Ouro Preto: a luta pela água chega ao Brasil
Ampla mobilização popular sacudiu acordo que entrega saneamento a corporação internacional – e pode derrubá-lo em referendo. O que isso revela sobre as “smart cities”, a captura do Comum pelo capital financeiro e a cidadania insurgente
Por Reginaldo Luiz Cardoso | Colaborou: Maurício Ayer
Na histórica cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, um referendo pode reverter a privatização da água. A captura do abastecimento público foi realizada em 2019, por meio de um acordo a portas fechadas entre a prefeitura e a Saneouro, nome-fantasia de uma megacorporação coreana. Mas provocou revolta, tão logo veio a público. Alguns detalhes do negócio atiçaram a indignação na antiga Vila Rica dos inconfidentes. As contas d’água – hoje fixas, de R$ 26,77 mensais por moradia ou comércio – poderia saltar a valores dezenas de vezes maiores. E para marcar a mercantilização, as multicentenárias ruas e calçadas foram feridas a golpes de britadeira, para instalação de hidrômetros.
A insurgência social assumiu formas múltiplas. A resistência dos moradores impediu a devastação hidrométrica. Em meio às ameaças da PM, um carro da Saneouro ardeu em chamas. Em 2020, elegeu-se um prefeito contrário à privatização – embora, como se verá, de convicções volúveis. Os vereadores viram-se forçados a promover uma CPI. Um Comitê Sanitário mais radicalizado está promovendo a destruição física das contas e a convocação a não mais pagá-las. Aprovado pela Câmara, o referendo depende agora apenas de uma formalidade: a marcação da data, pelo TRE mineiro.
Os fatos vêm sendo, previsivelmente, ocultados pelas mídias de mercado. Mas têm enorme relevância. Vinte e um anos anos depois da Guerra da Água em Cochabamba (Bolívia) e depois de a captura privada ser revertida em dezenas de cidades do mundo, o Brasil pode entrar na luta para desmercantilizar o acesso ao líquido que é símbolo da vida. Bem no momento em que uma lei proposta pelo governo Bolsonaro, e aprovada pelo Congresso, ameaça entregar tudo ao mundo corporativo. Este artigo narra os principais acontecimentos da longa luta de Ouro Preto e tira conclusões ligadas ao exame sociológico e político das sociedades contemporâneas e de suas lutas.
São várias as razões alegadas para tal processo de concessão. Uma delas, de que a inexistência de controle do consumo de água no Município provoca a escassez e até mesmo o desabastecimento em alguns pontos da cidade. Isto numa cidade em que água existe em abundância e cuja Prefeitura, mediante uma taxa mensal irrisória, fazia o fornecimento universal de água aos seus cidadãos. O que equivale a dizer que não havia hidrômetros instalados nos imóveis do Município. Mas, em nome da racionalidade técnica, da sustentabilidade, da desoneração dos gastos públicos, fez-se a operação via edital licitatório de concessão plena de água e esgoto. E entrega-se o controle da água a uma transnacional interessada em fazer de Ouro Preto uma plataforma para expandir sua atuação no país.
Neste sentido, é perceptível como o mercado financeiro global e as redes de informação atravessam e capturam as cidades. Não houve acaso na escolha de Ouro Preto como o lugar inicial das atividades da holding sul-coreana no estado de Minas Gerais. Foi operada como vitrine. Uma vitrine que tem o título de Monumento Nacional (1933) e o de Patrimônio Mundial pela Unesco (1980). Fato que foi destacado no site da empresa: “A cidade histórica de Ouro Preto será operada pela GS Inima Brasil” (A CIDADE, 2019).
Em todo caso, o rumo do território está posto em disputa. Dito isto, como é construída a narrativa da hegemonia do mercado sobre a sociedade? É possível construir uma narrativa contra-hegemônica, uma melhor forma de contar histórias, que tenha o exercício da cidadania como protagonista, conforme propõe a filósofa da ciência Isabella Stengers (2015)?
Rebelião em Vila Rica: uma outra história?
