Judiciário contra o teto
salarial. Há algumas semanas, o procurador Carlos André Studart Pereira,
assessor da presidência da Associação Nacional dos Procuradores
Federais, pesquisou os contracheques de vários juízes e concluiu:
ultrapassar o teto é regra. “O subsídio dos magistrados é justo e
merecido. Os arranjos institucionais, não”, afirma Pereira, para quem a
diária aprovada pelo STF é “bizarra” e o auxílio-moradia, “patentemente
inconstitucional”.
Discretamente, o governo se insurge
contra os penduricalhos. Com as contas públicas combalidas, o Palácio do
Planalto mandou em setembro ao Congresso uma lei para definir quais
pagamentos precisam ser computados no cálculo do teto e quais podem
ficar de fora. Polêmica à vista. Desde dezembro de 2014, o STF estuda
uma nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional, em substituição à
atual, de 1979. A minuta em discussão institucionalizaria vários penduricalhos.
atual, de 1979. A minuta em discussão institucionalizaria vários penduricalhos.
Às vezes, estes não são apenas
“patentemente inconstitucionais”. Beiram a quebra de decoro. Em 2009, o
CNJ recebeu uma denúncia de que o Tribunal de Justiça de São Paulo
pagava “por fora” juí-
zes que auxiliavam a elaboração de votos dos desembargadores. “Por fora”, no caso, permitia não recolher impostos à Receita e à Previdência, além de mascarar o estouro do teto. Apurar a denúncia não foi fácil. O presidente do TJ à época, Roberto Vallim Bellochi, mostrou-se pouco interessado em colaborar. Foi ao STF com um mandado de segurança, para não ter de prestar informações. Mesmo assim, o CNJ concluiu que houve irregularidades e determinou a suspensão dos pagamentos e a devolução do dinheiro. A corte paulista recorreu ao Supremo, comandado à época por Cezar Peluso, ministro que tinha um filho beneficiado pelo “auxílio-voto”. O relator da ação no STF, Dias Tof-
foli, concedeu uma liminar favorável ao TJ ainda em 2010. O processo está parado em seu gabinete desde 2013. Procurado via assessoria de imprensa do STF, Toffoli não se manifestou sobre o futuro da ação.
zes que auxiliavam a elaboração de votos dos desembargadores. “Por fora”, no caso, permitia não recolher impostos à Receita e à Previdência, além de mascarar o estouro do teto. Apurar a denúncia não foi fácil. O presidente do TJ à época, Roberto Vallim Bellochi, mostrou-se pouco interessado em colaborar. Foi ao STF com um mandado de segurança, para não ter de prestar informações. Mesmo assim, o CNJ concluiu que houve irregularidades e determinou a suspensão dos pagamentos e a devolução do dinheiro. A corte paulista recorreu ao Supremo, comandado à época por Cezar Peluso, ministro que tinha um filho beneficiado pelo “auxílio-voto”. O relator da ação no STF, Dias Tof-
foli, concedeu uma liminar favorável ao TJ ainda em 2010. O processo está parado em seu gabinete desde 2013. Procurado via assessoria de imprensa do STF, Toffoli não se manifestou sobre o futuro da ação.
O caso do “auxílio-voto” é ilustrativo do
que o advogado Marcelo Neves, ex-conselheiro do CNJ, relator do caso no
conselho e hoje professor da Universidade de Brasília, chama de
“corrupção sistêmica” no Judiciário. Para Neves, o CNJ abandonou o papel
de “fiscal do fiscal”. Tornou-se “corporativista” e “capturado por um
pacto mafioso existente entre os poderosos do Judiciário e do
Legislativo”. Ignoraria faltas disciplinares dos magistrados graúdos,
como aquelas do TJ paulista, para se ocupar de bagrinhos da primeira
instância em lugares distantes. “O CNJ é hoje um órgão sem significado
prático, principalmente no controle da corrupção, altíssima.”
Nancy Andrighi, Corregedora Nacional de
Justiça, discorda. Segundo ela, não passam de 50 os processos relevantes
que investigam desvios de conduta da magistratura, uma proporção
pequena num universo de 16 mil juízes. “Posso concluir, assim, que a
quase totalidade da magistratura brasileira é composta de juízes
honestos e idealistas”, afirmou por escrito. Em dez anos de existência, o
CNJ puniu 72 magistrados. A aposentadoria compulsória, pena mais dura,
atingiu 46. Na verdade, pode ser considerada um prêmio. Pendura-se a
toga, mas não se deixa de receber os vencimentos até o fim da vida,
graças a um dispositivo constitucional.
Se os tribunais funcionassem, o pesado fardo
financeiro até poderia não ser um problema. Não é o caso. “Nosso
Judiciário é caro e não se reverte em serviços prestados. Ele não se vê
como prestador de serviço público”, diz Luciana Gross Cunha,
coordenadora do Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getulio
Vargas de São Paulo. Essa postura, afirma, tem várias explicações. Uma
cultura nacional que sempre enxergou a Justiça como apartada do Estado.
Uma formação acadêmica exageradamente jurídica por parte dos
magistrados. Juízes que parecem achar pouco digno preocupar-se com a
administração.
A melhora da gestão seria a mudança mais
urgente em um Judiciário à beira do colapso, acredita a acadêmica. Só no
ano passado, 28 milhões de novas causas chegaram aos tribunais. A taxa
de congestionamento, índice que indica quantos casos nunca tiveram
qualquer decisão, chega a 71%. “O Brasil precisa de uma carreira de
gestor jurídico, como os Estados Unidos fizeram há mais de cem anos”,
diz Luciana Cunha. Infelizmente, as prioridades são outras.
*Reportagem publicada originalmente na edição 873 de CartaCapital, com o título "Caro e ineficiente"
Nenhum comentário:
Postar um comentário