Ruas transbordando
Quantas pessoas vivem, hoje em dia, nas ruas do Brasil? Por incrível que pareça, esse dado é um mistério. Qualquer um que dê um giro, principalmente pelos centros, seja em cidades de pequeno, médio ou grande porte, em qualquer estado, percebe que são muitas – e que, nos últimos anos, só tem aumentado. Elas não são invisíveis, mas parecem ser nas estatísticas.
Essa é a pedra no sapato para formular qualquer política pública: não bastam “avaliações especulativas” com base em uma olhada nas sarjetas e margens de rodovias, mas uma pesquisa consistente e confiável.
O IBGE não dispõe de um programa de contagem e classificação da população em situação de rua. Os demais levantamentos estatísticos são esporádicos, localizados e feitas com distintas metodologias. O Movimento Pop-rua e diversas outras entidades pressionaram, por anos, o IBGE para incluí-la no Censo 2020 – e o órgão parecia propenso a isso, já que foi até instado judicialmente a fazer esse levantamento, em uma ação movida na Justiça Federal do Rio de Janeiro pela Defensoria Pública da União. Mas com os diversos cortes de verba do governo Jair Bolsonaro, está enfrentando dificuldades até para realizar o censo dos domiciliados. Além disso, conforme apurou o Especial Cidadania do Senado, os técnicos do IBGE não chegaram a uma metodologia conveniente e confiável para medir um grupo com localização incerta, que se encontra mais à noite e que requer abordagem especializada — o que poderia atrasar a pesquisa maior, justificaram.
A primeira e única pesquisa ampla sobre a população de rua foi realizada entre 2007 e 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento Social (agora transformado em secretaria vinculada ao Ministério da Cidadania), mas não atingiu todo o território nacional. Avaliou um público composto por pessoas com 18 anos completos ou mais e abrangeu 71 cidades, sendo 48 municípios com mais de 300 mil habitantes e 23 capitais. Foram detectados 31,9 mil adultos em situação de rua. Somando-se os resultados de pesquisas feitas à parte em São Paulo, Belo Horizonte e Recife, o contingente se elevou a 44 mil. Com isso, foi possível traçar um perfil heterogêneo da população de rua, constatando-se, entre outros aspectos, que 69,6% deles dormem na rua, 22,1% em albergues e 8,3% alternam entre a rua e os albergues.
Um estudo de 2016, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a partir de dados disponibilizados por 1.924 municípios via Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas), estimou em cerca de 101 mil pessoas a população de rua. Um dado se mostrou alarmante: apenas 47% da população de rua estava no Cadastro Único de Programas Sociais, o que dificulta o acesso à transferência de renda e habitação, por exemplo.
E se antes o cenário já era preocupante, parece ter se agravado pelos cortes de políticas sociais, o desemprego atingindo 13,2 milhões de pessoas e a precarização da vida, com 54,8 milhões vivendo na linha da pobreza, dispondo apenas de R$ 406 ou menos mensais para sobreviverem, segundo dados de 2017 do IBGE.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, que conta com alguns dados mais atualizados, a própria Prefeitura informa que, em três anos, o total de pessoas abordadas como moradores de rua na cidade quase dobrou. Ao longo de todo ano passado, assistentes sociais municipais abordaram cerca de 105,3 mil pessoas nas calçadas da cidade, número 66% maior do que a quantidade de pessoas abordadas na mesma situação em 2016, quando foram contabilizados 63,2 mil indivíduos, e 88% acima da de 2015.
A pesquisa, no entanto, faz uma observação: os dados não representam exatamente a quantidade de pessoas que vivem de fato nas ruas. Entre as abordagens há, por exemplo, moradores da periferia que passam dias e noites vivendo nas calçadas da região central em busca de doações, mas em parte do mês retornam a suas casas, pessoas que estão de passagem pela cidade, entre outras situações.
Mesmo assim, o levantamento é o indicador mais próximo para retratar o aumento cada vez mais perceptível dessa população na capital – e, apesar de suas particularidades, do Brasil. Aponta algumas mudanças, segundo apurou a Folha de S.Paulo: se em pesquisas anteriores os conflitos familiares apareciam em primeiro lugar como o motivo mais frequente para permanecer nas ruas, agora é o desemprego. De acordo com a Pesquisa de Emprego e Desemprego, realizada pela Fundação Seade e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a taxa de desemprego na cidade de São Paulo é de 15,4%, superando a nacional, que está em 12,5%, transformando-se em principal fator para engordar as ruas. Além disso, a pesquisa também aponta que, ao contrário do se pensa, só metade das pessoas que vivem nas ruas são migrantes, principalmente da Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Paraná e que há muitos casos de meninas que vão para as ruas fugindo de abusos sexuais, mulheres que são espancadas pelos maridos e LGBT+ discriminados pela família.
Outro fato é a especulação imobiliária e o aluguel, que sobe na mesma proporção em que a renda míngua. O déficit habitacional de São Paulo aflige 360 mil famílias, de acordo com a secretaria municipal de Habitação (o que significa cerca de 1,2 milhão de pessoas). E isso, somado ao desemprego, à recessão, à falta de investimentos públicos e ao esvaziamento das políticas habitacionais — no ano passado na faixa 1, para os mais pobres, do Minha Casa Minha Vida, o maior programa habitacional do país, investiu-se só 10% do valor de 2013 — empurra muitas famílias para as ruas.
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