sábado, 4 de maio de 2024

 

Com plástico até no pulmão, planeta sufoca enquanto busca acordo para limitar poluição

 

Escrevo frequentemente neste espaço sobre a emergência climática, mas se tem um problema tão global, onipresente, com múltiplas facetas e de difícil solução quanto o aquecimento global é a crise da poluição plástica. O caro leitor com certeza já se deparou com algumas das estatísticas mais assustadoras que mostram como estamos sufocando o planeta com plástico.

Cito algumas. Desde os anos 1950, o mundo produziu 9,2 bilhões de toneladas de plástico, em um processo que escalonou ao longo das décadas, batendo 460 milhões de toneladas em 2022, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), número que poderá triplicar até 2060 se nada for feito. Dos 7 bilhões de toneladas de resíduos plásticos gerados globalmente até hoje, menos de 10% foram reciclados. 

Estima-se que atualmente estejam acumuladas entre 75 e 199 milhões de toneladas de plástico nos oceanos. Sem mudanças na forma como produzimos, utilizamos e eliminamos esses produtos, a quantidade de resíduos plásticos que entram nos ecossistemas aquáticos poderá quase triplicar, passando dos cerca de 9 a 14 milhões de toneladas por ano, segundo dados de 2016, para algo entre 23 a 37 milhões de toneladas por ano até 2040.

Também de acordo com o Pnuma, cerca de 1 milhão de garrafas plásticas são compradas por minuto e até 5 trilhões de sacolas plásticas são usadas por ano em todo o mundo. Metade de todo o plástico produzido é desenhado para ter um uso único – ou seja, é descartado logo depois de usado. 

Antes fossem só as garrafinhas, os canudinhos, as sacolas plásticas. Para eles há alternativas, é possível eliminá-los. Mas o problema é que o plástico passa por toda a economia. Enquanto escrevo este texto, olho ao meu redor. Tudo tem plástico, em suas mais diversas formações: do computador ao tubinho da caneta; do fone de ouvido aos meus óculos; na espiral do calendário de mesa, no potinho onde trouxe o lanche da tarde, no frasco de álcool, nas minhas roupas. E, infelizmente, dentro de mim mesma.

Os milhões de toneladas de resíduos vão parar no ar, na água, nos bichos, em praticamente todo lugar do planeta. Os microplásticos, que são partículas menores que 5 mm, já foram encontrados em nuvens, o que pode afetar o clima; em rochas da ilha de Trindade, que fica no meio do oceano Atlântico; no gelo da Antártida; na placenta, no pulmão e no coração humanos (até agora o órgão mais profundo e fechado em que o material já foi encontrado).

 

 E, assim como a crise climática, a do plástico tem um protagonista bem conhecido: a indústria de combustíveis fósseis, mais precisamente a petroquímica. O petróleo é a origem de quase a totalidade dos plásticos. De modo que, claro, uma crise alimenta a outra.

Há duas semanas, o jornal britânico The Guardian divulgou um estudo do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, dos Estados Unidos, estimando que as emissões de gases de efeito estufa provenientes da produção de plástico podem triplicar até a metade do século, passando a responder por 20% do que resta para a Terra do chamado orçamento de carbono – que é a quantidade máxima de gases que ainda podemos emitir a fim de limitar o aquecimento global a 1,5 ºC.

O jornal aponta que essas emissões provenientes da indústria plástica, que, prevê-se, continuarão crescendo nas próximas décadas, podem minar os esforços para controlar a crise climática.

Foi diante desse quadro cada vez mais intrincado que representantes de 170 países estiveram reunidos entre os dias 23 e 29 deste mês em Ottawa (Canadá) na quarta rodada de negociações que visam elaborar um instrumento legalmente vinculante para atacar a poluição plástica mundial. Esses esforços começaram em 2022 e devem terminar na quinta rodada, em novembro, na Coreia do Sul, quando se espera que seja definido um tratado.

Se esse marco legal for mesmo estabelecido, já vem sendo considerado tão importante quanto o Acordo de Paris, que definiu, em 2015, esforços mundiais para conter o aumento da temperatura do planeta. Não que os países já tenham conseguido entrar nos trilhos para alcançar esse objetivo – pelo contrário, nossas emissões de gases de efeito estufa continuam subindo, mas ao menos um mandato para isso já existe.

Em linhas bem gerais, um dos maiores embates em torno da negociação sobre a poluição plástica se dá principalmente sobre quão abrangente vai ser esse tratado. Alguns países, como o grupo autodenominado Coalizão de Alta Ambição (que inclui 60 nações, como Ruanda, Peru, União Europeia e Gana), defendem que é preciso estabelecer regras para todo o ciclo desses materiais: da produção ao uso até o descarte, contendo, inclusive, metas para a redução da quantidade de plástico produzida.

Há um entendimento de que é preciso ter estratégias que vão desde o desenho do produto. Trabalhar, por exemplo, no nível dos polímeros, a fim tanto de reduzir a própria produção quanto de garantir que as coisas sejam mais duráveis, reutilizáveis e efetivamente recicláveis. A verdade é que a maioria não tem reciclabilidade, por isso vira lixo mesmo. É o caso dos plásticos de uso único, que ou não podem ser reciclados ou nem compensam (como as malditas bandejinhas de isopor) e acabam não tendo mercado. 

Depois, claro, é preciso garantir meios para que a reciclagem e o descarte adequado, além do tratamento de resíduos, de fato ocorram. E não só em país rico, mas em todo o mundo. 

Já para outros países, em especial os que têm as empresas petroquímicas mais fortes, como os Estados Unidos, basta basicamente resolver essa última etapa que o problema estará resolvido. Essa é a visão apoiada pela indústria, que ficou evidente um pouco antes de a reunião no Canadá ter começado. Em entrevista ao Financial Times, Karen McKee, chefe de soluções de produtos da 
ExxonMobil, disse que “o problema é a poluição, não é o plástico. Um limite na produção de plástico não nos servirá em termos de poluição e meio ambiente”.

