sexta-feira, 26 de agosto de 2022

SAUDADES É UM SER

 POR: JOÃO CANIZARES
No caminho da boiada, o distrito de Andrequicé, em Três Marias, a 30 quilômetros da sede da cidade, respira a memória de um dos vaqueiros, Manuel Nardi, que inspirou Guimarães Rosa para o livro Manuelzão e Miguilim (1964), que traz um dos contos célebres do autor: Uma história de amor. Outras histórias de amor reais são escritas no lugar. Amor pelo lugar, inclusive, e pelo passado.

O trabalhador rural José Raimundo Pereira Filho, de 48 anos, teve que trocar a própria terra (onde “plantava de tudo”) por um emprego em uma fazenda arrendada para indústria siderúrgica, na área rural de Três Marias. Por três anos, por falta de transporte, ele só conseguia voltar para casa a cada 15 dias. “Era arroz, milho, feijão, fruta, mas acabou tudo por causa desse clima.”

No emprego, ele é responsável por transportar a pipa d’água e resfriar o carvão que sai dos fornos onde se queimam as toras de eucalipto. “Antes, era muita fruta, ave, córrego, água… hoje só vê esse seco.” José Raimundo diz que perdeu o gosto de andar pelo lugar em que ele mora. Nem experimenta mais a sua frutinha predileta, o murici-de-ema. “Era quando tinha cerrado. Agora só tem eucalipto.”

Com ele, trabalha a filha Daniela Pereira, de 23 anos, que está registrada como “ajudante de reflorestamento”, mas que na verdade atua na limpeza do lugar. Sobre o que era o passado do local em que mora, só ouviu falar e sente em si as saudades do passado que os pais transmitem a ela. “Deve ter sido bom. Mas meu sonho é ir estudar fora. Ser esteticista.”

Para a esposa de José Raimundo, Beatriz Pereira, de 44 anos, os cheiros ficaram no passado. “Lembro da mangaba, da cagaita, do araticum. Eram frutas nossas. Agora ficou raro. Meus filhos já não sabem nem o que é isso.”

João Canizares/Agência Pública
Beatriz Pereira e seu filho
No terreno nos fundos da casa, ela mantém uma horta com couve, alface, mostarda, rúcula, hortelã, pimenta, morango, jatobá, araçá e marcelica, além de algumas outras plantas mais resistentes ao clima seco. Não é possível produzir para vender e ajudar nos rendimentos da casa. A água nem é o suficiente. Para comprar arroz, feijão e banana, por exemplo, tem que usar o dinheiro do salário. Antes, vinha dos fundos da casa. O que o casal recorda também é o barulho dos pássaros. “Agora é tudo mais silencioso”, diz José Raimundo. “Só dá para escutar o vento”, lamenta Beatriz. Um barulho que carrega uma falta, como escreveu o conterrâneo Guimarães Rosa, em que a saudade é um “ser depois de ter”.

Saudade não falta na casa de Raimundo Antonio de Moura, de 80 anos, e Joaquina Pereira, de 78, também em Andrequicé. Aquecidas pelo forno a lenha, as lembranças de quando o milho, o arroz e a cana eram colhidos acompanham um aceite: “Era bem melhor”. “Por aqui, passavam três regos de água.” Cana e capim estão secos. O arroz, o casal também deixou de plantar e teve que gastar a aposentadoria no mercadinho. “Agora não tem fruta nenhuma. As chuvas vêm piorando nos últimos 15 anos.” Justamente quando Raimundo se aposentou do trabalho em carvoarias da região.

João Canizares/Agência Pública
Raimundo Antonio e Joaquina Pereira relatam alteração no clima da região
“O mundo está diferente. Não sei explicar. Antes, a jabuticaba rendia bastante entre setembro e novembro. A gente passava para os vizinhos. Hoje, mal dá para os bichos”, lamenta a esposa, Joaquina.

A aposentada tem razão, segundo o professor de biologia Geraldo Wilson Fernandes, do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da UFMG. O cerrado, de fato, tem se tornado mais seco. “Esse não é um fenômeno apenas no sertão de Rosa. Há indicações que a quantidade de chuvas é a mesma, só que ela cai mais rápida, restrita a um período menor.” Por isso, conforme explica o pesquisador, há mais tempo seco em toda a região, e isso se observa em vários pontos do cerrado brasileiro. “São indicações muito claras que estamos sofrendo com as mudanças climáticas.”

Como resultado, explica o professor, isso gera vários problemas. “As plantas têm menos tempo para crescer, influencia a produção de água e alimentos, e isso causa inúmeros problemas econômicos. Nós temos alertado as autoridades. O problema é que as pessoas não entendem ainda a gravidade”, avalia Fernandes.

