segunda-feira, 22 de agosto de 2022

 

Longa história

O coro começa baixinho, quase entre sussurros.

“Oi, leva eu, povo da rua
Eu também quero ir, povo da rua
E já chegou a missão
Vamos todos nos unir
Leva eu, povo da rua”.

Cerca de 60 pessoas estão reunidas para participar do 4º Congresso Nacional da População em Situação de Rua, em Cidreiras, cidade litorânea do Rio Grande do Sul, realizado em maio de 2018. Vieram de 18 estados do Brasil. O evento reúne lideranças para discutir, durante três dias, ações e políticas para aquelas pessoas que vivem nas ruas das cidades brasileiras. O próximo será em 2021, em Teresina. A medida que esses cadentes versos se repetem, ritmo e energia se intensificam, como em um mantra das ruas, até explodir em uma catarse coletiva.

“Oi, leva eu, povo da rua
Eu também quero ir, povo da ruaaaaaaaa
E já chegou a missão
Vamos todos nos unir
Leva eu, povo da rua”.

A cena deve ser empolgante. Deve porque a assistente social Maria Magdalena Alves, chamada com carinho de Madá, uma senhora de 76 anos, com os cabelos cinza-brancos e serenidade adquiridas pelo tempo, que se protege do frio gaúcho com um xale, não assiste, apenas ouve do lado de fora do auditório, juntamente com outros colaboradores da população em situação de rua.

“Cantávamos esse hino desde a década de 1970, quando comecei a trabalhar com o povo da rua”, comenta, saudosa, ela, que foi uma das primeiras assistentes sociais a trabalhar essa temática. Trabalhou com o tema na prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-92). Depois, fundou uma ONG e hoje presta consultoria na área para prefeituras.

Mas vamos à explicação. Deixar colaboradores fora da assembleia da poprua não fazia parte de uma estratégia maquiavélica de excluir senhoras septuagenárias. Os coordenadores do movimento, percebendo que a presença de especialistas em assistência social, urbanismo, ciências sociais ou políticas públicas intimidava sua base a se expressar sem receio de serem julgados por um “pensamento teórico supostamente arrojado”, pediram para preservarem um momento somente entre eles. O pedido despertou polêmicas.

“Eu não concordo”, disparou uma assistente social. “Acredito que temos muita base teórica e prática para colaborar na construção do plano da poprua. Eu quero estar presente e poder falar também. Eu faço doutorado no tema.”

“Pode ser que sim, mas esse é um pedido da nossa base e não é negociável. Vamos ter outros momentos em que vocês poderão opinar e colaborar.”

“Mas temos que estar presentes quando vocês forem discutir o planejamento para esses dois anos…”, insistiu ela.

“O que estamos pedindo é somente uns momentos com nossa base, pra termos nosso papo reto. Se isso incomoda algum de vocês, paciência. Depois só não venham falar de como não somos respeitados e silenciados pelos governos, se estão tentando fazer uma coisa parecida. O movimento não é da rua pra rua?”

“Não sei se me fiz entender, é que…”

“Vai ser assim, decidimos em assembleia, estou só comunicando, não estou negociando.”

Madá assistiu passiva à cena, com a consciência de quem trabalha há mais de 40 anos com o assunto e a aflição de assistir ao vivo alguém que paga, sem saber se no débito ou no crédito, um vexame político, teórico e humano. Ela relembra que, na década de 1970, jovem católica, politizada, acreditava que poderia realizar mudanças sociais por meio da filosofia cristã. Era época da Teologia da Libertação, uma corrente teológica cristã nascida na América Latina, depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, que parte da premissa de que o evangelho exige a opção preferencial pelos pobres e especifica que a teologia, para concretizar essa opção, deve usar também as ciências humanas e sociais.

Havia um seminarista que trabalha no centro de São Paulo que recolhia roupas e outros utensílios domésticos para doação. Era escolhido um dia da semana, antes de uma reunião, para distribuir os apetrechos. Não podíamos nem fazer reunião, a sala enchia, lembra ela. Perceberam, portanto, um grave problema social na cidade: um grande número de pessoas que viviam nas ruas. Decidiram, então, promover um sopão na Praça da Sé. Mas esse seria diferente: a premissa seria fazê-lo somente com os frutos da solidariedade do próximo.

As verduras eram doadas pelos feirantes próximos. Com a xepa garantida, pediam água, óleo e sal para os bares da Praça. Com os gravetos das árvores, acendiam o fogo. A jovem Madá era responsável pela segurança das facas. Havia conversas. Ela não tentava dar as coisas, diz, mas fornecer suporte para eles conseguirem. Explica como a mobilização foi sendo construída nas últimas décadas:

“…você começa a juntar as pessoas na década de 1980. Eles não tinham coragem de andar dois juntos, porque vinha a polícia. Mas começam a se juntar. Eu me lembro a primeira vez que eles tiveram coragem de sair de uma casa que ficava atrás do Mosteiro São Bento e ir até o Largo de São Bento e voltar… São só dois quarteirões, mas foi um avanço, porque eles tinham medo.

“…eles eram ultraexplorados nos depósitos de papelão, porque o cara deixava eles dormirem no lixo e dava a carroça e pagava muito pouco. Eles, então, fizeram a primeira greve dos catadores, disseram pros caras: ou você aumenta o preço ou a gente queima a carga aqui na tua porta. Você percebe os avanços? Que hoje a gente olha e pensa: é ridículo? É muito pouco, mas foram espaços pra chegar no que é hoje.

“…você teve passos nas políticas públicas, as primeiras que foram criadas, lá na década 1990, as chamadas de Casas de Convivência e era um espaço para que eles pudessem estar, durante o dia, com jogos, atividades de convivência e estrutura para banho. Era o primeiro passo…

“…você tinha uma experiência em São Paulo, durante as prefeituras petistas, do começo de uma política para a poprua e, quando Lula assumiu a presidência, essa experiência foi pra Brasília. Tinha algumas ações em alguns estados, mas não era um projeto articulado. Por exemplo: na gestão da Marta Suplicy (2001-2004) tivemos o 1º Congresso de População de Rua, mas realizado pelo poder público. Você percebe? Tem uma série de coisas que vão chegando no hoje”.

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