Ao final da reunião, praticamente não se avançou nesse aspecto. “Houve bastante discussão a respeito, mas os países que não querem envolver a produção mantiveram sua posição”, me disse a negociadora-chefe do Brasil na reunião, a diplomata Maria Angélica Ikeda. “Ainda assim, trabalharam no texto que prevê a produção, o que talvez sinalize alguma possibilidade de solução de compromisso ao fim das negociações. Mas ainda é prematuro prever qual poderia ser o resultado”, disse.

Apesar disso, o encontro terminou com um certo alívio de não ter sido um fracasso. As partes concordaram em fazer mais algumas reuniões intermediárias antes da sessão final, na Coreia, justamente para tentar aparar as arestas e avançar em um texto.

Segundo Ikeda, um dos pontos-chave será a discussão sobre o financiamento, considerado um “ponto de importância aguda para os países em desenvolvimento poderem implementar o tratado”, como ela explica. Também estarão em debate aspectos técnicos, como o uso de produtos químicos considerados de preocupação e o desenho do produto, com foco na reciclabilidade e no reúso.

O Brasil, que também tem uma indústria petroquímica importante, foi acusado de ter “se mostrado menos ambicioso” e de estar “
morno” nas negociações. O país não descarta que haja algum entendimento em torno de limites à produção, mas tem sido cauteloso no tom. Ikeda disse que o governo tem consultado pesquisadores de diversas áreas para poder tomar uma decisão baseada na ciência. Perguntei se o país poderia concordar com eventuais propostas, por exemplo, de banimento de alguns tipos de plásticos.

“Tudo vai depender dessa análise que a gente vai fazer, mas a gente está aberto a considerar várias propostas que falem que precisa eliminar, [mas] a gente não sabe que produto que é nem o que ele contém, mas tudo isso, sim, a gente está aberto a discutir e a gente só quer ter uma avaliação”, afirmou a diplomata.

A ver nos próximos meses para onde vai essa discussão. Nesse meio-tempo, de uma coisa a gente tem certeza: a produção de plástico continuará subindo.

 
*
 
Caros, entro em férias hoje, então esta newsletter terá uma pausa de algumas semanas. Nos vemos de volta no dia 6 de junho.  
         

Giovana Girardi
giovana.girardi@apublica.org
Chefe da Cobertura Socioambiental
Compartilhe no TwitterCompartilhe no Twitter
Compartilhe no FacebookCompartilhe no Facebook
Encaminhe este e-mailEncaminhe este e-mail

quinta-feira, 2 de maio de 2024

 


Kiss e as mulheres de Tejucupapo 


Eu ia escrever sobre a venda de direitos de propriedade intelectual pela banda Kiss, a legendária banda de rock dos anos 1980, cujos membros agora não são mais donos nem das músicas que escreveram, nem da maquiagem que marcou época, nem da própria imagem quando tocavam em shows lotados, nem de qualquer coisa que se venha a produzir em seu nome. Eu ia escrever esta newsletter sobre a distopia de um grupo de seres humanos perderem (seja qual valor foi pago) o direito às suas próprias imagens e criações e de uma empresa – nesse caso a suíça Pophouse Entertainment, que gerencia projetos culturais e criou, por exemplo, a versão em holograma da banda Abba – controlar essa imagem e suas projeções futuras. Ia escrever sobre as implicações de que uma venda dessas seja possível graças à compra da propriedade intelectual e dos direitos de imagens e de “semelhança”, invenções que na era da inteligência artificial (IA) adquirem contornos sinistros e impensáveis. E ia escrever, de maneira estruturada e argumentada, sobre como, hoje em dia, uma empresa como a Pophouse Entertainment pode simplesmente recriar, através de IA, as músicas do Kiss indefinidamente – pode, inclusive, treinar uma ferramenta de IA apenas para reescrever novas músicas do Kiss, que serão representadas por uma versão digital do Kiss em videoclipe, que tanto o vídeo como a canção serão de uma qualidade indistinguível das músicas do Kiss (que não eram lá grandes coisas) e que o resultado disso será que Kiss, a banda, jamais vai envelhecer ou morrer ou, então, jamais vai deixar de realizar espetáculos para girar a roda do capitalismo, ad infinitum, ad nauseam

Eu ia escrever sobre isso. 

Mas eu me sentiria uma farsante, escrevendo sobre cenários calculados no futuro, estando eu no monte das trincheiras em Tejucupapo, no município de Goiana, nordeste de Pernambuco, diante de trincheiras que foram recuperadas pelo Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e ainda estão ali, marcando o local onde mulheres do pequeno vilarejo ajudaram a impedir a passagem de um grupo de 600 holandeses que queriam tomar alimentos para resistir ao cerco dos portugueses a Recife, em 1646. Estava lá com a equipe da Marco Zero, premiado site independente do Nordeste, presenciando uma cena incrível.  
Era uma tarde chuvosa e enlameada de domingo, num morro verdejante com pouquíssimo acesso à internet (nem Claro nem Tim); as barraquinhas que vendiam salgadinhos mequetrefes e cachos de pitomba, um fruto silvestre e azedinho da região, não conseguiam aceitar Pix pela internet recalcitrante, nem havia livestreaming de influenciadores possível nem haveria uma pletora de imagens registrada na rede mundial.

 

E a vida acontecia mesmo assim.
   

Há 30 anos, uma obstinada senhora, Luzia Maria, escreveu e dirigiu um espetáculo a céu aberto recriando a batalha em tons épicos, e desde então ela é representada todos os anos por mais de 200 moradores de Tejucupapo, diante de uma plateia de 1.500 pessoas vindas da vizinhança – famílias, roupas coloridas, sorrisos, gritaria – uns pequenos punhados de Recife, com seus óculos coloridos e camisas estilizadas, e só nós de forasteiros. Luzia preside a Associação Cultural Heroínas de Tejucupapo, responsável pela encenação a céu aberto.  

Com um atraso de duas horas, causado porque Luzia queria esperar a chegada do prefeito, a batalha é encenada como uma grande dança, onde as mulheres aparecem com vestidos longos e monocromáticos, vermelho, verde, azul, rosa, carregando cestas de frutas e farinha, de mãos dadas com meninos vestidos apenas com calça curta e branca, descalços, e através das furiosas caixas sonoras na última uma narração épica (feita pela própria autora) vai contando como era a tediosa (mas pintada de maneira engrandecedora) vida das mulheres de Tejucupapo, que faziam seus deveres, cantavam cantigas, até que, no dia da invasão, foram incitadas pelo (valente) major de milícias Agostinho Nunes a ferver água e temperar com pimenta para jogar nos olhos dos invasores.