Um evento-marco dessa história ocorreu no dia 4 de julho de 2019, uma quarta-feira fria, quatro dias antes da comemoração dos 308 anos da fundação da cidade de Ouro Preto. Em cerimônia a portas fechadas, o então prefeito Júlio Pimenta (MDB) reuniu-se com um grupo de autoridades políticas locais e empresários para celebrar a assinatura da concessão plena do sistema de água e esgoto do município por exatos 35 anos. Os que participaram do petit comité saíram dizendo tratar-se de “um marco para todos nós”, “um grande passo para a cidade”, “um divisor de águas” (SILVA, 2019). O edital licitatório finalizado em 1º de março de 2019, foi arrebanhado por um candidato único, um consórcio entre as empresas GS Inima Brasil Ltda, IMP S/A e EPC S/A. Poucos meses depois, em janeiro de 2020, nascia a Saneouro, nome fantasia do grupo.
Retraçando a constituição deste consórcio, temos: uma empresa sediada em Seul, que controla uma empresa espanhola, que, por sua vez, exerce o mesmo tipo de controle através de uma empresa no Brasil, a qual, por sua vez, ao se consorciar com duas empresas mineiras, passou, via concessão plena, a ter o direito de explorar, por 35 anos, o sistema de água e esgoto de um município em Minas Gerais. Traduzindo de forma explícita: uma holding sul-coreana, a GS Group (GS, de Golden Star) através de seu braço GS E&C (Engineering and Construction), controladora da GS Inima Environment, sediada na capital espanhola, Madri, cuja subsidiária brasileira GC Inima Brasil Ltda., junto com as empreiteiras mineiras, sediadas em Belo Horizonte, a MIP Engenharia S/A e a EPC Engenharia Projeto Consultoria S/A, uniram-se no consórcio que veio a ser conhecido como Ouro Preto Serviços de Saneamento S/A – Saneouro, criada unicamente para gerir e operar a concessão de 100% do sistema de água e esgoto do Município de Ouro Preto.
Até então, em Ouro Preto, o saneamento básico era responsabilidade do Serviço Municipal de Água e Esgoto (Semae), criado através da Lei Municipal nº 13 de 24 de fevereiro de 2005. Este fato é digno de nota, já que em cidades do porte de Ouro Preto o serviço de água e esgoto, geralmente, está atrelado à Secretaria Municipal de Obras. Passava-se da chamada administração direta para uma autarquia. O Semae produziu uma série de melhoramentos ao longo de seus 15 anos de existência. Durante a gestão do prefeito Júlio Pimenta, o Semae sofreu um ataque neoliberal amplamente conhecido: sucateamento de um serviço público, consequente endividamento e, por fim, privatização, vista então como única saída plausível. O órgão foi extinto após a assinatura do contrato de concessão plena entre a Prefeitura e a Saneouro.
Este “marco”, “o grande passo”, feito com o aval dos poderes Executivo e Legislativo da cidade, ocorreu sob a justificativa – inconsistente, uma vez que o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) estava largamente desatualizado – de que o consumo era de 400 l/hab./dia, incluindo perdas por vazamentos e desperdícios, estimados em 50 %, e de que pouco mais de 1% do esgotamento sanitário sofria tratamento adequado etc. A resolução deste problema acarretava a imediata hidrometragem do consumo dos cidadãos da cidade e a utilização de equipamentos de alta tecnologia para tratamento da água, conforme salientou o CEO da GS Inima Brasil (SILVA, 2019).
Com a pandemia de covid-19, a situação calamitosa vivida no resto do país obviamente também incidiu diretamente em Ouro Preto: falta de vacinas, debates inúteis sobre estes ou aqueles medicamentos, letalidade crescente e a quarentena. Evidentemente, diante deste quadro caótico – crise sanitária, crise econômica, crise social etc. –, todo o controle cívico parecia ter arrefecido.
