segunda-feira, 22 de agosto de 2022

 

Como juntar – e sobreviver?

O catarinense Daniel Paz dos Santos, 45 anos, longos cabelos e barbas loiros, troncudo, representante nacional da MNPR de Santa Catarina, vivia na Praça da Alfândega e bebia dois litros de cachaça 51 por dia. Dependendo do dia, até mais. Era sua porção diária. Era quase sua religião, como define hoje.

Em 2010, em um domingo qualquer, quando a Igreja católica da região promovia seu tradicional almoço dominical com a população em situação de rua, servindo mais de 300 pessoas, Daniel foi convidado para participar de uma reunião do Movimento Pop-rua.

Vou lá pra ver o que esse pessoal está conversando, pensou. E foi. Chegou por lá, “tri-bêbado” por suas porções diárias de 51 e, em silêncio, escutou pessoas que viviam nas mesmas condições que ele discutindo políticas públicas.  Na segunda semana, novamente alcoolizado, prestou mais atenção naqueles discursos todos. Na terceira semana, já não estava mais alcoolizado e pode, timidamente, fazer algumas intervenções durante a reunião.

“Aí comecei a gostar de participar das reuniões, de saber como eu poderia buscar ajuda pra mim e pras pessoas mais velhas que moravam comigo nas marquises.”

Esse era um problema latente para Daniel. Ele contabiliza que, nessa época, levava duas surras semanais por defender os idosos que viviam nas ruas. Isso sem contar as porradas do “aparelho repressivo estatal”. “Apanhava muito dos polícias, chegavam e metiam o coturno em mim e neles [idosos], fazia eles levantarem, botava as coisas deles na rua e pá. E aí fui participando, participando, e minha primeira formação foi pela saúde em Londrina, depois fui fazendo mais, hoje eu tenho umas 120 formações entre assistente social e direitos humanos, habitação, pastoral de rua, foi aí que eu fui me politizando.”

Organizar um movimento social como esse não é tarefa fácil. Quem está nas ruas é porque chegou em um ponto de vulnerabilidade social extrema. Não só: também estão aniquilados psiquicamente. Sem família, sem perspectivas, alguns com dependência química. Além disso, levam uma vida errante pelas ruas, seja por decisão ou pela repressão policial. O maior desafio parece ser conseguir a próxima refeição e sobreviver.

“Não é um desafio. É um resgate”, corrige-me Daniel. “Você tem que resgatar a autoestima das pessoas. Você está há muito tempo na rua e você vai perdendo muitas coisas. Bem, você não perde. Você deixa de lado porque você vive marginalizado, na pobreza, não tem nada. O que você tem é a cachaça e o cigarro, o que é fácil de arrumar. Mas ganhar um prato de comida hoje é difícil… Você vê muitas pessoas hoje, três da tarde, revirando lixo. E algumas outras se sentem incomodadas com isso e começam a procurar o movimento pra estar juntas, para participarem, e aí começam um caminho de politização. Sim, é difícil por causa do alcoolismo, da fome, do transporte – muita gente não vem porque não tem passagem ou só vem pra tentar comer algo –, mas acho que é um mito dizer que pelas necessidades que estão aí a galera não se organiza. Lá no fundo, mesmo desacreditadas e desencorajadas, elas têm a real necessidade de lutar.”

Além disso, não há uma fonte de arrecadação fixa para sustentar o Movimento. A sede nacional, localizada embaixo do Viaduto Pedroso no centro de São Paulo, está sempre com a manutenção atrasada. Falta grana para comprar produtos de limpeza, para pequenos reparos e para fazer o rango diário. Recentemente, a prefeitura ameaçou transferir esse espaço para uso do Rotary Club.

“É praticamente autogestão: sem apoio federal, municipal ou estadual”, relata Edvaldo Gonçalves de Souza, 49 anos, coordenador estadual do Movimento Pop-rua. “As luzes queimavam e a gente não tinha como repor, os banheiros ficavam entupidos, sem gás pra cozinhar, os projetos parados por falta de verba. Vivemos, praticamente, do Bolsa Família: fazemos uma vaquinha entre quem recebe o benefício pra ajudar. Não gastamos nem com a gente mesmo”.

O orçamento reduzido impede também viagens de lideranças para articular projetos e o desenvolvimento de atividades. Para viajarem para o Congresso da Pop-rua, por exemplo, foi necessário passar o caneco com entidades, vereadores, deputados e outros movimentos sociais. Mesmo assim, foi apertado. E conjuntura política e econômica tem restringindo, ainda mais, a sustentação: parceiros, como sindicatos, já não têm mais recursos para apoiá-lo.

Porém, segundo Anderson Miranda, não se pode ficar refém de parceirias. 

“O olhar do movimento é pra rua. Tem que discutir com governo e com parceiros, mas não ser cooptado por eles. Política é aquela velha história: é igual feijão, só cozinha na pressão. Sem a população da rua o feijão não vai cozinhar nunca! Não pode perder o diálogo, as pessoas estão sendo violadas. E não é difícil mobilizar essas pessoas. O que se faz para juntar empresários? Diz que vai baixar impostos, dar mais incentivos etc. Com a rua é a mesma coisa: o que estamos oferecendo?”

Foto: Carolina Simon

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