A espera foi de duas horas e meia, mas a performance em si dura por volta de meia hora. A plateia está em êxtase, grita a cada “holandês”, de calças negras, casaco laranja e uns capacetes de bicicleta revestidos com purpurina dourada que cai no fosso da trincheira. 

“Se esses holandeses voltarem, eu atiro neles” – diz um dos atores, vestido com um gibão marrom

“Vivaaaa” – grita o público.    
     
A história contada na peça, é claro, foi bastante arredondada. Seu significado é dizer que nascia ali o Brasil, independente, o que é um papo furado: o Nordeste que se livrou dos holandeses apenas queria voltar a ser católico, obscurantista e português (escravocratas todos eram). Mas isso é o que menos importa. Para mim, importa que numa cidadezinha de 80 mil habitantes essa senhora tenha conseguido criar uma tradição que atrai milhares de pernambucanos todos os meses de abril, e que tenha feito toda essa gente esperar nas desconfortáveis arquibancadas até a chegada do prefeito, a quem, em vez de pedir uma salva de palmas, chamou ao microfone para entregar-lhe uma placa de homenagem para depois pressionar: 

– Temos três demandas – disse.

Então seu vice-presidente, um rapaz jovem, listou-as ali, bem detalhadas, e depois Luzia ainda cobrou: 

– Queremos ouvir sua resposta. 

Palmas da plateia.  

Por que estou compartilhando isso aqui, nesta newsletter sobre o bravo mundo novo da tecnologia? Porque, embora sejam realidade as novas fronteiras virtuais do ultracapitalismo digital, e embora tenhamos, sim, que refletir sobre as implicações desses novos mundos que estão sendo criados, onde uma banda de rock da minha infância pode viver para sempre –, ainda estamos em um mundo igualmente analógico, onde um grupo de senhoras, senhores e crianças de uma cidadezinha no interior de Pernambuco encenam, bem à maneira oposta das criações de IA, uma peça e conseguem levar mais de 1.500 pessoas num domingo chuvoso para vê-las, com parca internet, sem luz quase, com pouco sinal de telefonia, e a vida segue acontecendo, também, fora da rede, ainda tocada por pessoas com seus medos e seus vícios e suas belezas.  

 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

terça-feira, 23 de abril de 2024

CONFLITOS NO CAMPO ATINGEM MAIOR NÚMERO JÁ REGISTRADO NO BRASIL DESDE 1985

 Conflitos no campo atingem maior número já registrado no Brasil desde 1985
Novo levantamento aponta aumento de ocorrências de despejo judicial e violências causadas por governos estaduais

22 de abril de 2024
09:00
Por Gabriel Gama
SOCIOAMBIENTAL VIOLÊNCIA
Amazônia conflitos no campo direitos humanos política violência
O Brasil teve 2.203 conflitos no campo em 2023, o maior número já registrado desde 1985, quando começaram os levantamentos da Comissão Pastoral da Terra (CPT). No ano passado, os despejos judiciais no meio rural quase triplicaram e as violências causadas por agentes dos governos estaduais mais que dobraram, embora empresários e grileiros continuem liderando as agressões.

Os dados são do relatório “Conflitos no Campo 2023”, da CPT, divulgado nesta segunda-feira. A publicação destaca o número recorde de conflitos no campo no Brasil, que envolveram 950 mil pessoas no ano passado. Até então, a maior quantidade de ocorrências havia sido registrada em 2020, com 2.130 casos. A região Norte lidera com 810 conflitos, seguida pela Nordeste (665), Centro-Oeste (353), Sudeste (207) e Sul (168).

POR QUE ISSO IMPORTA?
O levantamento de conflitos no campo feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) é uma das únicas bases de dados desse tipo no país. Ele serve como indicador para violência no ambiente rural, realidade que afeta milhares de famílias no Brasil

Do total de ocorrências, 78,2%, ou 1.724 conflitos, foram relacionados a disputas pela terra; 11,4% foram motivados pela água; e 10,4% tiveram relação com o trabalho. Com mais de 187 mil famílias atingidas, a quantidade de conflitos pela terra também é a maior da série histórica.

O estado que mais teve conflitos agrários foi a Bahia, com 202 casos. O Pará fica em segundo lugar, com 183 registros. Na terceira posição, vem o Maranhão, com 171 conflitos. Na sequência, Rondônia registrou 162 violências pela terra e Goiás ocupa o quinto lugar da lista, com 140.


“Desde 2017, estamos vivenciando um período de acirramento da violência no campo, que se intensificou durante o governo Bolsonaro e se manteve no primeiro ano do governo Lula. Esse período é marcado pela violência contra as comunidades na tentativa de expulsá-las do território, visando barrar a luta pela conquista de novas áreas”, avalia Andréia Silvério, coordenadora nacional da CPT.

Apesar do recorde de conflitos, as ações de resistência também se intensificaram. Foram concretizadas 119 novas ocupações e retomadas de territórios, um crescimento de 60,8% em relação a 2022. Um aumento ainda maior foi verificado na quantidade de novos acampamentos de posseiros e sem-terra, com 17, ou 240% a mais do que no período anterior.

Violências causadas por governos estaduais mais que dobram, mas fazendeiros ainda são maiores agressores
A quantidade de violências perpetradas por agentes dos governos estaduais mais que dobrou em um ano, passando de 63 em 2022 para 132 em 2023. A maior parte envolveu ações policiais de intimidação armada e ameaças variadas, com 103 episódios.

Os estados de Goiás e Bahia estiveram à frente nesse recorte, seguidos por Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão e Rondônia. A CPT denuncia que esses governos têm intensificado a repressão policial contra acampamentos, assentamentos, comunidades quilombolas e terras indígenas.

FAÇA PARTE
Saiba de tudo que investigamos




No mesmo período, as violências causadas pelo governo federal caíram 27%, com 175 ocorrências em 2023, primeiro ano da gestão Lula. Elas chegaram a 240 no ano anterior, último do mandato de Bolsonaro.