Indiferente a isto – ou por causa disto –, a Saneouro, sem o menor know-how e sensibilidade com o momento e no lidar com o patrimônio histórico material do lugar, começou a esburacar ruas, abrir valas e mais valas nas portas das casas dos cidadãos, e, principalmente em seu centro histórico, a quebrar lajotas de passeios centenários etc. (MACHADO, 2021). Esta operação de guerra era a execução das obras de instalação dos hidrômetros que, ao contrário de outros sistemas, foram instalados nos passeios, fora dos imóveis e não no seu interior, deixando-os à mercê da intervenção, para o bem e para o mal, de qualquer um alheio ao estabelecimento residencial ou comercial.
A desmedida foi tamanha que o Ministério Público, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a Defesa Social foram acionados pela população (MACHADO, 2021). Conseguiu-se apenas aplacar a fúria avassaladora da empresa, uma vez que a mesma apresentou uma série de atestados e licenças cabíveis.
Cidade inteligente e cidadania insurgente
O comemorado marco é emblemático de um processo de progressiva inserção de uma cidade como Ouro Preto no “mundo do indistinto”, um espaço indeterminado no qual as ações pública e privada mesclam-se de tal modo que se torna imperceptível o que é próprio do campo de cada uma delas. Integrada na ideologia neoliberal, esta prática camufla os conflitos políticos reais e configura um cenário de poder sem centro. Um sintoma do novo design do Estado, extemporâneo às atividades cotidianas das pessoas. Isso nos revela um importante capítulo do movimento do capital, totalmente autônomo da zona civil, não nos escapando que o que se apaga e apazigua, com este dispositivo, é a dimensão política, portanto, pública.
Assim, a cidade apresentada como um espaço de e com diferentes escalas de consumo surge como um ideal a ser alcançado, algo capaz de fazer com que a maioria absoluta aceite consensualmente as suas condições através de um deslizamento de sentido em que tudo o que era distopia passa a ser desejado, em um abraçar voluntário e fantasmático de um mundo apenas visto e percebido enquanto negócio. É neste polo que se localiza o conceito de “cidade inteligente”, entendida em uma acepção que contém um sentido claramente segregador, um evidente desdobramento da lógica do condomínio fechado, que tanto prosperou nas cidades a partir dos anos de 1990.
Observa-se um processo de desterritorialização urbana em escala planetária, contínua e acelerada, que produz uma geografia do poder até então inimaginável, como vimos ao rastrear o caminho decisório que está por trás do consórcio Saneouro. Aos cidadãos resta criar mecanismos práticos de mobilização cidadã que estanque esse processo, como, por exemplo, a “cidadania insurgente” (HOLSTON, 1996, 2013).
Resistência e ação popular direta
Voltamos a Ouro Preto, agora ao lado da população ouro-pretana, que desde a publicação do edital de licitação já demonstrava a sua insatisfação com a medida. O advogado da Federação Associativa dos Moradores de Ouro Preto (Famop), Guido de Mattos, relata: “Havia um ‘consenso’ no meio político de que a cidade precisava tratar seu saneamento e que a hidrometração era necessária. Contudo, quando começaram as simulações de cobrança, percebeu-se que o valor tarifário era absurdo e muito acima dos valores cobrados em outras cidades”. No dia 12 de julho, o Jornal O Tempo noticiou que, pelas simulações, famílias que então pagavam R$ 22 passariam a pagar mais de R$ 1.000. Para Guido, a mobilização social que se instaurou na cidade foi construída a partir daí.
As manifestações dos movimentos sociais foram tão intensas que a Saneamento Ambiental Águas do Brasil S/A (SAAB), empresa que pretendia concorrer ao contrato, retirou-se do processo licitatório. Segundo um representante da empresa, “a reação popular muito forte em relação ao serviço, assustou a empresa”, que acabou desistindo.2
A população, que não foi consultada sobre a decisão a ser tomada ou das soluções alternativas que poderiam ter sido escolhidas, prontamente começou a tomar uma série de ações concretas. Entre elas, nas eleições do ano seguinte, expulsou da Prefeitura o então alcaide, que concorreu à reeleição. E o sucessor, Angelo Osvaldo de Araújo Santos (PV), foi eleito com a promessa pública de reverter o processo. Em um de seus panfletos de propaganda lia-se o seguinte: “Encerrar o contrato com a Saneouro e a volta com o Semae é a única solução”.
