SUS e hospitais privados: como rever a relação
Crise no A. C. Camargo e fechamento de centenas de Santas Casas expõem um grande drama da Saúde Pública. José Carvalho de Noronha sustenta: solução é complexa, mas possível – desde que o desfinanciamento seja superado
A notícia alarmante de que o hospital A. C. Camargo, referência no tratamento de câncer em São Paulo, deixaria de atender o SUS, repercutiu. Tanto que a prefeitura, que a princípio havia minimizado a perda, voltou atrás três dias depois e ajustou os repasses financeiros para que a parceria não fosse desfeita. A crise foi contornada com os recursos da cidade, mas a questão central está longe de ser solucionada. Em entrevista ao Outra Saúde, o médico sanitarista e pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde (Lis/Icict) da Fiocruz, José Carvalho de Noronha explicou e refletiu sobre aspectos cruciais para compreendê-la.
O ponto central do problema são os repasses de recursos públicos feitos aos hospitais e outros prestadores privados que atendem os usuários do SUS. Ele se dá por meio de dois mecanismos: renúncia fiscal e repasse de verbas, segundo uma tabela que remunera os procedimentos, consultas e cirurgias, estabelecendo valores para cada um.
A tabela SUS, cujos valores são estabelecidos pelo Estado, é alvo de debates e questionamentos. Foi por causa de sua suposta defasagem que o A. C. Camargo quase encerrou a parceria com a prefeitura. Ele já havia deixado de ser entidade filantrópica em 2017, e o número de pacientes atendidos pelo SUS está em queda. Problema semelhante acontece com a rede de diálise do país, a DeVita, que atende 14 mil pacientes pelo SUS e ameaça romper o contrato – em especial após a aprovação do piso salarial da Enfermagem.
Mas Noronha se detém ao problema das entidades filantrópicas. Elas são responsáveis por uma parcela bastante expressiva – cerca de 40% – das internações do SUS, e a isso precisam dedicar 60% de seus atendimentos. Estão em crise: nos últimos cinco anos, mais de 500 instituições fecharam as portas e há um déficit de R$ 10,9 bilhões no setor, segundo a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB).
Noronha reconhece: há, de fato, uma diferença entre o que é pago aos prestadores privados pelo SUS e pelos planos de saúde. As bases são distintas. As operadoras pagam em média cinco vezes mais que o ministério da Saúde. Em contrapartida, o Estado oferece a renúncia fiscal, que está na casa de R$ 15 bilhões ao ano. Para o pesquisador, que já foi secretário de Atenção à Saúde no ministério da Saúde, a tabela SUS deve ser reavaliada em detalhes, para corrigir possíveis distorções e tornar-se mais equilibrada. A parceria com as Santas Casas – prestadores essenciais para o SUS, importantes para garantir sua universalidade – deve ser aperfeiçoada. Isso passa, é claro, por eliminar as “pilantrópicas”, que fazem mau uso do dinheiro público. Mas o essencial é uma maior coordenação do ministério da Saúde.
“Não podemos deixar que existam 5.668 sistemas de saúde” – um para cada município – sustenta Noronha. Metade do financiamento da atenção à saúde vem de recursos transferidos do ministério da Saúde a estados e municípios. Mas esta relação se dá, hoje, de maneira desordenada. Municípios como São Paulo têm condições de complementar a verba que a União repassa e estabelecer acordos como o que manteve o convênio com o A. C. Camargo. A maioria não pode fazê-lo. Algumas alterações poderiam resolver essas disparidades. Em primeiro lugar, é preciso rever os valores praticados pela tabela, porém de modo seletivo e criterioso. Alguns estão possivelmente defasados; outros, não.
Mas é possível ir além disso, tornando a relação mais complexa. Há várias maneiras de fazê-lo. A tabela pode ser condensada e reagrupada. A remuneração dos hospitais pode ser diferenciada segundo a complexidade do atendimento – o que incentivaria a permanência de instituições de excelência como o A. C. Camargo. Poderiam ser estabelecidas Santas Casas de referência em certas regiões. Incentivos financeiros deveriam contemplar hospitais que decidissem atender 100% pelo SUS.
Para tudo isso, porém, é preciso resolver a questão essencial, frisa Noronha: o desfinanciamento da Saúde Pública. Em penúria, o SUS não terá fôlego para estabelecer nova relação com seus prestadores. Viverá de crise em crise, como as atuais. E não basta dinheiro. Além de destinar uma porcentagem maior do PIB à saúde, é preciso uma gestão competente e comprometida do ministério, cujos desmandos na era Bolsonaro beiraram o bizarro.
Não há soluções mágicas, frisa Noronha. “Acabar com a tabela” resultaria em remunerar de modo igual instituições que oferecem volumes e qualidade de atendimento muito distintos. Resultaria em piora no atendimento da população, pois os hospitais logo perceberiam que é possível receber mais recursos com menos procedimentos.
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