Apesar dessa queda e da ampliação do diálogo do governo atual com os movimentos sociais, por meio da reestruturação de ministérios como o do Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos e Justiça e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a CPT avalia que “isto não se refletiu em avanços na conquista de direitos pelas populações camponesas e tradicionais, como a reforma agrária e a demarcação das terras indígenas”.

Ainda assim, os maiores causadores de violência no campo são fazendeiros, empresários e grileiros. Juntos, eles respondem por 59,9% de todos os conflitos por terras em 2023. Foram 495 causados por fazendeiros, 313 por empresários e 144 por grileiros.

Despejo judicial no campo quase triplica em um ano
As ocorrências de despejo judicial no campo dispararam 194% entre 2022 e 2023, passando de 17 para 50 casos concretizados, que desalojaram mais de 5 mil famílias. As ameaças de despejo tiveram aumento de 32,6%, com 183 registros em 2023, 45 a mais do que no período anterior, e deixaram 21 mil famílias sob a expectativa de não ter um local para viver.

De acordo com o relatório, a Bahia é líder isolada em número de famílias efetivamente despejadas, com 2,9 mil – mais da metade do total do país.

Segundo a coordenadora da CPT, o grande número de despejos nesse estado é decorrente da ofensiva contra os sem-terra. “É possível apontar também a recorrente violência contra comunidades tradicionais e povos indígenas, sendo a grilagem uma prática instituída através de esquemas que envolvem os órgãos de terras, cartórios e até mesmo o Judiciário, já há muitos anos denunciada”, afirma Silvério.

“Na Bahia se identificou uma forte articulação do movimento invasão zero, constituído majoritariamente por fazendeiros, grileiros e jagunços, que visa retaliar violentamente as novas ocupações e retomadas de territórios indígenas, a exemplo do que ocorreu na região sul do estado já em 2024, culminando com assassinato da liderança indígena Nega Pataxó”, complementa.

Quando o recorte é a quantidade de famílias ameaçadas de despejo, Rondônia assume o primeiro lugar, com 7,1 mil famílias, seguido pela Bahia, que tem 3,4 mil famílias nessa condição. Somados, esses estados concentram 48% da população ameaçada por despejos no campo.


A CPT atribui esse crescimento ao fim da suspensão de despejos coletivos, instaurado pela Arguição de Descumprimento de Poder Fundamental (ADPF) 828, que esteve em vigor entre 2020 e 2022. A medida tinha o objetivo de evitar impactos maiores da pandemia da covid-19 entre as populações vulneráveis.

Assassinatos de mulheres aumentam
Trinta e um assassinatos foram registrados em conflitos no campo no Brasil em 2023, o que corresponde a uma redução de 34% em relação ao ano anterior.

A situação, no entanto, não é uniforme. Na região da tríplice fronteira entre Amazonas, Acre e Rondônia, conhecida como Amacro, houve oito assassinatos, o mesmo número observado em 2022, sendo cinco causados por grileiros.

“Prometida como ‘modelo’ de desenvolvimento com foco na sociobiodiversidade, [a região de Amacro] tornou-se epicentro de grilagem para exploração madeireira e criação de gado, com altas taxas de desmatamento, queimadas e conflitos”, afirma o relatório.

Quando se analisam os assassinatos de mulheres no campo, a tendência é de crescimento. Sete mulheres foram executadas em 2023, 16,7% a mais do que no período anterior. Um dos casos que ganhou maior notoriedade foi o de Mãe Bernadete, líder quilombola morta a tiros em agosto passado, na Bahia.

Indígenas são os mais afetados por conflitos envolvendo projetos de crédito de carbono
Entre os conflitos pela terra, os indígenas continuam sendo a categoria que mais sofreu violências, com 470 ocorrências, ou 29,6% do total registrado em 2023. Também são o grupo mais assassinado no meio rural, com 45% do montante de vítimas.

Os conflitos que envolvem projetos de créditos de carbono, destinados a compensar as emissões de empresas poluidoras, atingiram 23 localidades diferentes naquele ano, implicando uma área de 9,7 milhões de hectares do território nacional. Pará e Rondônia concentram 94% desse total.

Grande parte dessas áreas, ou 88,4%, faz parte de terras indígenas. Em segundo lugar, aparecem as unidades de conservação, com 7,6%, e por fim os assentamentos (3,4%).

Edição: Bruno Fonseca
Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

ENTRE EM CONTATO

Gabriel Gama
Leia mais deste autor

sexta-feira, 19 de abril de 2024

 

No Capitalismo Indigno, raiz da extrema-direita

Ao suprimir a solidariedade, sistema produziu uma ralé descartável e o salve-se quem puder. Vem daí a corrosão de caráter que nutre os fascistas. Eles só recuarão quando novas transformações expuserem a miséria do indivíduo indiferente

Arte: Adam Baker
.

O cenário global atual conforma um daqueles momentos da história no qual nos sentimos sem rotas de fuga evidentes e com a sensação de estarmos vivendo em uma era de transição, na qual o passado ainda não sucumbiu totalmente e o futuro ainda não se mostrou. Em tais momentos, recorrer ao passado histórico e às pistas que a teoria social nos apresenta pode ser um caminho seguro, de modo a não ficarmos presos às ilusões do presente, do qual muitas vezes não conseguimos ter distanciamento afetivo e cognitivo. Para tanto, é preciso identificar as questões e consequentemente as discussões mais urgentes de nosso tempo, dentre as quais a que me parece mais importante é a ascensão da extrema direita em escala global nos últimos anos.

Ao revisitar criticamente as principais transformações estruturais do capitalismo global, desde a década de 1970, vemos que a ascensão da extrema-direita não se compreende simplesmente através dos debates de “conjuntura”, como tem sido feito atualmente. Com isso, tal fenômeno, tanto nos países centrais quanto nos periféricos, só pode ser compreendido profundamente se reconstruirmos as suas origens ao longo da “grande transformação” sofrida pelo capitalismo global nas últimas cinco décadas. Este é o cenário histórico que procurarei reconstruir aqui a partir do conceito de “capitalismo indigno”.

