sexta-feira, 26 de agosto de 2022

"MARETÓRIOS" SOB ATAQUE

 POR: CÍCERO PEDROSA NETO
Para Célia, um dos motivos principais do impacto da pesca de arrasto é a preferência por determinadas espécies que possuem valor de mercado, enquanto outras são jogadas fora. “Eles tiram da rede dele e jogam fora porque pra eles só interessa o camarão ou então a pescada-amarela, por causa do mercado da grude.”

Grude é o nome da bexiga natatória que regula a quantidade de ar no peixe, garantindo-lhe navegabilidade e equilíbrio, capacidade de emergir e submergir. A grude, além de utilizada na indústria como emulsificante, é consumida seca na China e outros países asiáticos como iguaria, o que cria maior demanda pela pescada-amarela e aumenta a pressão na espécie, criando distorções: “A grude vale muito mais que o peixe. Então, às vezes, é mais explorado o peixe pela grude, do que pelo próprio peixe”, explica Victoria Isaac, professora da Universidade Federal do Pará (Ufpa) e especialista em biologia pesqueira.

Essas atividades de pesca agressivas, junto aos efeitos globais das mudanças climáticas, estariam afetando as aves, com consequências inesperadas para os peixes e para a saúde das populações pesqueiras. Segundo Célia, “as aves migratórias já nem estão vindo; ou as que vêm não estão voltando. E a gente está preocupado com isso, porque essas aves migratórias contribuem muito para um equilíbrio dessas espécies”.

Ela conta que as aves se alimentam de um parasita chamado de “piolho do peixe” (argulus) pelas comunidades, que se aloja nas guelras ou na cabeça do peixe, fazendo-o perder peso e até matando-o. Célia explica que, como as aves se alimentam desses parasitas, havia um equilíbrio. Mas, diante da constatação dos pescadores de menor presença das aves no território, aumentou o número de peixes com parasita.

Com tamanhas dificuldades enfrentadas pelas comunidades pesqueiras, muitas têm sido forçadas a se adaptar à agricultura em terrenos desfavoráveis, arenosos ou lamacentos. É o que explica Marly Lúcia da Silva Ferreira, secretária nacional de mulheres da Confederação Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (Confrem). “No caso de escassez de produtos de pesca, e que ele não tenha mais viabilidade de se sustentar, de se autossustentar ali, ele vai ter que migrar, buscar outras alternativas”, afirma Marly, moradora da comunidade de Tamatateua, na Resex Marinha Caeté-Taperaçu, na cidade de Bragança, no nordeste do Pará.

Cícero Pedrosa Neto/Agência Pública
“O que vai acontecer?”, pergunta Marly Ferreira sobre a escassez da pesca
A escassez da pesca faz com que comunidades inteiras, antes dependentes do pescado, migrem, por exemplo, para junto do mangue, para se alimentar de caranguejo. “Se não houver um ordenamento para captura, para o manejo desse crustáceo, o que vai acontecer? Vai acabar”, reflete Marly.

É por isso que, para ela e para as comunidades pesqueiras da Amazônia marítima, território e segurança alimentar não podem ser separados. Daí a demanda pela preservação e expansão dos limites das Resex marinhas, como a Mãe Grande de Curuçá e a Caeté-Taperaçu. Em uma reunião com pescadores em 2018, Célia criou o conceito de “maretório”, que deriva da palavra “maré” e aponta a relação entre corpos, comunidades e os movimentos das águas: “Nós somos realmente o ambiente que nós ocupamos, o ambiente das marés, dos manguezais”.

“Maretório” é, para ela, “a autenticidade das nossas vivências, o acontecimento do dia a dia no território, a conjuntura produtiva de uma diversidade de proteínas. É dessa produção que a gente organiza a nossa economia, organiza o nosso consumo sustentável, a moradia”. Nas palavras da líder, trata-se de “convivência, dos nossos diálogos sobre a importância desses espaços, desses ambientes onde nós nascemos, onde nós vamos conservando toda a nossa historicidade de vida, toda a universalidade das nossas vidas, dos saberes, dos fazeres”.

“É no ‘maretório’ que nós vamos buscar o ápice da nossa produção. E toda a nossa produção está naquilo que nós compreendemos como a nossa força legítima de vida, que é a soberania alimentar. Sem alimento a gente não vive, a gente morre, a fome mata”, conclui.

Cícero Pedrosa Neto/Agência Pública
Pesquisadores apontam que espécies mais valorizadas pelo mercado correm mais risco, o que deixa aos pescadores tradicionais os pescados que geram menos dinheiro

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