segunda-feira, 22 de agosto de 2022

 

Que querem?

Segui, há alguns meses, uma reunião de professores de Arquitetura e Urbanismo de uma faculdade de São Paulo, acompanhados de alguns estudantes, com a pop-rua. Queriam desenvolver um projeto, em parceria com o movimento, para construir um protótipo de equipamento urbano que servisse de bagageiro para quem vive nas ruas – já que em SP só existe um. “Assim, podem guardar suas roupas, cobertores, colchonetes, o pouco que têm, enquanto saem em busca de algo pra comer ou pra procurar emprego”. Darci, assim como outras lideranças, ouvia tranquilo, enquanto afagava sua longa barba grisalha. Não disse que esse era um problema que, entre todos que os da lista que os afligem, está bem atrás. “É interessante”, disse ele, “mas não seria melhor concentrar esforços em uma das nossas principais pautas, já que vocês, como arquitetos e urbanistas, também têm essa luta? O direito à moradia e o desenvolvimento de políticas públicas de habitação social”.

Inúmeras vezes, em entrevistas com lideranças, perguntava: quais foram as principais conquistas da população em situação de rua? Eles elencaram algumas:

Consultórios na Rua. Instituído pela Política Nacional de Atenção Básica, em 2011, constitui-se de equipes multidisciplinares que prestam serviços in loco de atenção integral à saúde da população em situação de rua da cidade, principalmente inserindo-as no Sistema Único de Saúde (SUS) e atendendo casos de dependência química.

Centros Pops. Previsto no Decreto nº 7.053/2009 e na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, é uma unidade pública voltada para o atendimento especializado à população em situação de rua, com atendimentos individuais e coletivos, oficinas e atividades de convívio e socialização, além de ações que incentivem o protagonismo e a participação social das pessoas em situação de rua. Também funciona como ponto de apoio para guardar pertences, de higiene pessoal, de alimentação, provisão de documentação e endereço de referência.

Bolsa Família. A inclusão da população em situação de rua no programa foi realizada em 2010. Baseado em um programa piloto do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em Belo Horizonte, com base em levantamento feito pelo IBGE, cerca de 300 mil bolsas foram destinadas a eles e a quilombolas, ribeirinhos e indígenas.

Política Nacional para a População em Situação de Rua. Instituída pelo Decreto Presidencial 7.053, de 2009, que também criou um Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento. É considerada um marco na luta pelos direitos da poprua ao estabelecer as diretrizes para garantir seus direitos, entre os quais a dignidade.

“Essas políticas foram conquistas em décadas de luta da poprua, com sangue e suor”, conta Darci. “Mostram que, hoje, a rua não é mais invisível, como pensam – e querem – muitos. De 2004, quando começamos a nos articular por nós mesmos no movimento nacional, nossas reivindicações começaram a se transformar em políticas públicas – e essa questão é, cada vez mais, discutida nas cidades.”

O antropólogo Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo destaca que, nesse processo recente, “um dos resultados que mais me chamou atenção foi o fortalecimento político de pessoas que se reconhecem enquanto população de rua, que passam a fazer parte ativa dessa rede e que começam a atuar no MNPR, principal núcleo aglutinador de proposições no plano da ação pública por parte do segmento”.

Outra política pública reivindicada é o Programa de Inclusão Social da População em Situação de Rua, proposto pelo senador Paulo Paim (PT/RS), que tramita há mais de dez anos no Congresso. Aprovada pelo Senado, e aguardando votação na Câmara dos Deputados, o PL 6.802/2006, ainda não saiu da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Prevê um conjunto integrado de medidas assistenciais e oportunidades de qualificação profissional, financiado pelo Fundo de Combate à Pobreza. Há também o PLS 328/2015, de autoria do senador Telmário Mota (Pros-RR), que tramita na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado. A matéria regulamenta a profissão de educador social para atuar diretamente no resgate da população de rua e de pessoas vulneráveis. À espera de relator na CCJ do Senado, está o Projeto de Lei da Câmara 130/2017, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT/SP) — na Câmara, PL 2.470/2007 —, que reserva 2% das vagas em obras e serviços a trabalhadores em situação de rua.

Nesse mês, o MNPR realiza diversas atividades em 18 estados, onde está organizado. No dia 7 de agosto de 2019, deputados estaduais de São Paulo, ao lado de movimentos sociais, lançaram uma frente em defesa das pessoas em situação de rua com objetivo de pressionar o Estado a implementar políticas públicas voltadas a essa população. Lideranças de todo o Brasil se encontrarão em Brasília no dia 21, para realizar uma Marcha e, no dia seguinte, lançarão uma Frente também no Congresso Nacional.

Darci Costa sabe que a conjuntura política e econômica não é das melhores, mas diz que a luta por políticas públicas não pode parar. E enfrentar o problema do crescente aumento da população em situação de rua exige ações e luta de longo prazo.

Renda Básica de Cidadania. A Lei 10.835, proposta pelo então senador Eduardo Suplicy, foi aprovada em janeiro de 2004 pelo Congresso, foi sancionada, instituindo a renda básica de cidadania. De acordo com a lei, não aplicada pelo Estado, todos os brasileiros e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no país deveriam receber um benefício monetário suficiente para atender às despesas mínimas com alimentação, educação e saúde.

Lei da População em Situação de Rua. Que o decreto que instituiu Política Nacional para a População em Situação de Rua se transforme em dispositivo legal para garantir os direitos da poprua, inclusive instituindo o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua. Já proposto na Câmara pelo deputado Nilto Tatto (PT-SP), o Projeto de Lei 5740/16 pretende assegurar serviços públicos e atendimento à pop-rua, além de garantir a posse de seus bens como cobertores, roupas e alimentos.

