segunda-feira, 22 de agosto de 2022

 

Eles querem organizar a população de rua

Ignorados pela mídia e classe média, ativistas tentam articular um dos grupos sociais mais humilhados e onipresentes nas cidades. Eles denunciam a violência do Estado e pedem: basta de assistencialismo, queremos políticas públicas

Ato do Movimento Nacional da População de Rua em Porto Alegre. 2016. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Maloqueiros intelectuais

…você só presta atenção naquele carinha que te mangueia quando você tá na calçada de um bar — me diz ele, com a experiência das ruas, segurando o copo americano com cachaça — ou caminhando pro trabalho, com aquele discurso manjado de dá licença, boa noite, é que eu moro na rua, está faltando algumas moedas… Pessoas te abordando na rua: não quero dinheiro, não quero nada, só me paga um prato de comida pelo amor de Deus ou, já desencantadas, dizem logo é pra pinga mesmo, vou ser sincero.

…quando uma mãe com criança no colo ou na rabeira da saia, na porta de farmácia e supermercado, implora por fraldas, arroz, feijão, leite. Você só repara que tem gente vivendo nas ruas, vivendo porque ninguém mora nas ruas, quando vê elas no chão das praças e calçadas, com cobertor vagabundo de 1,99 de alguma Campanha do Agasalho. Só percebe que o problema tá mais foda que o normal quando são tantos que você quase pisa neles. Quando vê idosos jogados na sarjeta, gente que já nem fala, só segura uma plaquinha de papelão escrito estou com muita fome, me ajude, crianças nos faróis, gente tentando correr atrás do seu vendendo balas, chicletes, artesanato e saca que não tem só maloqueiros na rua.

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…você vê caras e minas catando latinhas em todo canto – continua, bebericando — nem joga no chão e dois já pulam nela. Vê gente revirando o lixo nas caçambas. Carroças na banguela com mais de 200 quilos de lixo. Você vira a cara quando vê malocas com uns malucos passando corote de mão em mão.  Com cachimbos prateados. Filando cigarros ou catando bitucas. Você vê pessoas fedidas, encardidas, mijando na marquise e acha que tá normal. Você acha que morar na rua é só viver na Cracolândia e ser drogado e ser bêbado e feder. Você só pensa que a coisa passou dos limites quando tem que pular um cara deitado pra entrar em casa ou quando, andando a noite, fica pensando que vai ser assaltado por alguém que perambula na região. Quando passa de busão pelo centro e vê cada vez filas compridas de pessoas esperando por um rango filantropo.

…você deve se perguntar: caralho, o que deu de errado na vida dessas pessoas? Fala isso, pra você mesmo – estende a mão: ô garçom, vê outra aqui — mas você esquece que pode ser demitido a qualquer momento, não conseguir emprego e entrar numas nóias que nem família nem amigos vão te ajudar. Não pensa que pra maioria a rua não foi opção.

O garçom chega. A aguardente – branquinha, diáfana, cristalina, ébria, 51, pirassununguense, marvada – escorre doce em uma minúscula cachoeira de caninha no copo americano. Dose generosa: copo meio cheio, meio vazio. Renato Ribeiro Sena, 52 anos, o Renatinho, corpo mirrado, vasta cabeleira estilo anos 1980, goiano de riso fácil, é uma das lideranças do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). Dá uma profusa golada. Estala os lábios. Tsc-ahhhhh.

…você não vê que os fardados chegam pra quebrar: cacetada, gás de pimenta, bicuda. Que playbas roubam seu kitrua ou mijam em você só por curtição. Que pode vir uma galera da Prefeitura e te internar em alguma clínica evangélica. Que você pode estar dormindo e te jogarem um jato de água fria. Não pensa onde é que a gente caga ou toma banho. Que você, se não tomar cuidado, pode morrer de frio. Ser tratado igual criminoso em albergues da vida. Tomar um pau de algum bêbado que passe pela rua ou segurança de algum comércio. Que tem pessoas sofrendo de tuberculose ou com muquiranas. Irmãos e irmãs assassinados com tiro na cabeça, incendiados, sumindo. A maldita depressão. Ter que matar pombo pra comer alguma carne. Os olhares das pessoas que passam, de cima pra baixo, de desprezo e nojo. Poprua não sonha porque não dorme, só cochila, um olho aberto, um olho fechado, e outro na nuca, mas a gente quer poder sonhar também…

Renatinho me passa o copo. É a minha vez: cara azeda.

“Que-que é isso? Parece que você chupou um cu”, gargalha ele, enquanto acende um cigarro para continuar a explanação sobre a arte e ciência de viver nas ruas, o assunto da noite.

“Mas você entende que quando falo você não é você, é vocês, é a sociedade. Eu vejo o cara que tá na rua, na batalha, e pergunto: ‘irmãozinho, você quer liberdade?´”, solta Renatinho, dando um pausa dramática.

Toma o copo americano da minha mão. Prossegue: “Liberdade não é você depender de amém. Nem de por-favor-me-dá-um-rango ou de por-favor-me-dá-um-abrigo. Liberdade, irmãozinho, só vem quando você tiver autonomia”.

Renatinho saiu de casa e foi viver nas ruas aos 14 anos porque, segundo ele, é “um rebelde” nato e sua mãe impunha uma rígida disciplina que ele não concordava. Disse que ele acabaria na sarjeta e, fatalmente, a procuraria.

“Vai tomar no cu, mamãe”, conta que a respondeu. Tomou a seguinte decisão: pra casa não voltaria nunca mais, acontecesse o que acontecesse. “Aí na minha militância encontrei a casa de Deus. Você sabe o que é?”.

“…”.

“Um portão sem cadeado”.

Renatinho conta que tanto ele quanto o Movimento PopRua participam, frequentemente, das inúmeras manifestações e agendas da vida política brasileira, dispara citações de Maquiavel, Marx e Brecht e divaga longamente sobre a necessidade da população de rua discutir regime de governo.

“Somos tão intelectuais quanto um Presidente da República! As pessoas pensam: esses maloqueiros são intelectuais, os caras conversam de igual pra igual. E a intelectualidade está representada aqui no Movimento, o mais bobo aqui dá nó em pingo d´agua, então é muito importante mostrar o que é a rua, nossa posição política e mostrar que a rua é intelectual também e trata de igual pra igual”.

A dúvida apertou e eu o interrompi. Agora era minha vez de tagarelar. Como pensar essa intelectualidade das ruas numa realidade aviltante, com desemprego e retirada de políticas sociais? Como essa população consegue se organizar politicamente quando existem empecilhos tão urgentes como a manutenção da própria sobrevivência, por exemplo? Que políticas públicas propor quando vemos que o fato de existir pessoas nessa situação é justamente porque todas políticas anteriores falharam? É isso, mais ou menos, que pergunto para Renatinho, que me olha com cara de paisagem enquanto bombardeio sua cuca com essas questões. Ele encara-me, sereno:

“É, é foda. Não é fácil fazer política de barriga vazia. Mas vou te explicar. Vamos pedir outra cachaça?”.

Foto: Carolina Simon

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