sexta-feira, 26 de agosto de 2022

70 ANOS DEPOIS, O CERRADO MINEIRO QUE INSPIROU GUIMARÃES ROSA JÁ NÃO É UM "OÁSIS".

 
REPORTAGEM
70 anos depois, o cerrado mineiro que inspirou Guimarães Rosa já não é um “oásis”
João Canizares/Agência Pública
Nos 240 km entre Três Marias e Araçaí (MG), madeira, carvão e estiagem fazem mais sentido no ditado do que o antigo amarelo do bioma que inspirou Grande Sertão: veredas

25 de agosto de 2022
06:00
Texto: Luiz Claudio Ferreira | Fotos: João Canizares
 ESPECIAL: MICROBOLSAS ALIMENTAÇÃO E MUDANÇAS CLIMÁTICAS
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Eles abrem os cadernos. A aula surge no ditado, na lousa e até pela janela da escola. Há palavras difíceis nessa travessia: cerrado queimado, destruição, meio ambiente, comida, deserto… O ensino vem das sílabas pausadas da professora, mas também do silêncio contínuo que cerca o lugar. Na comunidade das Pedras, em Três Marias (MG), a escola municipal Olavo Bilac funciona como fronteira de resistência de um lugar sem asfalto, bordado pela poeira do tempo, que já teve 40 famílias. Agora, só vivem pessoas em seis casas. A escola do lugar tem apenas quatro alunos, de diferentes idades, do segundo ao quinto ano do ensino fundamental.

Poeira por todos os lugares que cobre os cadernos dos alunos, que são quase como as cadernetas de João Guimarães Rosa (1908-1967). Em 1952, o autor mineiro nascido em Cordisburgo se pôs — em dez dias de uma jornada com 17 vaqueiros — a registrar e decifrar naquela mesma região tudo o que via.

João Canizares/Agência Pública
Alunos da escola municipal Olavo Bilac
Na aula observada pela reportagem da Agência Pública, as crianças buscam entender o mundo e o clima mais difícil que recebem como herança. Hoje, o sertão está mais árido do que há 70 anos, quando o escritor se inspirou para escrever sobre o que o exasperava ao percorrer 240 quilômetros, descrevendo as veredas, o espaço de vegetação cercado de água no baixio do cerrado, como um oásis, “anunciada” por pelo menos um buriti.

Mas o cerrado agora é cercado pelo eucalipto, como o escritor, àquela época, já denunciava. Setenta anos depois, madeira e carvão fazem mais sentido no ditado do que o antigo amarelo do cerrado. Como escreveu Rosa: “sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra”.

João Canizares/Agência Pública
Destruição do cerrado mineiro deixou região mais árida
Em diferentes lições, as crianças e as duas funcionárias da escola já entenderam que a seca, a instabilidade climática, o cerrado alterado, além da distância para a área urbana, afastaram as pessoas do trabalho rural.

Nas aulas de português da professora Denise Coelho, de 54 anos, já aprenderam sobre o escritor conterrâneo. O célebre autor saiu justamente lá da vizinhança, da fazenda Sirga, para um trajeto que ele depois batizou “A boiada I e II”. Naquele trajeto, coletou, em suas cadernetas, anotações sobre tudo o que via: plantas, cenários, cheiros, cores, pessoas, em uma espécie de inventário afetivo da região. Os livros Grande sertão: veredas e Corpo de baile estão entre os resultados daquele olhar.

As anotações registradas e datilografadas são guardadas como relíquia no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP). Há trechos como “O vento tinha derrubado os mamões, alguns quase maduros. Amarelo pálido: flor de quiabeiro. Limão dá flor quase todo o tempo. Em geral, tem sempre flor e limão, verdes e maduros”.