Como indigno, percebo a forma de capitalismo que se estruturou no mundo, desde os anos de 1970, tendo como característica principal a naturalização, em escala global, do desvalor da vida humana como um todo, e especialmente da vida daqueles mais necessitados, os “sobrantes” (Robert Castel), ou seja, uma “ralé global”.1 Este é o principal produto do capitalismo indigno em escala global, que tem como marco inicial central o fracasso do welfare state em países centrais como Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha.2 A naturalização do desvalor dos mais pobres e necessitados, ou seja, aqueles que “sobraram” ou que nunca conseguiram se inserir no sistema do trabalho digno e produtivo, sempre foi um marco nos países periféricos, como mostrou Jessé Souza (2009), por exemplo, no caso brasileiro. Atualmente, o desvalor da vida humana nas classes populares, o que já ameaça as camadas mais baixas da classe média, também afeta os países centrais, como uma ferrugem que corrói o sistema por dentro, deixando claro que o capitalismo jamais promoverá justiça social, explicitando assim sua lógica intrínseca e inevitável. Este novo cenário global é o que eu estou provocativamente chamando de capitalismo indigno, ou seja, um sistema global cuja marca central é a generalização, institucionalização e naturalização da indignidade da vida sofrida das classes populares, cuja realidade consiste em vagar entre o não emprego sistemático e a realização de ocupações indignas. Outro traço central deste novo sistema é a indignidade das relações entre as classes, inclusive nos países centrais, marcadas pelo desrespeito e a intolerância, típicos de contextos nos quais predominam a radicalização da desigualdade socioeconômica.3

Neste contexto, a sociologia do trabalho normalmente recorre ao conceito de trabalho precário para tematizar as condições de trabalho produzidas pelo capitalismo atual. Ainda que tenha provocado e servido de base para um grande número de importantes pesquisas empíricas, o conceito de trabalho precário apenas descreve situações de trabalho que são obviamente ruins. Em contrapartida, proponho a ideia de trabalho indigno, (Maciel, 2021) para pensar o tipo de trabalho realizado pela ralé brasileira e global, o que é essencialmente igual tanto no centro quanto na periferia. Neste contexto, o conceito de trabalho indigno nos permite tematizar o sofrimento e a humilhação social, ou seja, a dimensão moral da condição de subocupado ou simplesmente de desempregado estrutural. A dignidade da pessoa humana é um dos princípios centrais de nossa hierarquia moral de valores no Ocidente, o que pode ser visto no ditado que diz que “todo trabalho é digno”, mas que apenas obscurece a realidade de descartabilidade e inutilidade vivida por milhões de pessoas no mundo hoje. Esta realidade, que sempre foi a marca central de países periféricos como o Brasil, agora corrói também o seu centro, lançando todo o sistema global em uma condição indigna, estruturada pelo capitalismo indigno, o que pôde ser visto com toda a nitidez nos piores momentos da pandemia.

A ausência do estado de bem-estar como base para a extrema-direita

Diante disso, farei uma análise em dois movimentos, que precisam ser articulados, de modo a compreendermos como o capitalismo indigno proporcionou a ascensão da extrema-direita, tanto no Brasil como em outras realidades nacionais. Primeiro, é preciso compreender o grande ciclo deste capitalismo em escala global, a partir da década de 1970. Uma de suas características centrais é seu refluxo dos vetores econômicos, fazendo com que agora os países centrais também sintam o gosto amargo de algumas das principais realizações negativas do sistema, relegadas sempre à sua periferia. É isso que vai explicar, por exemplo, o fortalecimento da extrema direita em países como França e Alemanha.4

No caso da última, a obra de Klaus Dörre permite compreender a adesão da classe trabalhadora à extrema-direita no cenário recente. Para tanto, o autor vai usar a metáfora da “fila da espera”, recorrendo à obra de Arlie Hochschild, de modo a tematizar o aumento da precariedade e da consequente angústia social na Alemanha nos últimos anos, o que conforma um contexto propício para a adesão a sentimentos autoritários. Neste sentido, o autor percebe uma profunda conexão entre racismo, populismo e a questão do trabalho (Dörre, 2018). Ademais, as motivações que levam boa parte da classe trabalhadora ao encontro de sentimientos autoritários foram tema de pesquisa do autor por vários anos. Dentre elas, o medo diante da situação de instabilidade crescente se encontra entre os principais aspectos.

Na mesma direção, encontra-se a análise de Arlie Hochschild sobre o caso dos Estados Unidos. Neste sentido, a autora realizou uma pesquisa no interior de alguns dos estados mais conservadores do país, de modo a compreender como o coração de pessoas comuns foi seduzido pelo movimento que levou à eleição de Donald Trump (Horschild, 2018). A autora tematizou esta complexa situação com a metáfora do “estranho em seu próprio país”, se referindo ao sentimento do cidadão americano mediano diante do estrangeiro, que no atual contexto é visto como aquele que vem para “roubar” os empregos. Não por acaso, a apropriação de Trump do slogan de Ronald Reagan “Make American great again” vai fazer bastante sucesso nesta direção.

Outra importante análise no contexto alemão foi feita por Wilhelm Heitmeyer. Para o autor, presenciamos agora um novo tipo de radicalismo de direita. Este caracteriza-se como um novo radicalismo nacional autoritário, representado pelo AfD e com articulação em movimentos como o PEGIDA e alguns milieus intelectuais. Trata-se ainda de um populismo de direita difuso, mobilizando instrumentalmente a contradição entre “elite” e “povo”, e posicionando-se como se falasse “pelo povo”. Neste sentido, este novo tipo de populismo, para o autor, apresenta três características centrais. Primeiro, o “autoritário” se torna o paradigma de controle contra a política e a sociedade. Segundo, o “nacional” passa a acentuar a posição excepcional do povo alemão e de sua identidade. Por fim, o “radical” passa a ser celebrado como o estilo de mobilização por excelência, ultrapassando todas as fronteiras emocionais, éticas e morais.

