sexta-feira, 26 de agosto de 2022

SECA NA TERRA DO ESCRITOR

 
Cem quilômetros adiante, em Cordisburgo, terra de Guimarães Rosa, o agricultor Genésio Alves dos Santos, de 61 anos, lamenta que os mais jovens tenham deixado a área rural. “Lembro que tinham três meses de seca. Deixei de trabalhar com a moranga há uns 12 anos. A principal queixa dos trabalhadores é a falta de água.”

Genésio é o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Cordisburgo e Araçaí, cidades em que ele estima haver 2.700 trabalhadores. Ele explica que as prefeituras têm instalado poços artesianos, mas é necessário arcar com custos. “Se uma pessoa tem que pagar R$ 70 no mês, por exemplo, fica inviável. Antes, não precisava.” Ele não sabe dizer quantos trabalhadores desistiram da roça, até porque 80% dos agricultores deixaram de pagar a taxa de R$ 20 por mês.

João Canizares/Agência Pública
José Osvaldo dos Santos, conhecido como Brasinha, luta para manter memória local viva
Na cidade, não tem quem não conheça José Osvaldo dos Santos, de 70 anos, que, em Cordisburgo, todos chamam de Brasinha. Ele é uma das principais referências na cidade. Ele criou o ponto de memória “Aqui já é sertão” em homenagem a Guimarães Rosa e às pessoas sertanejas. “Rosa era muito preocupado com as questões ambientais. Que ele inspire mais gente a pensar sobre isso. Hoje, por exemplo, é difícil pensar onde tem cerrado por aqui, que também está coberto por eucalipto.” Ele coleciona objetos antigos e transformou uma casa em um museu de memórias da cidade.

João Canizares/Agência Pública
Veterinário André Ferreira estimula contato com a natureza para turistas
Cordisburgo ainda estimula a indústria turística, como é o projeto “Caminhos de Rosa”. Na fazenda Paulista, que foi o lugar em que Guimarães Rosa dormiu em Cordisburgo durante a rota da boiada, o veterinário André Ferreira resolveu oferecer vivência para turistas no lugar. É possível até ficar no mesmo quarto em que o escritor repousou durante a estada dele no lugar. No corredor principal, é o último à esquerda. Mas não há lembranças materiais dessa ilustre passagem. Hoje, da janela do quarto, ainda é possível observar o cerrado restante. Inspirado no olhar ambientalista do escritor, o projeto promete boas práticas, como agricultura de baixo carbono, redução de lixo e de descartáveis. O contato com a natureza tem preço de R$ 300 por dia.

João Canizares/Agência Pública
Sidenildo Fróes, um dos últimos vaqueiros da região
Na fazenda trabalha Sidenildo Fróes, de 61 anos, um dos últimos vaqueiros da região. Ele trabalha na atividade desde os 13 anos de idade. Mas só teve a primeira carteira de trabalho assinada recentemente, quando chegou à fazenda, há sete anos. Ele foi se adaptando a cuidar do cerrado e do eucalipto. “Meus netos não querem comer as coisas da roça. Comem miojo.” Junto dele, Jeferson de Jesus, de 19 anos, não quer trabalhar na roça, mas é necessário por enquanto. Nunca conseguiu estudar, seu maior sonho. “Minha mãe não quer que eu trabalhe com isso, mas, por enquanto, é o jeito.” A família vive em São Gonçalo do Rio das Pedras, a 200 quilômetros dali. A mãe vive de plantar abacaxi e urucum, mas não é possível sustentar a família. “Quando estou com ela, eu ajudo. Mas hoje ela queria que eu fosse estudar.”

João Canizares/Agência Pública
Adeleco Moreira Filho ainda trabalha na roça para se sustentar, apesar de ter se aposentado
Em Araçaí, 15 quilômetros adiante, e com 95% de trabalhadores com sua propriedade familiar, segundo o sindicato, foi a última cidade da boiada de Rosa. Pelas ruas, Adeleco Moreira Filho, de 74 anos, ainda trabalha de sol a sol, mas a rotina na roça, em que se acostumou, não inclui mais o milho e a banana, porque tudo ficou mais caro e difícil. “Chovia mais. O melhor é que tenho aposentadoria para sustentar.”

Na área rural, na fazenda São Francisco, a 20 quilômetros do centro de Araçaí, está o último trecho da chegada da boiada em 1952. Uma placa no portão anuncia o evento histórico, mas o agricultor Luciano dos Santos, de 61 anos, que trabalha no local, queria ter estudo para entender melhor a placa, que foi apresentada a ele pela equipe de reportagem. “Eu estou há mais de um ano e nunca tinha visto a placa. Agora fiquei emocionado. De pensar que outros vaqueiros chegaram até aqui.” Ele não se imagina fora da roça. “O clima é diferente. Trabalho desde os 12 anos. O milho já não é a mesma coisa. Antes, chovia. Recebo um salário-mínimo, mas não tenho ideia se um dia vou me aposentar.”

João Canizares/Agência Pública
Agricultor Luciano dos Santos trabalha na roça desde os 12 anos
Histórias de desigualdade fazem lembrar a conversa que frei Gilvander Moreira, da CPT, teve com o vaqueiro Manuelzão, na década de 1990, que virou personagem de Guimarães Rosa. “Ele me disse que sentia saudade do tempo em que os caminhões levavam comida pela estrada. Hoje levam carvão para matar a fome dos fornos das siderúrgicas.” Para combater esse caminho, o frei crê que são necessárias práticas de agroecologia, trabalhos cooperativos entre famílias agrícolas, frear o uso dos agrotóxicos e pressionar por leis que protejam o cerrado.

Frei Gilvander explica que 22 escolas de agricultura familiar estão situadas no sertão mineiro. A necessidade de união entre os trabalhadores, educação ambiental, pressão por leis ambientais efetivas aliadas à sensibilidade das gestões públicas e das empresas com o futuro seriam os caminhos, em tese, simples. Na escola da comunidade das Pedras, Sophia, de 11 anos, sonha ser veterinária para cuidar dos bichos da região. “Espero que a gente more aqui ainda.” Ou, como escreveu Guimarães Rosa: “sertão é dentro da gente”.  Nossa cobertura eleitoral é financiada por leitores como você. Ajude doando mensalmente ou faça um pix para contato@apublica.org.

Essa reportagem é resultado das Microbolsas Alimentação e Mudanças Climáticas realizada pela Agência Pública, Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e a Cátedra Josué de Castro. A 14ª edição do concurso selecionou jornalistas para investigar os diferentes aspectos desse tema no Brasil.

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Luiz Claudio Ferreira
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