João Canizares/Agência Pública
Wislene Soares, produtora rural, já sofre com as mudanças climáticas
Mas na vida da produtora rural Wislene Soares, de 39 anos, a gravidade tem a forma da redução do quanto as 13 vacas rendiam de leite para o comércio da família. Ela viu nos últimos cinco anos diminuir em 70% a quantidade de leite para fazer o requeijão e as tranças de queijo que o marido vende pela cidade. “A cana que os animais comem fica a maior parte do tempo seca. O capim também.” Teve que comprar capim mais resistente à mudança do clima.

Ainda em Andrequicé, em trabalho do início da manhã até o final da tarde, a agricultora baiana Natalice Aguiar, de 30 anos, vive com a enxada para tentar deixar a roça verdinha. Ela lembra que, há 13 anos, deixou a cidade de Rio de Contas (BA) na esperança de que o cerrado pudesse sustentar a família e ainda ter a própria venda. “Chovia mais. Hoje não é a mesma qualidade das hortaliças do que já foi. A secura ou a chuva demais atrapalham.”

João Canizares/Agência Pública
A agricultora Natalice Aguiar enfrenta dificuldades para sustentar a família com a queda na produção
É a alface que eles produzem que chega na casa das pessoas do lugar. O marido, Antônio Bertier, vende os produtos com uma moto ou de charrete pelo distrito. Na terra, também buscam segurar pés de sucupira, pequi e outras frutas regionais. Quando se aproximava da fazenda Tolda, nessa Andrequicé, Guimarães Rosa anotou: “Sucupira branca, jatobá miudinho, jacarandá, faveira […] Chegamos à vereda da Tolda. O cheiro bovino se acentuando mais e ficando doce como o mel de tacha”.

Sente o cheiro de mel cada vez mais longe o apicultor Rogério Gouveia, de 41 anos. Ele usa as plantações de eucalipto para colocar as caixas de abelhas. Mas, em 2022, o rendimento foi de desanimar. A cooperativa com que trabalha na cidade, com dez apicultores, conseguiu, de acordo com ele, uma quantidade “ínfima” de mel. “De janeiro a junho, não consegui nada.” Em períodos anteriores, chegaram a 40 toneladas no ano. Ele atribui a mudança ao clima mais quente, à perda do cerrado por desmatamento e fogueiras clandestinas por produtores de gado e aos defensivos aplicados nas florestas de eucalipto da siderúrgica Gerdau. “No ano de 2004, com 780 enxames de abelha, eu tirei 204 tambores em alguns meses. Agora vivemos sete ou oito meses de seca.”

João Canizares/Agência Pública
Caixa de abelhas pendurada em eucalipto
Sobre a exploração em Três Marias, a Gerdau explicou à reportagem que atua em uma área de 39 mil hectares. “No município, a companhia opera com uma Planta de Carbonização para produção do carvão vegetal a partir da madeira cultivada.” A respeito da atividade de apicultura, “como forma de fomento ao desenvolvimento socioeconômico da região”, a Gerdau disse que procura incentivar o empreendedorismo de pequenos apicultores em Três Marias e região com o programa “Néctar do Futuro”.

“A iniciativa reúne dezenas de produtores por meio de associações que utilizam as plantações de eucalipto da empresa como pasto apícola para produção local de produtos gerados pelas abelhas.” A empresa não respondeu sobre a utilização de defensivos agrícolas e explicou que colaboraram com a produção de mais de 40 toneladas de mel silvestre por ano.

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Produtores locais apontam impacto da presença da siderúrgica Gerdau na região
Para o secretário de Meio Ambiente, Roberto Rodrigues, os relatos de seca na área rural não são tão graves quanto parecem. “É uma percepção mais do ponto de vista sentimental [dos moradores do lugar]. Chove a mesma quantidade do que antes”, alega o gestor. Mas não é tão simples assim. O impacto da secura vai muito além do “sentimento” ou da nostalgia. Segundo Dossiê da Climatologia de Minas Gerais, publicado na Revista Brasileira de Climatologia, as mudanças no regime de chuvas são inquestionáveis.

O levantamento diz, como projeção para o futuro, que haverá ainda mais “redução do número de dias úmidos entre o outono e a primavera e aumento do número de dias consecutivos secos em todas as estações do ano”.

O professor de biologia Geraldo Wilson Fernandes, da UFMG, enfatiza que é necessário contextualizar que a rapidez com que cai torna episódica a chuva, o que não rende benefícios reais para as pessoas e plantações. Aliás, o que ocorre é o contrário. Conforme o pesquisador explica, os temporais ocasionais prejudicam a lavoura e a capacidade de as pessoas viverem da terra.


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