Ademais, para o autor, presenciamos atualmente a ascensão de um capitalismo autoritário e de uma perda de controle múltipla, o que é decisivo para a compreensão do fortalecimento da extrema-direita. Com isso, ele percebe o ressurgimento do radicalismo nacional autoritário não apenas como um problema relacionado a erros de desenvolvimento do sistema político das democracias liberais, mas sim como uma mudança de relações entre processos econômicos, sociais e políticos, os quais conformam a “ambivalência da modernidade” (Bauman) e as velozes transformações em curso na globalização. 5

Assim, a política nacional vai sofrer a perda de controle, diante da vitória do controle do capitalismo autoritário, por exemplo, com a política de desregulação, produzida pelo próprio sistema político. Além disso, a perda de controle social e individual de vários cidadãos será percebida por estes como perda de controle político, o que vai levar à perda de confiança nos partidos políticos estabelecidos e até mesmo na democracia como um todo. Algo bastante semelhante pode ser visto no caso brasileiro. No geral, o que estes autores estão mostrando é o triunfo do capitalismo indigno, pavimentando o caminho para a ascensão de sentimentos, articulações e políticas de extrema-direita no cenário atual.

Por outro lado, é preciso compreender que os ciclos do capitalismo periférico não necessariamente acompanham os ciclos do centro. Neste sentido, é preciso tematizar o que aconteceu no Brasil recente, ou seja, como o capitalismo indigno possui um ciclo específico recente entre nós e como ele nos trouxe a um contexto autoritário, que reflete em grande medida o cenário global. Na década de 1960, quando o capitalismo “social” começa a mostrar sua verdadeira face no Atlântico Norte, expondo os limites do estado de bem-estar e sofrendo várias críticas sociais e estéticas (Boltanski & Chiapello, 2009), o Brasil sofreu um golpe militar, no contexto da guerra-fria, sob o pretexto de “garantir a ordem”.

Na década de 1980, como consequência da crise estrutural do capitalismo na década anterior, os governos Reagan e Thatcher inauguram seu neoliberalismo perverso e anti-social, o que se reflete nas dificuldades com a inflação que marcam nossa “década perdida”. Na década de 1990, com o neoliberalismo estabelecido enquanto modelo político inquestionável do Ocidente, verdadeira face do capitalismo indigno, o Brasil curiosamente inicia um ciclo ambíguo que marca nossa nova dependência já no governo de Fernando Henrique Cardoso, inesquecível por suas privatizações e integrando por baixo o país na nova ordem global. Apesar de neoliberal, nossa década de 1990 pavimenta parcialmente o caminho para a era do lulismo.

Assim, se quisermos compreender o que de fato aconteceu no Brasil recente precisamos romper com as ilusões da conjuntura e fazer uma reconstrução estrutural de ordem maior. Neste sentido, é preciso ir além da novelização da política na qual fomos imersos, ou seja, tematizar as verdadeiras razões obscuras do capitalismo indigno, que estão sendo sistematicamente escondidas pela grande mídia, cuja especialização maior atualmente é o foco na teatralização do campo político.

Diante deste complexo cenário, é preciso compreender o que aconteceu no Brasil durante os anos do lulismo. Estes podem ser entendidos como um esboço de welfare state entre nós, apesar de toda as limitações estruturais impostas pelo capitalismo indigno a países periféricos e dependentes.6 Neste sentido, é preciso escapar de leituras apressadas que têm sido feitas no Brasil atual, de modo a culpabilizar a esquerda e seus erros na conjuntura anterior, como se isso explicasse o aumento de nossa desigualdade e violência recente. Com isso, o antipetismo se tornou um dos principais paradigmas analíticos da política contemporânea durante o governo Bolsonaro, fundamentado muito mais no discurso da grande mídia do que em pesquisas acadêmicas especializadas.

Se não quisermos reproduzir este argumento superficial, precisamos compreender a ação efetiva e obscura do capitalismo indigno entre nós. São as suas transformações estruturais profundas que se encontram por trás do golpe de 20167, que abortou nosso ensaio de bem-estar social e colocou no poder um governo de legitimidade questionável, pavimentando o caminho para uma série de reformas anti-sociais que romperam nosso pacto social.8 Apesar de um movimento crescente no Brasil, na conjuntura anterior, no sentido de minimizar os efeitos do capitalismo indigno, as forças externas que refletem o fracasso do sistema em escala global, especialmente a partir da crise de 2008, sempre estiveram presentes nas decisões dos assuntos nacionais.

No movimento que inaugura a complexa conjuntura atual, boa parte da elite brasileira, em consonância com o movimento global do capitalismo indigno, reproduziu o discurso seletivo da corrupção, bem como a linguagem política do anti-petismo, dominante no Brasil dos últimos 20 anos, e com isso apostou na eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Não por acaso, o discurso do expresidente é ultra meritocrático, legitimando toda a ação neoliberal devastadora do capitalismo em países periféricos como o Brasil. Também não é casual que Lula tenha vencido a última eleição para presidente, confirmando que sua imagem enquanto líder popular e sua conexão afetiva com grande parte das classes populares no Brasil conseguiu sobreviver ao golpe de Estado sofrido por seu partido em 2016 e à sua controversa prisão, em 2018, quando ele liderava as intenções de voto, o que deixou o espaço livre para a ascensão de Bolsonaro na reta final. Além disso, boa parte da população brasileira, incluindo parte da elite, não conseguiu evitar o descontentamento com o governo Bolsonaro que, além de sua tonalidade explicitamente autoritária, também demonstrou incompetência na condução do país como um todo. A trágica administração da pandemia pelo governo, culminando em mais de 600 mil mortes, fato conhecido e bastante criticado na mídia internacional, é a principal prova empírica desta afirmação.

Conclusão

Como conclusão, gostaria de propor uma interpretação de como a estruturação do capitalismo indigno nas dimensões da economia política, da moralidade, da ideologia e da cultura vai explicar a ascensão da extrema-direita hoje em escala global. Trata-se de uma articulação teórica entre estes quatro níveis, de modo a contribuir para uma compreensão ampla de como chegamos até aqui. Desde os anos de 1970 presenciamos a grande transformação do capitalismo global em todas estas dimensões, o que vai naturalmente intensificar a desigualdade nos países periféricos, além de iniciar nos países centrais um processo de indignidade das condições de trabalho e das relações entre as classes aparentemente sem volta.