Mapeamento da poprua. Apesar de indicar a importância do mapeamento para a implementação de políticas públicas — o artigo 13 prevê o apoio do IBGE e do Ipea ao Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua) — nada foi feito.

Moradia. Políticas públicas de habitação social que garantam moradia e locação social para a população em situação de rua. “A moradia é o principal objetivo, hoje, do movimento”, aponta Madalena. “Quando alguém em situação de rua perde a moradia e o trabalho acaba também perdendo o vínculo com a família, com os amigos. A autoestima cai no chão. É preciso trabalhar essa autoestima, ao mesmo tempo em que se garante moradia e trabalho. Quando falamos de moradia não é dar uma chave para a pessoa e tchau, mas moradia compartilhada: ele vai pruma casa, que não é albergue nem abrigo, e é oferecido um suporte. Então você tem que considerar esses fatores todos juntos, porque a situação em que eles estão é multidimensional, tem que trabalhar as várias dimensões ao mesmo tempo para poder resgatar a pessoa”.

A luta por essas pautas pode durar anos. Pergunto, então, o que fazer agora: quais políticas públicas a pop-rua podem exigir em caráter emergencial? Eles responde:

Criação de repúblicas. Aumentar o número de repúblicas para a população em situação de rua, que funcionam em um modelo similar às de estudantes. Por meio de edital municipais de contratação de ONGs, realiza-se o acolhimento em casas, em quarto compartilhados de até quatro pessoas, geralmente com não mais de 10 pessoas na casa. Há uma contribuição simbólica para o aluguel, cerca de 50 reais por mês, e na casa são desenvolvidas atividades de geração de renda e trabalho, com supervisão de um funcionário contratado para gerenciar a república.

“É uma casa de fato, em modelo coletivo, que não tem aparência de equipamento de acolhimento. Pode entrar e sair com liberdade”, conta, animado, Darci. “É como se você estivesse morando em residências, mas num modelo coletivo, com liberdade para fazer sua própria comida, lavar suas próprias roupas, com autonomia. Se não é possível acessar moradias individuais, que se acesse a moradia por meio de repúblicas. Albergue a gente não quer mais. Ninguém aguenta mais albergue, CTA, Centro de Acolhida. São ambientes insalubres para a vida humana, separam pessoas de suas famílias e violam diversos direitos. Funcionam em um regime penitenciário, parece que vivemos em um regime semiaberto.”

Segurança alimentar. Expansão de rede de restaurantes populares, como o Bom Prato, com horários de funcionamento para também servirem café da manhã e janta. “Não queremos mais depender de caridade, é preciso política pública emergencial que garanta segurança alimentar”, completa Darci.

E aí, cara?

Foto: Carolina Simon

Encontro Carlos, o Malabares, em São Paulo, no cruzamento de avenidas em frente ao Copan. Estava participando de algumas atividades do Movimento Pop-rua. Semáforo fecha. Vermelho. É o sinal verde para Carlos iniciar seu trabalho como malabarista. Entre um intervalo e outro, conversamos.

“Esse trabalho de artista de rua, de ser malabarista, foi um meio de sobrevivência pra mim, quando eu tava numa situação de vulnerabilidade, então quando você ia fazer uma entrevista ou procurar um emprego, porque anteriormente eu trabalhava de pintor profissional, e aí quando a pessoa te pede o endereço e você não tem endereço, a pessoa não vai te fornecer o trabalho porque ele já sabe, você tá sendo discriminando, saca?”

Na infância já havia trabalhado como assistente de serviços gerais em um circo que rodava o interior. Quando as coisas apertaram, passou a observar uma galera que trabalhava no semáforo. Um deles era o psicólogo Marcelo Mamute, de Ribeirão Preto, que enfrentava problemas de dependência química “da droga mais pesada” – “eu nem gosto de ficar falando o nome”. Carlos penava em construir seus números, de forma independente, nos semáforos. Até que Mamute, um amigo das ruas, deu a letra: “Tem uma praça lá, que tem um encontro de artistas de rua, todas as terças-feiras”.

“Isso foi um fator principal pra mim, que eu comecei a explorar esse lado da arte. Traz aí um benefício pra mim, não ganha muito, ganho o razoável pra poder, quando tá numa outra cidade, você pode dormir numa pousada, pode dormir num hotel, você pode ter o dinheiro de sua alimentação para você evitar precisar de equipamento.”

Carlos conta que evitar os equipamentos é alívio porque estão muito defasados para atender a população em situação de rua. Organizar-se, portanto, é mais que necessário para algo mudar. Mas…

“São tantas conferências, tantas cartas enviadas aos órgãos competentes, mas mesmo assim nós continuamos lutando, mas já é bastante escaldante, porque você já fica cansado, porque você vê o descaso em cima da política que já existe.

“É muito difícil mobilizar pessoal em situação de vulnerabilidade, porque eles já estão descrentes de tudo, no mundo deles eles não acreditam mais em nada, então essa é uma das dificuldades, porque a pessoa na vulnerabilidade ela quer que as coisas aconteçam rápido, de uma hora pra outra, e o movimento ele não oferece casa, dinheiro, não oferece nada no lado material, quando há essas parcerias, aí nós compartilhamos. Então quando não, aí é quando fica bastante dificultoso.”

O semáforo fecha de novo. Nos despedimos. Lá vai ele pro ganha-pão. Mas, enquanto saía, ele me chama.

“Tem como me arrumar um cigarro desse aí?”


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