Ao tomar posse, o prefeito Angelo Osvaldo declarou que estava consultando notáveis juristas a respeito da reversão do processo de licitação. Ante a hesitação do Executivo Municipal frente às obras que, segundo a população, deveriam ser embargadas, as associações de bairros e dos distritos começaram a se articular. A ação imediata foi direcionada à Câmara Municipal. Pressionada pelos manifestantes, a Câmara atendeu à demanda popular instalando em 9 de março uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)3 para investigar o processo licitatório que resultou na concessão.
Entre os movimentos sociais que protagonizaram a luta pela remunicipalização do sistema de água e esgoto do Município, cabe destacar, primeiramente, o Comitê Central de Mobilização, uma reunião de partidos de esquerda, sindicatos, Famop, movimentos sociais de mulheres, coletivos antirracistas etc. Outro movimento importante foi o Comitê Sanitário de Defesa Popular de Ouro Preto, Mariana e região, organizado por anarquistas e lideranças de bairros.4 As forças foram se somando e hoje reúnem mais de vinte movimentos, organizados em uma federação.5
Marilda Dionísia é representante dos coletivos Mulheres do Morro e Mãos Dadas, este último criado durante a pandemia para recolher e distribuir cestas básicas para as centenas de famílias que perderam seus empregos. Para ela, o contrato tem de ser anulado, pois se trata de uma questão de Saúde Pública. Além do mais, considera que é o próprio município que deve gerir as águas, um direito humano. “Vai cobrar? Vai. E é até justo, mas o investimento e a arrecadação fica no próprio município”. A privatização da água agravaria a já trágica situação da população pobre da cidade: “Ouro Preto vive um momento muito pesado. Quem não tem dinheiro para comprar comida, vai ter dinheiro para pagar água?”, questiona. Segundo Marilda Dionísia, o problema de Ouro Preto não é falta d’água e sim de má distribuição (isto é, má administração, incúria pública…). Para reforçar seu argumento, a moradora do Morro de São Sebastião, exemplifica com o seu território: “é aqui que nasce o rio das Velhas” (um importante afluente do rio São Francisco).
Com a CPI rolando na Câmara Municipal, os movimentos intensificaram a luta de pressão. No dia 28 de maio, publicaram conjuntamente a “Carta do Povo de Ouro Preto”, dizendo que:
“A privatização da água, se cabalmente completada pela atual gestão da prefeitura, além da continuidade da mais descarada política entreguista de nosso patrimônio, representará a retirada de um direito básico da população: o direito de acesso à água potável. A cobrança proposta afetará de forma mais grave os mais pobres, levando ainda mais miséria para a população, que já sofre todas as mazelas da maior crise econômica, social, política e sanitária da história.”
A Carta é incisiva ao questionar a postura do prefeito que, hesitante em relação aos seus compromissos de campanha, passou a se declarar “defensor das privatizações e das parcerias público privadas, demonstrando que não fará nada para impedir o roubo de nossa água, senão que arrastado por forte mobilização e pressão do povo”. Os movimentos enfatizam que não faz sentido falar em “falta d’água” como se a região não fosse rica em fontes naturais. Porém, a indiscriminada e secular atividade de mineração na região, causadora de imenso impacto sobre as fontes de água, não parece ser tratada com o mesmo rigor que o consumo doméstico passaria a ter com a privatização: “A falta d’água é causada pelo esgotamento dos lençóis freáticos devido ao volume de água extraído pela atividade minerária. Nossa água escorre diuturnamente pelos minerodutos da Vale, onde não há hidrômetros nem se fala em desperdício”.
