quarta-feira, 24 de agosto de 2022

 

UM PENSAMENTO ARQUIPÉLICO

por: outrasmidias

Uma geografia pouco conhecida, o grande e complexo arquipélago das Antilhas possui, neste século XXI, uma das maiores diversidades humanas do planeta. Objeto de colonização e pirataria ao longo dos séculos iniciais da expansão marítima europeia, foi nas Antilhas que Cristóvão Colombo pisou pela primeira vez. “Não existe descobrimento das Américas”, declara Depestre na já citada entrevista a Jacques Chancel. “A colonização chegou primeiro nas Antilhas.” As ilhas do Caribe, como também são conhecidas no Brasil, são banhadas por vários idiomas e estruturas, e em sua maioria, mostram ainda hoje a cara viva da colonização. E aqui não se trata de metáfora, de colonização psicológica ou consumista.

As ilhas de Martinica e Guadalupe são parte do território francês. Os franceses dizem DOM (Départements d’Outre-Mer, Departamentos de Ultramar). As Ilhas Cayman pertencem ao Reino Unido, assim como as ilhas Turcas e Caicos. Há ilhas que ainda hoje são de posse dos Países Baixos. Já Porto Rico é de domínio estadunidense. Barbados, Bahamas, Trinidad e Tobago, Jamaica, Santa Lúcia e muitas outras, fazem parte da Commonwealth britânica. Cuba e República Dominicana são, hoje, nações livres, dominadas outrora pela Espanha. Uma notícia de 2021: Barbados abandonou a coroa britânica em definitivo e elegeu uma mulher como sua primeira presidenta.

São muitas as personalidades conhecidas pelo mundo afora que são de origem caribenha, embora pouco se fale disto. A mãe de Malcolm X, Louise Little, era uma mulher mestiça, nascida em Granada, a ilha. Um dos poetas fundamentais da Harlem Renaissance, Claude McKay, assim como Marcus Garvey, o líder do movimento, era jamaicano. O pensador Carlos Moore, hoje radicado no Brasil, é cubano.

As Antilhas podem ser divididas entre as “pequenas ilhas” (que formam sua copiosa maioria) e as “grandes ilhas”: Cuba, Jamaica, Haiti/República Dominicana e Porto Rico. Mas nem só de arquipélagos vive o “discurso antilhano”. Para Édouard Glissant, há um modo de ser e de viver marcado pelos processos da história que, embora não forme necessariamente uma “identidade nacional”, é composto pelos mais diversos elementos culturais a convergir na direção de uma “crioulização”. Sistema de plantações, povoamento piramidal: africanos e hindus na base, europeus no topo, fenômeno cultural de crioulização, línguas de compromisso, sincretismo de civilizações, insularidade, para citar os elementos elencados na capa do alentado livro discurso antilhano (que deverá ser publicado em breve no Brasil, pela Bazar do Tempo). Mas, para Glissant, mesmo as regiões continentais, como Honduras, Panamá, Costa Rica ou Guiana Francesa, formam esse bloco cultural que, ao ser observado de perto, encontrará muitos pontos em comum com o Brasil.

Como não poderia deixar de ser, essa região contribuiu com histórias fundamentais no contexto das Américas. Se o Caribe foi onde a colonização chegou pela primeira vez, também é onde a descolonização chegou primeiro. Na última década do século XVIII, a revolução haitiana realizou um feito inédito: a independência obtida inteiramente como um resultado da luta dos negros. Precisamente aqueles que se encontravam no ponto mais baixo da pirâmide social. Numa sociedade que já começava a se tornar complexa, ao menos no aspecto socioeconômico, os grandes brancos e a burguesia mestiça não foi capaz de ver chegar a grande horda negra que arrasou com as plantations, depôs a coroa francesa (que logo depois se tornou república francesa), expulsou fazendeiros brancos e se declarou livre no ano de 1804. Eduardo Galeano comenta que quando Simón Bolívar pediu ajuda para o Haiti na sua luta pela independência, anos mais tarde, recebeu como principal exigência que também fossem extintas as escravidões dos países libertados. Algo que sequer havia passado pela cabeça dos ditos “Libertadores das Américas”.