A bióloga Mônica Meyer (que pesquisa a natureza na obra de Guimarães Rosa há mais de 30 anos) identifica que o olhar ambientalista do escritor torna-se atual e inquietante mesmo depois de tanto tempo. O sertão “rosiano”, inclusive por todas as cidades que ele viajou na boiada de 1952, é em 2022 marcado por dificuldades comuns. “Não só pelas mudanças climáticas que estão em curso, mas também pelas políticas hegemônicas que predominam na área de alimentação. A política não é para alimentar a população brasileira. O cerrado foi devastado.”

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João Canizares/Agência Pública
Eucalipto tomou a paisagem do cerrado
Em 1952, as anotações de Guimarães Rosa já registram essa devastação e o começo da presença do eucalipto. “O cerrado foi devastado com as monoculturas de soja e milho. Tem também a devastação com a produção do carvão vegetal que foi alimentar as siderúrgicas e a ocupação das áreas cada vez maiores com o eucalipto. E isso é claro que causa um impacto enorme na sustentabilidade e biodiversidade da região”, diz a bióloga.

As crianças, na aula de geografia da escola da comunidade das Pedras, para movimentar o espaço da sala de aula, costumam visitar a pé o que as cerca. O córrego, que estava seco. O algodoeiro do vizinho, que ficou raro. O mamoeiro, nos fundos da escola. O cenário de eucalipto no horizonte, que tomou conta do cerrado. Da janela, avistam ainda a plantação seca e um pivô de irrigação — muito utilizado pelo agronegócio no cerrado. Há cinco anos, a chuva ia até abril. Agora, encerra em fevereiro, quando não cessa antes, como os produtores da região testemunham. “Em geral, as crianças não conhecem as frutas típicas do cerrado”, lamenta a professora.

“Esse assunto, meio ambiente, tem a ver com tudo. Com o que a gente come ou mesmo por que essa comunidade existe. Quando eu era criança, aqui antes era melhor. Não era seco como hoje. Foi assim que veio o êxodo rural”, diz a professora. A outra funcionária da escola, a auxiliar de serviços gerais, Rosimeire Alves, de 53 anos, gosta muito do trabalho na escola e tem paixão pela roça que cultiva nos fundos de casa, vizinha à unidade de ensino.

O sonho era viver do que plantava, mas o clima não ajuda. “Quando a gente era mais jovem, tomava suco das frutas do cerrado. Hoje essas crianças não sabem o que é isso. Querem bala e refrigerante porque não tem mais o costume de comida natural.”

Segundo a bióloga Mônica Meyer, a destruição do cerrado na região gera um prejuízo humano muito relevante na rotina das comunidades do sertão rosiano. “Há um impacto nítido na alimentação da população e também nas mudanças climáticas. São regiões hoje que estão muito mais secas. O solo com mais perdas de nutrientes, claro”, diz a professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Em uma visão diferenciada, contextualiza a pesquisadora, Guimarães Rosa trazia em suas obras uma visão defensora do meio ambiente, de que tudo estava interligado, pessoas e natureza.

O engenheiro florestal Vicente Resende, na mesma linha, considera que, ao mesmo tempo que se degrada o meio ambiente, há uma degradação social. “Não existem duas coisas. Uma prova disso é o êxodo rural. Os mais jovens passam a não ver o futuro por ali. Pergunta para essas crianças se elas sabem o que é uma fruta do cerrado, uma região que tem mais de 40 frutas.” Por outro lado, o secretário municipal de Meio Ambiente de Três Marias (MG), Roberto Carlos Rodrigues, diz que as crianças não dependem mais das frutas da região para se alimentar, já que há outras ofertas de alimentos, e monitoradas por nutricionistas.

A situação atual da natureza na região difere dos registros de Rosa, de 70 anos atrás, que apontavam que nas redondezas via “na árvore: jatobá, jenipapeiro, imbaúbas, ingazeiro, canela e pau d’arco”. Ou quando afirmou, depois do início da viagem, que as culturas estavam atrasadas, ou chamou atenção para o algodoal empoeirado, com os “capulhos já brancos e ainda não abertos”. Na comunidade das Pedras, a professora testemunha que via mais algodoeiros no passado.

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