Cerca de dois meses depois, na noite de 24 de julho de 2021, manifestantes ocuparam a Praça Tiradentes, em frente à Câmara Municipal, decididos a enfrentar o frio das noites de inverno e ali permanecer acampados até tirar a Saneouro do controle do sistema de águas e esgotos da cidade. O acampamento, iniciado pela Ocupação Chico Rei, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), à qual se somaram outros movimentos sociais, tinha um objetivo imediato e claro: não dar um centímetro de trégua aos vereadores na consecução dos trabalhos da CPI. Devido à pandemia, em acordo com as autoridades sanitárias, cada movimento montou uma única barraca – e elas se contavam às dezenas.
Em meio a toda essa movimentação sociopolítica, a Saneouro fez ouvidos moucos e continuou a instalação dos hidrômetros. No entanto, em vários pontos da cidade e em alguns distritos, funcionários do consórcio foram recebidos hostilmente pelas respectivas populações e expulsos ou impedidos de instalar os hidrômetros. Diante disso, equipes da Saneouro passaram a ir aos bairros acompanhadas de policiais militares (PMMG) com o objetivo de intimidar e reprimir os cidadãos que não deixassem os técnicos da empresa instalar os hidrômetros. Ao contrário do esperado, os cidadãos do bairro Pocinho, além de barrarem a instalação, fizeram uma ação de resposta, incendiando uma viatura da empresa uma semana após a tentativa de repressão. Largamente retratado nas redes sociais, o ato aconteceu em 28 de setembro de 2021. Não há notícias de prisões ou ações semelhantes (SOARES, 2021a). Os pontos de resistência não amainaram. Enquanto isso, nos sites das empresas consorciadas reinava a paz dos cemitérios. Tudo ali transpirava normalidade.
A vigília dos movimentos na Praça Tiradentes durou 74 dias e só terminou com a aprovação do relatório final da CPI. Em 5 de outubro de 2021, os vereadores aprovaram por unanimidade o Relatório Final, que recomendava, dentre outras medidas:
“Sejam adotadas as providências administrativas necessárias para a anulação da Concorrência Pública 006/2018 e do contrato de concessão dos serviços públicos de abastecimento d’água e esgoto sanitário devido às irregularidades apontadas, com a assunção dos serviços pela Administração Pública” (CÂMARA, 2021, p. 69-70).
Junto com o Relatório, assinaram ainda, por unanimidade, uma emenda aditiva indiciando o ex-prefeito Júlio Pimenta, responsável pela contratação do consórcio, por improbidade administrativa (SOARES, 2021b). Neste mesmo dia, ao lado dos vereadores, os movimentos sociais, representantes de partidos, militantes e moradores fizeram uma caminhada para a entrega do Relatório Final ao chefe do Poder Executivo – o prefeito –, e ao Poder Judiciário, – o promotor público da Comarca, representante do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
Marilda Dionísia destaca que a CPI ajudou a reforçar a luta, pois, se no princípio a maioria dos vereadores relutavam em aprofundar a investigação, com a pressão popular ela teve um resultado muito além do imaginado. Só estranha o fato de o atual prefeito até agora não ter assinado (homologado) o Relatório Final.
Os dois vereadores mais atuantes durante a CPI, Júlio Gori (PSC) e Wanderley Kuruzu Rossi Jr. (PT), em reunião com este autor, em 14 de julho de 2022, véspera do recesso parlamentar, reafirmam este ponto de vista: “O mais triste é que até hoje a nossa CPI não teve um parecer nem do Ministério Público nem da Prefeitura”.
Para além dos hidrômetros
Em dezembro de 2021, a Saneouro anunciou que, a partir de janeiro de 2022, passaria a cobrar as tarifas. Foi impedida judicialmente pela Câmara Municipal, pois não havia o mínimo de 90% de hidrometração, condição sine qua non do contrato de concessão para início da cobrança. Segundo informe da Prefeitura (COELHO, 2021), havia, àquela altura, somente 73,57%, e afirmava, ainda, que este fato era resultado da incapacidade técnica e/ou falta de estudos preliminares por parte da empresa. Em maio de 2022, a Saneouro anunciou que já havia condições para a cobrança das tarifas e que, a partir de julho, passaria a cobrá-las. Um parecer da Câmara Municipal indicou 83% de hidrometração. Ato contínuo, a população, via seus representantes, responde a isso afirmando que não havia esta possibilidade aritmética, dadas as milhares de recusas e impedimentos, por parte da mesma, de instalação dos hidrômetros.