Assim, no plano da economia política, o que presenciamos é o espectro da indignidade em escala global, o que se conforma como a principal marca do período pós-welfare state nos países centrais e o aprofundamento da desigualdade estrutural nos países periféricos. Isto significa uma indignidade ainda conjuntural nos países centrais e estrutural nos países periféricos. Entretanto, a naturalização do desvalor da vida humana dos mais necessitados, ou seja, a produção de uma ralé global, é uma marca do capitalismo indigno como um todo. Isso é o que Robert Castel (1998) vai tematizar com as noções de “sobrantes” e “vulnerabilidade” e Richard Sennett (2006) com o conceito de “descartabilidade”. Esta situação, ainda que conjuntural nos países centrais, foi suficiente para alimentar os sentimentos de medo, angústia e insegurança, tanto material quanto ontológica, que levam em grande medida à simpatia e adesão a movimentos de extrema-direita, como pudemos ver a partir das obras de Klaus Dörre, Arlie Hochschild e Wilhelm Heitmeyer.

Além disso, a tese da “sociedade do conhecimento”, de André Gorz (2005), na qual o conhecimento tecnológico se torna uma força produtiva sem precedentes, pode ser atualizada para a compreensão do capitalismo digital e de plataformas, bem como sua capacidade em aprofundar a indignidade do trabalho e consequentemente a desigualdade de classe. Neste sentido, a dimensão tecnológica do capitalismo indigno criou mecanismos ainda mais invisíveis e impessoais de reprodução da desigualdade do que em períodos anteriores, o que pode ser visto em toda a sua voracidade na ação de empresas como a Uber e o I-Food em países como o Brasil, no qual o número de pessoas vulneráveis que recorrerão a este tipo de trabalho indigno digital, ou seja, uma nova ralé digital, é bem maior do que nos países centrais.

Na dimensão da moralidade, como entendida por Axel Honneth (2015), é preciso compreender aqui a atualização do pano de fundo moral e das interações éticas em um contexto de indignidade generalizada, o que vai explicar em grande medida a adesão ao radicalismo de extrema direita. Neste sentido, o que presenciamos com o trumpismo e o bolsonarismo é o aprofundamento de uma moralidade ultra meritocrática. Isto significa que, em um contexto econômico no qual a diferença entre vencedores e perdedores no mercado de trabalho é gigantesca, teremos uma interação ética indigna entre as classes, o que se reverbera no aumento do ódio, da intolerância, da violência e do medo. Não por acaso, os discursos profundamente meritocráticos de Trump e Bolsonaro, por exemplo, são uma das principais marcas deste tipo de moralidade conservadora e intolerante, na qual os vencedores se sentem ameaçados em seus privilégios, considerados justos, e os perdedores se sentem desamparados, humilhados, esquecidos, abandonados e revoltados. Nenhum contexto é mais propício do que este para a adesão aos sentimentos autoritários, por razões distintas, entre vencedores e derrotados. Neste sentido, a revolta muda dos derrotados se transforma no sentimento antipolítica e antissistema que vai levar à adesão e identificação afetiva com os líderes da extrema direita.

No plano da ideologia, a análise de Boltanski e Chiapello (2009) sobre o terceiro espírito do capitalismo ainda se apresenta como uma das mais produtivas para esta discussão. Uma das principais características do terceiro espírito, para os autores, é exatamente a sua capacidade de neutralizar as críticas sociais e esconder todas as hierarquias do capitalismo indigno, sugerindo a existência de um novo capitalismo do bem, políticamente correto, inclusivo e preocupado com todas as questões sociais relevantes de nosso tempo.9 Nada é mais falso e perigoso do que isso. Com isso, o terceiro espírito do capitalismo precisa ser compreendido como uma ideologia, no sentido de amenizar e ao mesmo tempo justificar as contradições atuais do sistema, buscando o engajamento afetivo e prático de seus diferentes atores e classes sociais.

Assim, a desigualdade atual é vista como algo mutável, desde que as pessoas sejam flexíveis e procurem se engajar nos projetos oferecidos por este novo capitalismo, supostamente mais dinâmico e inclusivo do que em períodos anteriores. Deste modo, o fracasso na realização de projetos pessoais e a não inclusão no mercado de trabalho passa a ser internalizado mais do que nunca como culpa dos derrotados, ou seja, a ideologia do novo capitalismo de projetos esconde exatamente a sua verdadeira face profundamente meritocrática. Com isso, temos um terreno fértil para a extrema-direita, que vai se apropriar instrumentalmente da pauta trabalhista, prometendo ironicamente dignidade, como pode ser visto claramente nos discursos de Trump, Bolsonaro e Le Pen, dentre outros.

Por fim, no plano da cultura, encontramos na obra de Richard Sennett (2006) uma importante análise. O principal aspecto de sua percepção sobre o novo capitalismo flexível é exatamente o que ele vai chamar de “corrosão do caráter”10. Com isso, o autor procura descrever o tipo humano produzido e exigido pelo novo capitalismo, o qual precisa ser flexível em todos os sentidos, não se apegando a nenhum laço duradouro, de modo a poder aproveitar todas as chances que o mercado oferece. Trata-se nada menos do que um tipo humano ultra-meritocrático, ou seja, um novo self made man em sua versão mais acabada, ultra individualista e desapegado de qualquer laço de lealdade, fidelidade e autoridade. Esta cultura prática do capitalismo, produzida pelas grandes corporações, vai se espraiar para todas as esferas da vida social e com isso produzir um novo indivíduo blasé e resignado, preocupado apenas com a construção de sua trajetória pessoal e indiferente à indignidade alheia.

O que temos com isso? Para os vencedores do novo capitalismo flexível e indigno, o sistema oferece a possibilidade de melhora constante da carreira, realização pessoal, prestígio e, em uma palavra, felicidade. Esta promessa, entretanto, é quase sempre frustrada, como podemos ver em trágicas históricas de bilionários e celebridades cuja falta de sentido existencial coloca em questão todas as metas de autenticidade prometidas pelo novo capitalismo11. Por outro lado, para os derrotados, o sistema oferece frustração, humilhação, culpa, autopunição e, obviamente, insegurança material, ou seja, em uma palavra, indignidade. Seria possível impedir a ascensão da extrema-direita, com todas as suas falsas promessas, seu cinismo e oportunismo, em um cenário tão trágico como esse? A partir dos relatos empíricos que temos de vários países do mundo neste exato momento, a resposta é um trágico não. Este é o mundo da vida real de milhões de pessoas, produzido pelo capitalismo indigno, traduzido na revolta e indignação que alimenta a extrema direita.