“Haiti onde a negritude colocou-se de pé pela primeira vez”, medita Césaire em seu Diário de um retorno ao país natal, “e disse que acreditava em sua humanidade”. [nota 3] Os personagens dessa etapa heroica aparecem com frequência na literatura antilhana: Toussaint Louverture, Jean-Jacques Dessalines, Rei Christophe, e muitos outros, como parte de um grande poema épico plurinacional. Mas não só.

De Guadalupe vem uma das maiores escritoras vivas: Maryse Condé. Suas narrativas, atravessadas da ancestralidade negra feminina, contam de mulheres bruxas, como em seu romance Eu, Tituba: Bruxa negra de Salem, mais um dos poucos livros da vasta literatura antilhana que se encontram disponíveis atualmente no Brasil. Uma literatura exuberante, colorida e feminina, que fala da história negra como poucas. Trata-se de um romance histórico que conta a história de uma mulher negra nascida em Barbados e perseguida em Salem no século XVIII como uma bruxa negra entre as que foram perseguidas pelo puritanismo norte-americano. Segundo Conceição Evaristo, a autora “se apropria do fato histórico, criando uma narrativa em que a voz da personagem-narradora, Tituba, oferece uma outra versão do evento, distinta da oficial.” Trata-se, portanto, da história de uma mulher negra narrada por uma mulher negra.

E assim, para engrossar a longa lista de autores que povoam a literatura do mundo atual, lembraremos de Derek Walcott, o prêmio Nobel de Literatura de 1992. Kamau Brathwaite, da ilha de Barbados, um mestre que perambulava entre a história e a poesia, autor de, entre outros, História da voz, ainda sem edição no Brasil. Frankétienne, outro haitiano fundamental e experimental, em pleno vigor criativo, que perambula entre as mais diversas linguagens artísticas que vão da pintura até o romance experimental.

Frankétienne é o autor do primeiro romance escrito totalmente em crioulo haitiano. E é por isso que ganhou uma homenagem especial no manifesto do Elogio da crioulidade, de Raphaël Confiant, Patrick Chamoiseau e Jean Bernabé.


***

“Nem europeus, nem africanos, nem asiáticos, nós nos proclamamos Crioulos.”

Crioulo, esta palavra que ganhou contornos na cultura brasileira tão diversos daqueles das diversas regiões do mundo.

Crioula, em sua origem, é aquela pessoa que nasce em um local, porém de pais provenientes de outra parte. Por conseguinte, o termo passou a designar as línguas compósitas que surgiram em lugares como as Antilhas, mas também no Cabo Verde, na Guiné-Bissau e em outras partes do mundo – pois, para Édouard Glissant, o mundo em seu processo de globalização se criouliza em escala crescente.

Interessados em repensar a identidade cultural antilhana, na qual Aimé Césaire aparece como figura-chave, os escritores Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant publicaram, em 1989, o Elogio da Crioulidade, com ares de manifesto. Se a Negritude havia proclamado uma unidade para todo o povo negro “o conjunto de valores de civilização do povo negro”, se Césaire se autoproclamava africano, para esses escritores era o momento de declarar uma independência. Embora continuassem escrevendo em língua francesa, por sua função de ferramenta, eles passavam a tratar de temas “crioulos”.

A literatura antilhana, esta sobre a qual falamos neste texto, ela é negra de cima a baixo, da esquerda para a direita e ao redor. Se visitarmos a literatura das Antilhas, essa literatura hoje premiadíssima e galardoada, fundadora de mundos e de imaginários, veremos que ela é a reconquista da carne. “Não mais a exploração dos corpos”, ela proclama.

A literatura antilhana, como numa reconfiguração da força e da potência.

O minério negro, como no poema de René Depestre, em seu melhor.


NOTAS

[nota 1]. Prefácio ao livro René Depestre, Rage de vivre: Oeuvres poétiques complètes. Paris: Seghers, 2006. Todas as traduções (entrevistas, poemas e outros) deste texto são de Leo Gonçalves, salvo quando sinalizada outra tradução.

[nota 2]. Do livro Rage de vivre. Tradução minha.

[nota 3] Do Diário de um retorno ao país natal, em tradução de Lilian Pestre de Almeida (São Paulo: Edusp, 2021).

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