XADREZ DO HOMMER SIMPSON DE DESMONTE NACIONAL
qua, 28/12/2016 - 21:19
Atualizado em 28/12/2016 - 21:23
Nos últimos dias tive dois contatos marcantes. Um deles, com um
autêntico representante da ultradireita delirante. Outro, com um
representante típico do Homer Simpson.
Vamos por parte.
Fomos apresentados à direita delirante por um amigo gozador, que
juntou os três casais em uma feijoada. O sujeito era oftalmologista,
estudara nos Estados Unidos, em uma universidade da qual não me recordo o
nome, mas, segundo ele, muito mais afamada que Harvard, tinha sido
convidado a trabalhar em um órgão do governo norte-americano, muito
importante, e do qual não me recordo o nome, e cometeu outros feitos
expressivos, dos quais não me recordo a relevância.
Ele se informa em sites de ultra-direita, não confia em nada do que
sai na imprensa e acredita em tudo o que lhe dizem seus pares.
Quando elogiou minha origem libanesa, por ser uma raça pura, percebi que a conversa ia ser marcante.
Ele é contra todas as raças impuras, diz que Donald Trump vai
colocar as coisas nos eixos (sem jogo de palavras). Garantiu, sem
pestanejar, que Michele Obama é transexual; que Barack Obama não é
Barack Obama, mas um sujeito que se faz passar por Barack Obama. Trata
os negros como macacos. E me passou a mais retumbante das revelações
que, segundo ele, tem sido sonegada por toda a imprensa ocidental.
Aliás, apostou comigo como não conseguiria publicar nem no meu blog a
relevante informação de que não há mais peixes no Oceano Pacífico.E não
adiantou argumentar que desastre desse tamanho não seria sonegado nem
pelo Estadão, mesmo se fosse de responsabilidade do PSDB.
Pulemos para o simpático Homer Simpson, que me aborda no boteco de Poços.
Diz que os problemas no Brasil surgiram com o porto de Mariel, em Cuba. Levaram para lá todos nossos empregos e nossas divisas.
Tento explicar que a construção do porto envolve inúmeros materiais
e equipamentos fabricados no Brasil, contratos com indústria mecânica,
siderúrgica e muitas outras. Portanto, gerou muitos empregos no Brasil.
E ele: mas o dinheiro foi para fora.
Explico que não, que a obra será paga e os lucros reverterão para o Brasil, através da empresa construtora.
E ele: não sei não.
Pacientemente explico que se trata de exportação de serviço
praticada por todas as nações, pela China, pelos Estados Unidos. Se não
fosse bom, porque os grandes países disputariam mercado?
E ele, com a segurança de um procurador da Lava Jato: “Pode ser bom para a China e Estados Unidos, mas não para o Brasil”.
Aí desisto e, como no começo da conversa ele se apresentou como
astrólogo amador, interrompo a conversa com minha saída favorita:
-- Eu não ouso discutir astrologia com você.
Ele entendeu, se despediu e foi embora. Educadamente, saliento.
O fenômeno da desinformação
Nos dois casos, a conversa – embora surreal – foi em bases
relativamente educadas. No caso do direitoso, um conteúdo de uma
violência extrema, mas dito socialmente em uma “conversa de brancos”. No
Hommer Simpson, um senhor simpático, boa gente mesmo.
Mas o novo normal é a grosseria, o sujeito tratar sua opinião como
um bem de raiz, dedicando a ela o mesmo cuidado obsessivo com que cuida
das suas posses, seja o carro velho ou a casa a beira-mar. E reagindo
agressivamente contra qualquer tentativa de tirá-lo da comodidade das
suas verdades estabelecidas.
Na convivência social, um dos primeiros fatores de contenção é o
conjunto de regras sociais consolidadas que impõe um padrão de
sociabilidade do restaurante granfino, ao boteco de família, da missa ao
estatuto da gafieira.
