AIMÉ CÉSAIRE E A NEGRITUDE
Pode-se dizer que a palavra Negritude ganhou seus primeiros usos afirmativos nos anos 1930, em pleno entre guerras, entre os jovens negros que perambulavam pela Paris universitária de então. É do contato entre o martinicano Aimé Césaire e o senegalês Léopold Sédar Senghor que surge uma profunda interlocução (que permaneceria ativa ao longo de mais setenta anos) e as bases daquilo que foi provavelmente o mais importante movimento cultural envolvendo o povo negro de língua francesa. A palavra Negritude apareceu pela primeira vez em 1935, quando Aimé Césaire, em um artigo publicado no jornal L’étudiant noir: […] queremos explorar os nossos próprios valores, conhecer os nossos próprios valores, conhecer as nossas forças por experiência pessoal, cavar a nossa própria profundeza, as fontes eruptivas do humano universal, romper a mecânica identificação das raças, rasgar os superficiais valores, abarcar em nós o negro imediato, plantar a nossa Negritude como uma bela árvore até que ela traga os frutos mais autênticos.”
Em meio às durezas do período pré-Segunda Guerra Mundial, havia uma comunidade negra considerável em Paris. Por ali passavam os artistas da Harlem Renaissance (um assunto que, por si só, merece vários capítulos), exilados e estudantes africanos, caribenhos e de onde quer que houvesse a força do povo negro. Se reunindo na casa das irmãs Paulette e Jeanne Nardal, as martinicanas que viviam na região de Clamart, formou-se ali uma agitação cultural viva e visível. Desses encontros, vieram à tona pelo menos três periódicos: o Légitime Défense, coordenado por Étienne Léro, Jules-Marcel Monnerot e René Ménil, cujo texto introdutório, quase um manifesto, caiu como um golpe nas mentes dos jovens poetas de então. Eles declaram guerra contra esse “abominável sistema de obrigações e restrições, de exterminação do amor e de limitação do sonho, geralmente designado sob o nome de civilização ocidental.” É um texto virulento que marcará a escrita vulcânica de Aimé Césaire.
Em seguida, viria a Revue du monde noir, organizada por Louis-Thomas Achille e as irmãs Nardal. Revista que teria a duração de dois anos e na qual circulavam também um pouco das ideias feministas das participantes. Nesta revista, um ponto-chave foi a presença de poetas como Langston Hughes, Claude McKay e Countee Cullen, do movimento da Harlem Renaissance, que na ocasião atendia pelo nome de New Negro.
Os movimentos emancipacionistas antilhanos de então, ao menos dos países que ainda se encontravam sob o jugo da França, não vinham pela busca de uma independência, mas daquilo que eles chamavam de assimilacionismo. Uma doutrina que, uma vez imposta pelo colonizador em pleno século XIX, foi ganhando os contornos de uma revolução. Os habitantes das ilhas viam nas leis francesas aquilo que sonhavam para si. Queriam direitos iguais. O Partido Comunista Martinicano (PCM), por exemplo, tinha no assimilacionismo uma de suas principais plataformas.
Para Aimé Césaire, nada mais tóxico: o assimilacionismo seria a maneira mais concreta de se perder no mundo. Das formulações da comunidade negra que se entretinha na França de então, Léopold Sédar Senghor apresentou a seguinte fórmula: “Negritude, o conjunto de valores de civilização do povo negro”. Aimé Césaire, que não se propunha discordar de seu frère, pensava com um olhar mais diaspórico. Para ele, a condição do negro nas sociedades coloniais era a de pessoas em busca de acesso à civilização europeia, como que houvesse uma eterna esperança de um dia poder fazer parte dela, embora todas as tentativas sempre desse em frustração, tal como aponta o interessante livro L’amère patrie: Histoire des Antilles françaises au XXe siècle (Pátria amarga: História das Antilhas francesas no século XX), de Jacques Dumont. A esperança no assimilacionismo conjugou todos os esforços daquele período, e ressignificou aquela doutrina que, em sua origem, se propunha vir para dobrar os sujeitos do processo colonial.
Aimé Césaire, Léon-Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor aparecem então com o periódico estudantil L’étudiant noir, que trazia um elemento fundamental de diferença em relação às revistas anteriores: uma crítica veemente e aguerrida contra a doutrina do assimilacionismo.
Assim, para Césaire, a Negritude passa por uma reformulação dos elementos de base surrealistas: pela supressão das camadas superficiais de civilização impostas pelo processo colonial, se chega finalmente ao Negro. Ao “Negro Essencial”.
E qual seria a formulação de Léon-Gontran Damas? Damas foi fundamental. Enquanto os demais se esforçavam em teorizar, Damas publicava seus poemas. Primeiro na revista Légitime Défense e mais tarde, em 1937, tendo sido o primeiro dos três a publicar seu primeiro livro Pigmentos. Damas vinha da Guiana. E a Guiana, sobre a qual ainda hoje pouco sabemos, é também uma sociedade caribenha. Não é uma ilha, mas, segundo Édouard Glissant, faz parte de um modo de ser que ele nomeia como “o discurso antilhano”.
Em 1948, Léopold Sédar Senghor organiza uma famosa antologia de poesia negra e malgaxe de língua francesa, na qual reúne poetas de diversas regiões. O livro, que se tornou famoso por ter vindo a público com um prefácio de Jean-Paul Sartre, trazia poetas como os haitianos Jacques Roumain, autor do belo Senhores do orvalho, publicado recentemente no Brasil, na tradução de Monica Stahel, e Léon Laleau, autor destes versos (tradução minha):
TRAIÇÃO
O coração viciado, que não se molda
À minha língua ou aos meus trajes,
Sobre o qual penduram como à corda,
Sentimentos e costumes que tu trazes
Da Europa, notaste a desesperança
E esse sofrimento sem igual
De aprisionar, com palavras da França,
O coração que me chegou do Senegal?
Mas voltemos a René Depestre: esse homem de língua crioula, mas de escrita francesa, conta que já era poeta quando conheceu a Negritude. A Negritude, que, por sua vez, não pode e não deve ser considerada o único movimento de poesia negra do mundo – uma vez que o Haiti já tinha vindo, nos anos 1920, com seu movimento indigenista; os Estados Unidos com a Harlem Renaissance; Cuba com a poesia criolla e assim por diante. Ademais, René Depestre, um mestiço em um país que dá aspectos de classe social para a mestiçagem, se declara não como um mulâtre (tal como talvez fizesse seu amigo tirano, Duvalier). Ele se coloca “de pé”, como em um poema de Césaire. Evoca, como Césaire, a máquina de costura Singer com a qual sua mãe alimentou os filhos. Como Césaire, também sonha frequentemente com um retour au pays natal, até que, diferentemente deste, decide um dia declarar o seu Bom dia e adeus à Negritude, mas essa já é uma outra história.
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