Boaventura: do colonialismo às novas partilhas
Após cinco séculos, mundo eurocêntrico já nem pode dominar, nem tem o quê ensinar. Outros universos culturais ganharam autoestima. Que diálogos cognitivos são possíveis, em meio à crise civilizatória? Em que bases eles podem se dar?
É difícil imaginar que se partilha uma viagem com alguém que vem na direção oposta. E, contudo, penso que esta estranha partilha é talvez o que melhor caracteriza o nosso tempo, pelo menos no plano cultural. Vindos de histórias e trajetórias muito diferentes, da acumulação de derrotas ou de vitórias multisseculares, diferentes universos culturais – filosóficos, estéticos, políticos, ontológicos, epistemológicos ou éticos – parecem estar hoje mais expostos do que nunca à confrontação com universos rivais, em condições que não permitem gestos unilaterais, seja de assimilação forçada, seja de conquista e ocupação. As desigualdades de poder entre esses universos existem e estão historicamente sedimentadas, mas estão cada vez mais desigualmente distribuídas entre as diferentes áreas da vida coletiva ou entre as diferentes regiões do mundo. As trajetórias opostas convergem num campo de incerteza máxima que produz instabilidade e desassossego. A partilha da incerteza tende a resultar na incerteza da partilha. O universo cultural ocidental eurocêntrico vem de uma longa trajetória de conquistas e vitórias históricas que parece ter chegado ao fim. A Europa passou cinco séculos a dominar e a ensinar o mundo não europeu e acha-se hoje cada vez mais na situação de já não ser capaz de dominar e de não ter nada a ensinar.
O drama do universo cultural que se considera historicamente o vencedor é não querer aprender nada dos universos culturais que se acostumou a derrotar e a ensinar. Por sua vez, os universos culturais não ocidentais, sejam eles orientais (chineses, indianos), islâmicos, africanos ou aborígenes das Américas ou Oceania, vêm de trajetórias de derrotas históricas infligidas pelo universo cultural ocidental, derrotas, porém, muito variadas quanto ao âmbito e duração. Tais universos sofreram diferentes processos de desfiguração, aculturação (ou antes, inculturação ou desculturação), mas sobreviveram, e hoje assumem uma nova confiança, uma nova autoestima e sentido de futuro, de que resulta a percepção de que a derrota acabou. Que tipo de partilha pode esperar-se destas trajetórias que seguem em direções opostas? Será que de algum modo se encontram ou convergem, ou será que vão falhar a possibilidade do encontro e seguir antes no sentido de confrontações de contornos desconhecidos?
Este é um tempo de bifurcações em que os desfasamentos e os conflitos são potencialmente tão destrutivos quanto potencialmente enriquecedores são os encontros e as convergências. A incerteza profunda daqui resultante deriva de quatro condições epocais: interregno, interrupção, transmigração, reflexividade profunda. Com referência ao que Antonio Gramsci escreveu na prisão entre 1929 e 1935, o interregno é uma metáfora temporal que sugere uma temporalidade ambígua, em que a nova sociedade ainda não acabou de nascer e a velha sociedade ainda não acabou de morrer. É um tempo de deformidades políticas, sociais e culturais, enfim, um tempo de monstros. A oscilação instável entre fortalecer o novo e salvar o velho é própria do interregno. A interrupção é uma metáfora espacial que sugere uma ruptura ou fenda na ordem estabelecida, provocando uma suspensão, seja ela política ou filosófica. Essa suspensão pode ser maior ou menor ou mais ou menos duradoura. É a memória de um tempo que em cem anos viveu revoluções profundas, guerras devastadoras, prolongadas lutas de libertação anticolonial. A transmigração é metáfora de um gesto externo que evoca a transitoriedade de relações sociais, de contrastes, de identidades e de constante perturbação de movimentos lineares. É tempo de transculturação, para usar o conceito que o sociólogo cubano, Fernando Ortiz, desenvolveu em 1940 para dar conta das novas sínteses culturais que emergiam nas Caraíbas, provindas de contatos culturais onde se misturavam culturas ibéricas, indianas, chinesas, inglesas e indígenas. Por fim, a reflexividade profunda é metáfora de um gesto interno que implica revisitar a história. No período moderno, sobretudo depois do século XV, revisitar a história é descolonizar a história. É um tempo em que raízes se transformam em opções e em que opções se transformam em raízes. Um tempo em que identidades são identificações e familiaridades são estranhamentos familiares.