Cada ambiente tem seu conjunto de regras e seus limites. O machismo
e a homofobia estão restritos a ambientes machistas, onde é de mau tom
defender transexuais. Mas, se saíssem fora da jaula, seriam coibidos por
olhares de reprovação. Nos botecos, as mesas separavam os grupos por
afinidade de opinião. Mas não havia interferência nas conversas, mesmo
por parte de quem ouvisse e reprovasse.
Nos ambientes públicos, não era de bom tom o preconceito, a
intolerância. Uma pitada de esquerda social dava até status intelectual.
E havia um respeito (muitas vezes excessivo) pelo conhecimento técnico.
Todas essas barreiras caíram. Hoje em dia, a norma é a grosseria, a
opinião fechada, intransponível como a muralha chinesa, em torno do
senso comum mais primário ou da piração mais louca, como comprovaram
meus dois interlocutores.
Quais os fatores que levaram o mundo a essa balbúrdia?
Os fatores de confusão
Há um conjunto de fatores muito similar ao que conduziu o Ocidente de fins do século 19 até a 2a Guerra:
• Uma
fase de grandes avanços científicos e tecnológicos que não resultaram em
melhoria da condição de vida das populações, levando à descrença em
relação ao pensamento científico, especialmente dos economistas.
• Um financismo desvairado impedindo a consolidação das economias periféricas.
• Dissolução de estados nacionais, guerras internas, promovendo gigantescos movimentos migratórios.
• Os
imigrantes promovendo terremotos nas estruturas sociais estratificadas
das nações hospedeiras, com novos valores, novas informações, novas
maneiras de encarar a vida.
• O aparecimento de novos meios de comunicação, implodindo a ordem que repousava nos sistemas tradicionais de mídia.
• A falência dos sistemas tradicionais arcaicos de política.
A crise atual decorre de uma soma similar de fatores:
Fator 1 – a falência do conhecimento científico
A crise de 2008 não apenas matou a ilusão do neoliberalismo como
fator de promoção de desenvolvimento e bem estar. Levou junto a
respeitabilidade do conhecimento científico junto ao público leigo, da
mesma maneira que o atual estado de exceção está desmoralizando o
conhecimento jurídico.
A expansão do neoliberalismo, da ampla desregulação financeira, foi
fundada na adesão acrítica e interessada de vastos setores da academia,
especialmente dos economistas – conforme atestam documentários
produzidos depois da crise nos Estados Unidos. Literalmente, o mercado
comprou a opinião da Academia.
O padrão de atuação do mercado, de braços dados com a mídia, sempre
foi a de construir reputações de seus vendedores. Alçados à condição de
celebridades, ajudavam na venda de produtos ou de ideias de seus
empregadores.
Nas discussões sobre a desregulação da economia, por exemplo,
economistas medíocres, repetidores de slogans, eram alçados pela mídia à
condição de grandes gurus da economia. Para o universo dos Hommers
Simpsons, um Mailson valia mais que um Paul Krugman.
Do mesmo modo, no apogeu da Nasdaq (a bolsa das empresas de
tecnologia) os bancos de investimento fabricavam gurus a torto e a
direito, fornecendo palpites para a manada.
O auge foi quando a Goldman Sachs recomendou a compra de ações da
Microsoft logo após a União Europeia tê-la condenado por práticas
monopolistas. O ganho do investidor não está em investir no tamanho da
empresa, mas em sua expectativa de crescimento. Aquele episódio, mais a
estabilização do mercado de desktops, decretava o fim do crescimento
exponencial histórico da empresa, registrado em um período de amplo
domínio do Windows.
Para manter o mesmo ritmo de crescimento, teria que competir com os
japoneses em games, com a Oracle em bancos de dados, com as novíssimas
redes sociais que surgiam.
Era apenas uma jogada do banco. Ao perceber que as ações da empresa
não tinham mais atração, preparou o mercado para poder desovar seus
estoques de ações a um bom preço. E os gurus fabricados pela mídia
norte-americana ajudaram no jogo.
Para tudo isso serviam os gurus. E toda essa catedral de papelão
veio abaixo com a crise de 2008. Menos em países intelectualmente
subdesenvolvidos, onde um economista pode virar gênio sem publicar um
trabalho acadêmico que preste..