Autor:

Professor de teoria sociológica da UFF-Campos e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UENF. Bolsista de produtividade do CNPq. Jovem Cientista do Nosso Estado, FAPERJ. Professor visitante na Friedrich-Schiller Universität Jena, Alemanha (2022).

Bibliografia

Boltanski, Luc; Chiapello, Éve (2009), O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes.

Braga, Ruy (2012), A política do precariado. Do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo.

Castel, Robert (1998), Metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes.

Dörre, Klaus (2018), „In der Warteschlange. Rassismus, völkischer Populismus und die Arbeiterfrage.“. In: BECKER, K.; DÖRRE, K; REIF-SPIREK, P. Arbeiterbewegung von Rechts? Ungleichheit – Verteilungskämpfe – populistische Revolte. Frankfurt; New York: Campus.

Estanque, Elísio (2015), Classe média e lutas sociais. Ensaio sobre sociedade e trabalho em Portugal e no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp.

Gorz, André (1980), O imaterial. Conhecimento, valor e capital. São Paulo: Editora Annablume.

Heitmeyer, W. (2018), „Nationalradikalismus. Ein neuer politischer Erfolgstypus zwischen konservativen Rechtspopulismus und gewaltförmigem Rechtsextremismus“. In: BECKER, K.; DÖRRE, K; REIF-SPIREK, P. Arbeiterbewegung von Rechts? Ungleichheit – Verteilungskämpfe – populistische Revolte. Frankfurt; New York: Campus.

Hochschild, Arlie Russell (2018), “Warum Trump? Fremd in ihren Land: Interview mit Arlie Russel Hochschild“. In: BECKER, K.; DÖRRE, K; REIF-SPIREK, P. Arbeiterbewegung von Rechts? Ungleichheit – Verteilungskämpfe – populistische Revolte. Frankfurt; New York: Campus.

Honneth, Axel (2015), O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes.

Maciel, Fabrício (2022) (org.) A ficção meritocrática. Executivos brasileiros e o novo capitalismo. E-Book. Campos dos Goytacazes: Editora da UENF.

______. (2021), A nova sociedade mundial do trabalho. Para além de centro e periferia? 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Autografia.

______. (2020), “A patologia da normalidade: Erich Fromm e a crítica da cultura capitalista contemporânea”. In: Sociologias (UFRGS), 22, 55, p. 262-288.

______. (2017), “Reconhecimento e desigualdade: da ética da autenticidade à cultura do novo capitalismo”. In: Ciências Sociais Unisinos, 53, 2, p. 281-291.

Sennett, Richard (2006), A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record.

Singer, A. (2018), O lulismo em crise. Um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras.

Souza, Jessé (2018), A radiografia do golpe. Entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: Leya.

______. (2009), A ralé brasileira. Quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

1 Faço aqui uma adaptação do conhecido conceito de “ralé” de Jessé Souza (2009), para pensar a realidade do capitalismo global contemporâneo.

2 As obras de autores como Richard Sennett, Robert Castel e Klaus Dörre, dentre outros, sobre seus respectivos países, confirmam nitidamente a validade desta constatação.

3 No caso brasileiro, por exemplo, onde a desigualdade material entre as classes é enorme, o desrespeito, a intolerância, a indiferença e consequentemente a tensão social como um todo é visivelmente maior do que em países como a Alemanha, no qual a desigualdade entre as classes, ainda que esteja em crescimento, é visivelmente menor do que no Brasil.

4 Um debate mais recente, neste ponto, vai se remeter ao suposto fim da globalização e ao fracaso do neoliberalismo, como pano de fundo económico e político para o acirramento dos conflitos e contradições atuais.

5 Neste contexto, Ruy Braga vai contestar a tese do “ódio branco”, em seu recente livro “A angustia do precariado” (2023), mostrando que em contextos de precariedade pode haver o aumento da solidariedade e até movimentos antirracistas nos ambientes da classe trabalhadora.

6 Neste sentido, uma crítica séria e distanciada sobre o lulismo e o seu fracasso foi feita por André Singer (2018). Para ele, especialmente no governo Dilma Rousseff, houve uma tentativa de construção de um pacto desenvolvimentista e rooseveltiano, tendo o mesmo fracassado diante de forças políticas contrárias ao governo, que culminaram no processo de Impeachment da presidente. Outra crítica importante à chamada “hegemonia lulista” foi feita por Ruy Braga (2012) em seu provocativo livro “A política do precariado”.

7 Neste contexto, é extremamente importante comprender as manifestações de 2013 no Brasil. Para tanto, um excelente livro é o de Elisio Estanque, “Classe média e lutas sociais” (Unicamp, 2015), no qual o autor problematiza o papel da classe média neste cenário e faz uma interessante análise sobre a “blindagem” do sistema político.

8 Para uma análise sistemática sobre o golpe de Estado sofrido por Dilma Rousseff em 2016, ver o livro “A Radiografia do Golpe”, de Jessé Souza (2016).

9 Desenvolvi esta análise no E-Book “A ficção meritocrática: executivos brasileiros e o novo capitalismo” (Maciel, 2022), fruto de pesquisa coletiva que venho realizando há alguns anos com executivos no estado do Rio de Janeiro.

10 Este conceito do autor se afina de maneira muito interessante com a ideia clássica de caráter social, desenvolvida por Erich Fromm (1970) em seu tempo, de modo a tematizar o tipo de pessoa comum predominante em uma determinada época. O ponto em comum é que Fromm percebeu uma profunda conexão entre os imperativos da cultura capitalista e os sentimentos autoritários, o que podemos perceber também em nosso tempo. Desenvolvi uma análise sobre a obra de Fromm, neste sentido, no artigo “A patologia da normalidade: Erich Fromm e a crítica da cultura capitalista” (Sociologias, UFRGS, 2020).

11 Desenvolvi uma análise nesta direção, a partir da ideia de “reconhecimento fake”, no artigo “Reconhecimento e desigualdade: da ética da autenticidade à cultura do novo capitalismo” (Ciências Sociais Unisinos, 2017).