Interregno, interrupção, transmigração e reflexividade profunda tornam possível tanto novos tipos de conflitos como novos tipos de encontros, assim gerando contingências e hibridizações insuspeitadas e surpreendentes. Duas características principais explicam o Zeitgeist contemporâneo. A primeira é, por um lado, a natureza apocalíptica de possíveis conflitos: desigualdade social sem precedentes, guerra nuclear, catástrofe ecológica iminente; por outro, o carácter exaltante de possíveis encontros e convergências: Fórum Social Mundial, diálogos interculturais, ecumenismos religiosos. As mesmas transformações sociais e culturais das últimas décadas, que causaram enormes conflitos, desfasamentos e resistências, geraram também condições e oportunidades para encontros e convergências de tipo novo. A segunda característica diz respeito ao investimento político e cultural num questionamento específico do passado, que consiste em revisitar e reavaliar o patrimônio intelectual de antes do período moderno, mais exatamente de antes do colonialismo moderno e das hierarquias e conflitos entre universos culturais por ele gerados, patrimônio que muitas vezes permaneceu apesar de silenciado. Desde o início da expansão colonial europeia, no século XV, o colonialismo moderno foi um processo histórico determinante e violento que causou profundas feridas nas culturas e populações derrotadas, feridas que duram até hoje. Compreende-se que a revisitação e reavaliação do passado moderno ou pré-moderno ocorra sobretudo nos universos culturais que foram derrotados ou humilhados pela modernidade eurocêntrica, mas de igual modo se observa no interior do universo cultural eurocêntrico. A verdade é que, embora de modos diferentes, o colonialismo transformou as tradições culturais europeias tanto quanto transformou os universos culturais que subjugou ou tentou subjugar. Vistas da perspectiva eurocêntrica, tais transformações foram sempre consideradas progressos e enriquecimentos do conhecimento. Hoje (e de fato, desde há algumas décadas), questiona-se tal balanço. Os inquestionáveis progressos constituíram um verdadeiro progresso? De tais enriquecimentos não resultaram também empobrecimentos, tanto para quem foi vencido e oprimido, como para quem venceu e oprimiu? Nas palavras do intelectual tunisino Albert Memmi escritas em 1965:
“A colonização distorce as relações, destrói ou petrifica as instituições, e corrompe os homens, tanto os colonizadores como os colonizados. A fim de viver, o colonizado tem de se desfazer da colonização. Para ser homem, tem de se desfazer do ser colonizado em que se tornou. Se o europeu tem de aniquilar o colonizador dentro de si, o colonizado tem de superar o seu ser colonizado… Tanto para o colonizado como para o colonizador, não há outra saída senão o fim total da colonização.”
Sem perder de vista a existência de opressores e oprimidos, perpetradores e vítimas, o gesto de identificar, confrontar e sanar a ferida colonial, em todo o seu enorme tamanho, implica um certo tipo de movimentos recíprocos. Sem estes, perder-se-á a possibilidade da partilha e do encontro entre universos culturais transitando em direções opostas no mesmo espaço-tempo.
A fim de propiciar a partilha e o encontro, é necessário partir do princípio de que a injustiça social global, causada pelo colonialismo, pelo capitalismo e pelo patriarcado modernos, se baseou num universo epistemológico, ontológico e cultural que sempre se caracterizou por sistemática e arrogantemente ignorar outras culturas, outras formas de ser e de saber, outras ontologias e outras epistemologias. Tudo isto resultou numa enorme perda e num grande desperdício de experiências – a destruição de conhecimento (epistemicídio) que justificou a subjugação e eliminação das populações que viviam à luz dessas culturas, desses saberes e dessas experiências sociais. A injustiça social global não é senão o outro lado da justiça cognitiva global. Esta ignorância sistemática por parte do universo cultural ocidental designo-a eu como ignorância ignorante, para significar que, na maior parte dos casos, uma tal ignorância nunca deu conta de si própria. Simplesmente se parte do princípio de que nada há a conhecer para além daquilo que o universo eurocêntrico sabe, pensa que sabe, ou permite que se saiba.
Em meu entender, a busca da justiça cognitiva não tem nada a ver com qualquer projeto de conhecimento global, completo, supostamente universal ou unificado. O que proponho é o gesto epistêmico a que chamo ignorância esclarecida e epistemologias do sul. Para o conceito de ignorância esclarecida inspiro-me no conceito de docta ignorantia de Nicolau de Cusa, filósofo alemão do século XV, para quem o objetivo último do nosso conhecimento é o de aprofundarmos a consciência do muito que não sabemos. Ancoradas na ignorância esclarecida, as epistemologias do sul visam identificar e validar os saberes nascidos nas lutas contra os três modos principais de dominação eurocêntrica moderna: capitalismo, colonialismo e patriarcado. Tais saberes incluem a ciência moderna, mas também muitos outros modos de conhecer, como saberes vernáculos, populares e insurgentes, ou sabedoria ancestral. Na sabedoria reside o principal limite da ciência. A ciência alimenta-se de quantidades potencialmente infinitas de informação para, a partir delas, produzir conhecimento de enorme causalidade eficiente. Sucede que a ciência só responde a perguntas que se podem formular cientificamente (a circularidade em espiral da ciência). Ora muitas das perguntas que mais nos atormentam hoje e desde sempre não são científicas. Porque estamos aqui? Para onde vamos? Qual o papel dos antepassados no nosso presente? Qual o sentido da vida? O que é a felicidade? Deus existe? E quem somos nós para fazer tal pergunta? Nem sequer a pergunta – qual o sentido de produzir ciência? – pode ser formulada cientificamente. São todas elas perguntas importantes que a ciência ignora ou banaliza. No melhor dos casos, reconhece que estão para além do que pode conhecer. Na ciência abunda em informação e conhecimento o que falta em sabedoria. Não admira, pois, que em tempo de incerteza e de reflexão profunda sobre o futuro da humanidade, se recorra a outros universos culturais caracterizados por outros tipos de informação e de conhecimento que permitem o trânsito para a sabedoria. As epistemologias do sul inserem-se no seu tempo incidindo nesse recurso sem perder de vista o contributo decisivo da ciência moderna para a nossa circunstância existencial, o nosso Zeitgeist, precisamente aquele que nos impele a ir para além da ciência. Para as epistemologias do sul, a ciência moderna é obviamente um conhecimento válido, mas não o único conhecimento válido. Só questionando as raízes epistêmicas da dominação eurocêntrica será possível propiciar a partilha e o encontro que a nossa circunstânciatão urgentemente reclama como a única alternativa ao absoluto e recíproco aniquilamento.
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