Controle de território
Os parques eólicos dificilmente irão aparecer nas estatísticas de terras em poder de estrangeiros no Brasil. Isso porque as gigantes do setor perceberam que é mais vantajoso explorar as áreas sem precisar gastar dinheiro na compra delas. A jogada, agora, é fechar contratos de arrendamento com os donos de terras. Muitas vezes, são pequenos proprietários rurais, pessoas muito pobres que vivem da produção para subsistência.
Os contratos de arrendamento são regidos pelo Estatuto da Terra e pelo decreto 59.566, normas de 1965 e 1966, respectivamente. Por meio deles, as companhias eólicas oferecem um pagamento mensal aos proprietários, um valor fechado ou um percentual do lucro, em troca do direito de uso irrestrito dos imóveis rurais – em que muita gente precisará seguir morando. Os textos legais sequer tratam da energia eólica, uma inovação tecnológica que nem havia sido imaginada quando foram escritos.
Eu conversei com o advogado Claudionor Vital, do Centro Popular de Assessoria Jurídica, o Cepaj, uma organização que atua em parceria com movimentos sociais para representar famílias camponesas abordadas por eólicas no interior da Paraíba. Segundo Vital, muitos contratos não preveem garantia de renda mínima, têm prazos de vigência exorbitantes (entre 25 e 50 anos) e multas unilaterais aos proprietários em caso de desistência (que chegam a R$ 20 milhões, em alguns casos).
“São contratos totalmente assimétricos. Eles beneficiam amplamente as empresas, ao assegurar o acesso e o controle sobre terras de elevado potencial eólico, sem limites. Toda a propriedade da família agricultora passa a ser de direito das geradoras”, explicou Vital.
Os pagamentos são geralmente calculados segundo o número de aerogeradores (os cataventos gigantes) instalados. Em um assentamento em João Câmara, no Rio Grande do Norte, por exemplo, representantes da empresa de energia eólica prometeram colocar 15 torres no local, onde vivem 25 famílias. O acordo era pagar R$ 1.069 ao mês por torre. Ou seja, os moradores dividiriam R$ 16.035 mensais – que já não eram grande coisa, algo como R$ 640 por família. No entanto, a promessa foi desfeita após pressão de fazendeiros da vizinhança, e só duas torres foram instaladas. Aí, as 25 famílias tiveram que dividir R$ 2.138 ao mês – meros R$ 85 para cada uma.
Cabe frisar que os contratos incluem uma cláusula de confidencialidade, que impede que os signatários falem sobre o assunto – e, claro, exponham a injustiça formalizada neles. “Se descumprirem a cláusula de confidencialidade, as famílias pagam multa. Isso gera receio nelas. Enfrentamos muita dificuldade exatamente por causa disso”, me disse o advogado.
Questionei a Associação Brasileira de Energia Eólica, a ABBEólica, sobre os contratos denunciados como abusivos pelo advogado. A entidade me respondeu que não pode discutir “cláusulas específicas de contratos específicos”, e disse que os proprietários têm autonomia para aceitá-los ou não. Em relação aos anos de vigência, a associação afirmou que os longos prazos têm relação com a natureza dos leilões, que inviabilizam a mudança de localização das torres.
Ainda segundo a ABBEólica, os contratos são confidenciais porque os projetos irão para um leilão competitivo e, portanto, os dados não podem ser expostos.
A pesquisadora Mariana Traldi, professora do departamento de geografia do Instituto Federal de São Paulo, o IFSP, também se debruçou sobre contratos do gênero para escrever sua tese e notou que os documentos, no fim, são instrumentos de “despossessão” de um bem público. “O vento, sendo uma riqueza natural, é de todos, um benefício da sociedade. Quando ele é apropriado privadamente, em benefício de um grupo restrito e com a finalidade da obtenção do lucro, é um processo de despossessão. O ar em movimento está sendo apropriado para o lucro de alguns”, explicou a pesquisadora.
‘Quem está saindo prejudicado nessa relação são os pequenos proprietários’.
Para pensar em melhores compensações para o uso privado do vento, portanto, primeiro seria preciso definir quem é o dono do ar em movimento. Existe há anos um debate que reivindica o direito à água como bem público universal, por exemplo. Mas ele ainda não chegou aos ventos. E a legislação brasileira não trata do assunto.
De acordo com a Convenção sobre Aviação Civil Internacional, da qual o Brasil é signatário, o espaço aéreo de um estado é definido em altura por toda a extensão da atmosfera e em superfície pelos limites territoriais terrestres. Por esse entendimento, o vento seria um bem da União. No entanto, a regra versa apenas sobre o uso do ar pela aviação e não trata da exploração econômica a partir do solo.
Já o Código Civil Brasileiro define, no artigo 1.229, que a propriedade de terra inclui o espaço aéreo. Portanto, o ar é um bem atrelado ao espaço territorial sobre o qual está. Assim, o direito à exploração do potencial eólico pertenceria ao proprietário da terra. Mas, outra vez, não há nenhuma linha escrita sobre essa situação específica.
Tramita na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à Constituição, a PEC 97/2015, que busca transformar o potencial de energia eólica em patrimônio da União e exigir o pagamento de royalties pela exploração do vento, num modelo parecido com o das hidrelétricas. O texto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça em 2017 e, desde então, está à disposição para ser pautado para votação em plenário pelo presidente da Casa – atualmente, o bolsonarista Arthur Lira, do PP alagoano e do Centrão.
Traldi, do IFSP, diz que é possível pensar nas duas hipóteses para melhorar a compensação pela exploração privada do vento. No caso de ele ser considerado um bem pertencente aos donos das terras, o valor a ser pago por quem o explora teria que ser bem maior, afirmou.
“Acho que a fórmula deveria sair de um processo que seja negociado com as pessoas que estão sendo impactadas, e não de uma decisão de cima para baixo. Porque, de toda forma, quem está saindo prejudicado nessa relação são os pequenos proprietários. A gente não pode fazer algo que vai prejudicá-los novamente”, argumentou a pesquisadora.
Para além de melhorar as regras, é preciso pensar em um modelo equilibrado de geração de energia no país, diz a pesquisadora. Ela afirma que não há consenso sobre a pureza da energia eólica.
“A gente tende a pensar, quando vê as torres eólicas, que aquilo é energia limpa e ponto. Mas a gente esquece que existe uma cadeia produtiva. Os equipamentos eólicos demandam mineração de minérios muito específicos para as baterias. O lítio é um deles. É um processo predatório e extremamente devastador para o meio ambiente”, ela afirmou.
“Será que, no balanço final da equação, estamos de fato poluindo menos, degradando menos, emitindo menos gases de efeito estufa? Não sei. Alguém precisa fazer essa conta. É o que alguns pesquisadores estão tentando”, me disse Traldi. “É claro que é muito melhor a gente não queimar combustível fóssil. Mas temos que fazer uma análise crítica e profunda da coisa. Não é na superfície que vamos encontrar respostas”.
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