Desta vez, é a Saneouro que entra na justiça afirmando o seu direito de passar a cobrar as tarifas. Incrementa o quiproquó. As associações vicinais de bairros e distritos unem-se em torno de uma federação, a Força Associativa dos Moradores de Ouro Preto (Famop), o que lhes proporcionou uma maior agilidade na tomada de decisões. E é sob esta nova estrutura que a população retorna à Câmara Municipal, exigindo a assinatura de um requerimento propondo um referendo, conforme previsto no artigo n.º 14 da Constituição Brasileira, na Lei Federal n.º 9.709/1998 e na Lei Municipal n.º 23/2002. Assim, em 15 de junho de 2022, a Câmara Municipal de Ouro Preto, atendendo à demanda da Famop, assinou o requerimento. Ainda segundo as leis, o referendo será convocado após publicação de um decreto legislativo, que será encaminhado à Justiça Eleitoral depois de aprovado em plenário. Após este processo, caberá à própria Justiça Eleitoral abrir e conduzir o referendo.
Em paralelo, em julho de 2022, o Comitê Sanitário de Defesa Popular de Ouro Preto organizou novas manifestações chamando os cidadãos a se reunir com suas contas de água em mãos – e fazer com elas uma fogueira em praça pública. A convocação é para quem ninguém pague mais nem um centavo até que a Saneouro seja banida de Ouro Preto.
A construção de um novo marco
Para Guido de Mattos, o que se vê, neste momento, é “bastante má vontade do Executivo e um certo ciúme do Legislativo pela iniciativa [do referendo]”. O assessor jurídico da Famop diz que estão se “mobilizando para fazer uma grande frente e trabalharmos pela estatização do serviço”. Para assegurar um processo seguro de reestatização, e não deixar a cidade sem serviço de água e esgoto, foi organizado um grupo de trabalho que está apresentando “uma estrutura provisória para o dia posterior ao referendo. E estamos dimensionando o custeio deste serviço e os impactos na cidade”.
Sobre o referendo, Guido explica que “a Câmara está para fazer uma consulta à Justiça Eleitoral acerca dos prazos, forma, custeio e data a serem observados, pois se trata de algo inédito”. Por ser ano de eleições, ele acredita que o referendo deverá acontecer no primeiro semestre de 2023.
Apesar das dificuldades, Marilda Dionísia acredita que a reestatização da água será conquistada. “Enquanto militante de movimento social, tenho que acreditar na luta, senão estou derrotada por antecipação. Portanto, que vai acontecer, vai! [Mas] não existe vontade política por parte dos poderes instituídos. A mudança, o restabelecimento do sistema público somente ocorrerá pela mobilização social. É isso que vai reverter o processo: mobilização social”.
Guido acredita que, dessa mobilização, pode vir uma “segunda Revolta de Vila Rica”. “Oxalá mostre os caminhos para as demais cidades do absurdo que é privatizar direitos tais como o acesso à água e o transporte público”.
Fragmentação das práticas e retorno ao território
A hegemonia neoliberal foi conquistada por uma guerra de narrativas. Como em todas as guerras, a das narrativas não tardou a reverberar por todos os campos, adaptando e criando termos. Nessa transição, a grande vedete do urbanismo atendia pelo nome de Planejamento Estratégico Urbano, uma simples aplicação de princípios de gestão privada de negócios ao mundo complexo, público e cidadão das cidades. Seus três fundamentos, as best practices, foram largamente estudados e debatidos ao longo da década de 1990 e início do 2º milênio: a cidade vista simultaneamente como empresa, como mercadoria e como promotora de si mesma, o city-marketing. Um modelo replicado nos quatro cantos do mundo, que se esvaiu a partir da avalanche de críticas e metamorfoseou-se em inúmeras outras iniciativas: acupuntura urbana, com seus parklets e ruas compartilhadas (shared spaces); new urbanism, planejando as cidades em escalas menores, afastando-se da monumentalidade das cidades globais; condomínios fechados horizontais e verticais; gentrificação; cidade sustentável; small city; edge city; available city; green-up city; urbanismo ecológico; H2PIA; cidade ao nível dos olhos; cidade como espaço sensual; cidade de pedestres, que retoma a argumentação já feita por Jane Jacobs no início da década de 1960. E, claro, smart city.
