sexta-feira, 29 de julho de 2022

EXTREMOS CLIMÁTICOS AMEAÇAM ROÇAS E CULTURAS INDÍGENAS NO RIO NEGRO

 


REPORTAGEM

Paulo Desana/Agência Pública

Mudanças colocam em risco alimentação e os modos de vida dos povos que mantêm cultivos seguindo o sistema agrícola tradicional na região de São Gabriel (AM)


29 de julho de 2022

06:00

Ana Amélia Hamdan, Paulo Desana, Daniela Villegas

 ESPECIAL: MICROBOLSAS ALIMENTAÇÃO E MUDANÇAS CLIMÁTICAS

 ESPECIAL: EMERGÊNCIA CLIMÁTICA

Cheias, falta de previsibilidade das estações e aumento da temperatura afetam diretamente a alimentação dos indígenas 

O Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro é reconhecido como patrimônio cultural brasileiro 

Mudanças percebidas pelos indígenas refletem análises dos cientistas no 6° relatório do IPCC 

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É manhã de domingo e indígenas do povo Tuyuka que vivem em São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas, estão a postos para receber os visitantes da feira realizada semanalmente para a venda de produtos de suas roças. Mas os preparativos começam muito antes, com o plantio em sítio próximo à cidade e em meio à floresta, onde há o cultivo de mandioca, banana, abacaxi, açaí, cará, entre outros alimentos.


Paulo Desana/Agência Pública


Paulo Desana/Agência Pública


Paulo Desana/Agência Pública


Alimentos cultivados em meio à floresta

Enquanto os visitantes vão chegando, algumas mulheres da família Tuyuka, que também dá nome à feira, vão espremendo a massa da mandioca, que será colocada no forno para se transformar no beiju. Em alguns dias há fila de clientes à espera do produto quentinho. 


Pratos tradicionais como quinhapira – caldo de peixe com pimenta e tucupi – e, às vezes, até formiga, bastante comum na culinária da região, também são servidos. Sem falar do caxiri, a bebida fermentada que vai animar as danças tradicionais. Toda essa variedade é baseada no Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, que reúne conhecimentos de cultivo nas roças, nos quintais e na floresta e depende do equilíbrio dos ciclos da natureza e da manutenção da cultura que envolve trocas, rituais e benzimentos. 


Paulo Desana/Agência Pública


Paulo Desana/Agência Pública


Paulo Desana/Agência Pública


Paulo Desana/Agência Pública


Beiju está entre os pratos tradicionais da região

Esse sistema está sob pressão constante: do garimpo ilegal, dos sistemas econômicos em moldes não sustentáveis, de projetos de lei, como o PL 191, que permite a mineração e outras atividades exploratórias em terras indígenas, e agora também da emergência climática.  


“Ano passado, a gente perdeu duas roças justamente porque não houve verão naquela época que a gente estava esperando. Principalmente quando é mata virgem, precisa de um mês de verão pelo menos para queimar direito. Mal plantamos algumas bananas, mas mandioca não deu para plantar”, diz a agricultora Florinda Lima Orjuella, do povo Tuyuka, uma das responsáveis pela feira, ao descrever parte das etapas do sistema. “Quando você vê que tem uma alteração nesse ciclo, aí atrapalha todo esse processo todo do plantio, de queimar.” 


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Relatos como o de Florinda são cada vez mais comuns no município onde vivem 23 povos indígenas em aproximadamente 750 comunidades e sítios. Banhada pelo rio Negro, São Gabriel e seus moradores têm sofrido principalmente com as cheias recordes que atingiram o estado do Amazonas nos últimos anos — em 2021, houve perda de roças em várias regiões na calha do rio. Este ano, as chuvas também foram  intensas e a situação se repetiu, reduzindo a capacidade de resposta das comunidades.


Ana Amélia Hamdan/Agência Pública


Ana Amélia Hamdan/Agência Pública


Comunidades já sentem impactos das mudanças climáticas

Entre os principais impactos relatados pelos agricultores indígenas estão, além das cheias, a falta de previsibilidade das estações, o aumento da temperatura e a alteração nos ciclos ambientais, questões que afetam diretamente a alimentação da população local. Muitos deles passaram a mudar o local de plantio e a ter mais de uma roça para evitar prejuízo total, além de terem alterado o horário de trabalho em função do sol mais forte. A pergunta que fica é até quando essa adaptação será suficiente. 


“A gente vê as consequências do desmatamento, acho que não nosso, né? Porque no nosso sítio a gente continua trabalhando de forma tradicional, o jeito que a gente vinha fazendo sempre, como nossos antepassados”, diz Florinda, que também passou a plantar mais roças para evitar perdas maiores.


As observações que os indígenas trazem do dia a dia nas roças e na floresta coincidem não só com o aumento da frequência dos eventos extremos registrado pelos órgãos oficiais, mas ainda com o último relatório do Painel Intergovernamental para Mudança Climática da ONU, o IPCC, que, pela primeira vez, trouxe o alerta sobre perdas irreversíveis para os modos de vida dos povos indígenas da Amazônia. 


Paulo Desana/Agência PúblicaFlorinda Lima Orjuella, do povo Tuyuka

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“A entrada [do IPCC] na Amazônia não é mais só sobre a questão da biodiversidade, mas envolve fatores climáticos e não climáticos que, quando se unem, formam um efeito dominó no modo de vida, na segurança alimentar, na saúde, na questão social. As queimadas, as cheias extremas causam perda de identidade, cultura, rupturas com lugares de nascimento. São perdas irreversíveis”, afirma a pesquisadora e bióloga Patrícia Pinho, do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam), uma das autoras do relatório, responsável pelo capítulo que trata da pobreza, dos modos de vida e de desenvolvimento sustentável. 


Ela explica que a população indígena é mais vulnerável às mudanças climáticas, pois depende de atividades ao ar livre, dos recursos da floresta e da biodiversidade para ter o mínimo de capacidade nutricional e alimentar. “Na Amazônia, a biodiversidade é intrinsecamente conectada com o território, com a cultura, com o modo de vida. Quando tem erosão ou impactos no território, vai acontecendo perda de conhecimento tradicional, não se sabe mais quando o ciclo vai acontecer, qual espécie deve ser plantada, quando ocorrerá a floração.” 


Ana Amélia Hamdan/Agência Pública

Fartura da fruta cucura, conhecida como a uva da Amazônia, um dos produtos da roça e da floresta cultivada pelos indígenas, na principal orla de São Gabriel

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