sexta-feira, 26 de agosto de 2022

"GURIJUBA NÃO VI MAIS": FALTA DE PEIXE AFETA ALIMENTAÇÃO DE COMUNIDADES AMAZÔNICAS

 
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REPORTAGEM
“Gurijuba, não vi mais”: falta de peixe afeta alimentação de comunidades amazônicas
Cícero Pedrosa Neto/Agência Pública
Do litoral aos rios de água doce, moradores da Amazônia apontam que pescaria industrial, desmatamento, hidrelétricas e mudanças climáticas têm diminuído o pescado

24 de agosto de 2022
10:00
Cícero Pedrosa Neto, Fábio Zuker
 ESPECIAL: MICROBOLSAS ALIMENTAÇÃO E MUDANÇAS CLIMÁTICAS
“Tem caboclo que não traz 3 quilos para pagar a gasolina”, desabafa pescador
Pescadores tradicionais se arriscam e fazem dívidas para tentar sobreviver ao avanço da pesca industrial
Desequilíbrio ecológico agravado por mudanças climáticas coloca em risco alimentação da população dependente do peixe
“Duzentos quilos de peixe era na hora. Hoje em dia você leva 2 mil metros de rede, e você não arranja pra comer. Tem caboclo que não traz 3 quilos para pagar a gasolina”, desabafa o pescador Antônio Bispo do Rosário, morador da comunidade do Tamatateua — uma das 43 comunidades que constituem a Reserva Extrativista (Resex) Marítima Caeté-Taperaçu, no nordeste paraense.

A pesca é uma atividade central na região, uma Amazônia marítima cuja paisagem de manguezais, igarapés e praias de água salgada não é exatamente a imagem que se tem em mente quando se pensa na floresta. “Fala-se na Amazônia como se fosse só uma floresta de terra firme”, diz Célia Regina Nunes das Neves. Ela é pescadora, marisqueira, líder comunitária e uma importante articuladora nacional na defesa das práticas tradicionais das comunidades pesqueiras. Célia é moradora da comunidade Umarizal, situada na Resex Marinha Mãe Grande de Curuçá — junto à Resex Marítima Caeté-Taperaçu, os dois territórios fazem parte das 12 reservas extrativistas marinhas do Pará, divididas entre a região do Salgado paraense e Caetés.

A explicação para a falta de peixe, segundo os moradores, é a pesca industrial, que impediria a tradicional de ser desenvolvida como antes. Os pescadores relatam que os barcos de maior porte praticam a pesca de arrasto, com redes de até 30 quilômetros de comprimento que impedem que os peixes cheguem mais próximos à costa.

Cícero Pedrosa Neto/Agência Pública
Pescadores tradicionais apontam que pescaria industrial e mudanças climáticas têm diminuído o pescado
“A causa disso são esses arrastões, porque eles pescam só lá no criador do peixe. Só em abril que eles param porque o Ibama cancela o arrastão. Aí começou de novo em maio e vai até não ter mais nada”, conta Antônio. “Aqueles peixinhos miúdos, assim, morrem tudo. Eles levam só os peixes que servem mesmo para as firmas. O que não serve, eles jogam fora. Isso aí era pra ser proibido, proibido!”, diz. Ou seja, peixes menores ou de espécies com baixo valor comercial, que poderiam servir à alimentação das populações locais, ou mesmo filhotes em fase de crescimento, são simplesmente descartados mortos no mar.

Cícero Pedrosa Neto/Agência Pública
“Fala-se na Amazônia como se fosse só uma floresta de terra firme”, diz Célia Neves, pescadora, marisqueira e líder comunitária da comunidade Umarizal
“Gurijuba, não vi mais: antes tinha, pegava muito. Agora a gente pega umas gurijubinhas no mínimo”, desabafa Antônio. Uma das técnicas tradicionais utilizadas pelos pescadores são os chamados currais, uma espécie de armadilha, um cercadinho, muitas vezes rodeados por redes, feito com estacas de madeira fixadas no fundo para capturar peixes. Célia explica que nos “currais de beira”, que estão mais próximos às comunidades, os peixes “não estão mais chegando”. “Os peixes que nós consumimos, a corvina, já não se vê mais; a gó [conhecida também pelos nomes de pescadinha, pescada-dentão ou mesmo pescada-gó] tá escassa”, relata.

Pescador há 41 anos, Lourival Alves da Silva, da comunidade Tamatateua, aponta outros aspectos que dificultam o trabalho dos pescadores da região: o custo da gasolina e o fato de os pescadores não serem donos dos barcos que utilizam. Com barcos mais simples e frágeis, quando comparados aos da pesca industrial, os pescadores da comunidade expõem-se a riscos em alto-mar, tendo cada vez mais que se afastar da costa, para conseguir competir pelos peixes. Isso faz que muitos precisem buscar barcos mais robustos para avançar mar adentro em busca do peixe. Uma canoa de médio porte chega a custar entre R$ 12 mil e R$ 14 mil. Se a pessoa não tem condições de possuir uma, é obrigada a trabalhar para um patrão que tenha o barco, que fica com metade de tudo o que for pescado.

Cícero Pedrosa Neto/Agência Pública
Lourival da Silva precisa alugar barco para conseguir acessar áreas mais longe da costa, onde ainda há peixe
“O dono dessa canoa [aponta para a canoa em que está sentado], o que vem do mar é rachado no meio, a metade é dele”, explica Lourival. Os pescadores então incorporam a despesa e dividem entre si a outra metade.

Menos peixes no mar. Endividamentos. Poucas chances de sucesso. Riscos crescentes. Mais gastos. Não são poucos os desafios para as comunidades pesqueiras do Salgado Paraense.

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