Não importa a denominação. No bojo dessa acelerada transformação estavam as subjetividades, que foram sendo reconfiguradas. Muito se diz sobre a transformação tecnológica da sociedade a partir dos anos 1970/80, da sua rapidez e de sua concretização global já na passagem deste milênio. Entretanto, pouco se diz ou se pensa, de como esta transformação foi extremamente violenta. Violência percebida na ruptura de referenciais com a terra, com a cidade, com a cultura e até mesmo com a esfera “infraindividual”. “Todos estão falando de desmaterialização, desenraizamento, desregulamentação, desterritorialização” (SANTOS, 2001, p. 27). Mas e o retorno do território? Não é disso que se trata a “Rebelião em Vila Rica”?
Essa gama de mudanças da face do capitalismo financeiro gerou uma gama de interpretações em inúmeros campos: na Sociologia, na Ciência Política, na Antropologia, na Psicanálise, na Economia do Trabalho, no Urbanismo, na Arquitetura, nos Estudos Literários, na Crítica Cultural. Poder-se-ia dizer que o intermezzo gramsciano trouxe mais confusão do que solidez. Mundo líquido, capitalismo turbinado, capitalismo artista, era do acesso, pós-capitalismo, pós-política, pós-socialismo… O embate aberto por essas interpretações ainda está em busca de um desfecho.
Em última instância, o que era verdade apenas para as cidades globais, passou a reverberar urbe et orbe. Como se diz na área business, as cidades globais transformaram-se em benchmarking. Enquanto se disputava o varejo, o atacado acabou se realizando. Podemos arriscar a dizer que o primeiro se originou em uma ponta das necessidades globais, complementada na outra ponta pelas necessidades locais.
Ao nos referirmos a Cidades Inteligentes, uma questão ficou no ar: como fazer uma cidade para todos, democrática, calcada no direito à cidade, se o uso dos procedimentos da democracia sempre encontrou limites, como nos lembra Bobbio (1987, p. 11), “nos centros de poder tradicionalmente autocráticos, como a empresa ou o aparato burocrático”? E acrescenta: “mais que uma falência, trata-se de um desenvolvimento não existente”. Como estabelecer, então, os parâmetros de exercício do direito à cidade, em um ambiente que cultiva a competição e, por conseguinte, a hostilidade?
Ao finalizar este relato, esperamos ter contribuído em três eixos específicos. No primeiro, o econômico, ajudar a entender como o mercado financeiro global atravessou e capturou as cidades, deitando raízes nos quadrantes mais improváveis do território nacional brasileiro, e de como o mesmo moldou os espaços. No segundo eixo, o político, demonstrar como as decisões políticas dos poderes instituídos estão referenciadas pelo eixo econômico entendido, criando assim, pelo menos, um esboço da economia política dessa construção. Por fim, no eixo social, observar como os atores que sofrem as consequências diretas e indiretas da economia política identificada estabelecem estratégias contra-hegemônicas para garantir e, no limite, provocar algum soerguimento de seus direitos sobre a cidade e, consequentemente, sobre suas próprias vidas.
Este artigo é o resultado parcial do projeto de pesquisa que o autor está desenvolvendo no estágio de pós-doutoramento, desde abril de 2022, junto ao INCT-LabEspaço/IPPUR/UFRJ com financiamento da FAPERJ. O projeto de pesquisa engloba também a cidade de Mariana (MG), que sofre processo semelhante, embora gerando problemas e reações de outra ordem.
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