Fator 2 – a implosão das regras sociais
No início das redes sociais, perdi uma aposta para o neurologista
Danielle de Riva. Eu acreditava que a Internet e as redes sociais
permitiriam a construção coletiva do conhecimento, com a informação
libertando. Cético, De Riva apostava que liberaria todas as taras, com a
formação de grupos de doenças sociais variadas, de pedófilos a
terroristas.
Ganhou.
As redes sociais aboliram as barreiras naturais dos ambientes
sociais presenciais. Agora, o sujeito pode entrar em qualquer ambiente
virtual sem ser apresentado, sem os constrangimentos naturais, as regras
sociais consolidadas nos contatos presenciais, dando vazão aos seus
instintos mais primários. Liberou geral.
Mais que isso, o espírito animalesco passou a encontrar
assemelhados e a se organizar em alcateias, compartilhando as piores
intenções e os piores sentimentos. Saíram do armário, nus e peludos como
os homens da caverna, despidos de todo o verniz social e todos os
princípios civilizatórios acumulados em séculos de civilização.
Do virtual para a contaminação do presencial foi um pulo.
Fator 3 – a opinião leiga
Essas hordas partiram para a guerra armados de slogans primários, mas de alta eficiência.
No trabalho seminal de 1962, em que previu todos os passos do
golpe, Wanderley Guilherme dos Santos analisou o discurso da direita, na
época praticado por Carlos Lacerda. Apesar do primarismo da análise,
ironizada pelos acadêmicos, Wanderley anotava sua enorme eficácia junto
às massas leigas. As massas – à esquerda ou à direita – são
sensibilizadas por frases simples, slogans falsos como são as verdades
definitivas que cabem em uma frase.
Lembro, com 13 anos de idade, influenciado pelo meu avô udenista,
enfrentando frei Josaphat, do jornal Brasil Urgente, em um debate em
Poços de Caldas:
-- Que governo é esse que impede a greve dos bagrinhos em Santos,
em defesa da sua sindicalização?, bradei, com uma frase retirada
diretamente da revista Ação Democrática.
E o frei, com a mesma impaciência que eu tive com o Hommer Simpsons:
-- Meu anjinho, você é muito novo para entender dessas questões.
O slogan disseminado pela revista armava de um menino de 13 anos a
um adulto para participar de um debate ideológico – mesmo não tendo o
menor conhecimento sobre o contexto discutido.
Dia desses, um conhecido, cientista social, contava o que se passou
nos seus encontros familiares. De repente parentes que nunca se
pronunciavam, por seu escasso conhecimento de temas políticos, passaram a
entrar vigorosamente na discussão com argumentos similares ao do meu
amigo Hommer Simpson. Construiu-se um verdadeiro manual da idiotia,
conferindo a cada Hommer um tacape para utilizar em qualquer discussão.
A utilização da pós-verdade
Nesse ambiente intelectualmente rarefeito, o discurso político da
direita passou a visar o órgão mais sensível do Hommer Simpson: o
fígado.
'
É o ambiente ideal para o uso do preconceito, a disseminação da
vingança, as bandeiras moralistas, o atropelo de todo o avanço jurídico,
retomando os princípios da Lei de Talião e do estado de exceção – sob a
aprovação dos liberais de butique, como o Ministro Luís Roberto Barroso
e o jurista Oscar Vilhena, agora convertidos em arautos do direito
penal do inimigo.
Quando esse desastre recai sobre nações institucionalmente pobres,
em que os valores civilizatórios dependem de uma mídia venal, da
erudição vazia e descompromissada de juristas, de um parlamento
vergonhoso, de partidos políticos não-programáticos, dá no que deu.
Não se imagine que o fundo do poço está à vista. A fragilidade
institucional brasileira, a mediocridade de suas elites pensantes – à
direita e à esquerda -, a ausência mínima de noção de soberania, de
interesse nacional, de solidariedade nacional, sugerem que o desmonte
nacional pode não ter fundo.