O plano de Bolsonaro
O programa de governo do candidato Jair Bolsonaro (PL) está dividido em quatro grandes seções nas quais apresenta valores e princípios do seu governo, fundamentação estratégica, plano de governo e conclusões. Apesar de aspectos relacionados à política externa e relações internacionais aparecerem em vários momentos do texto, é na seção 3.6 “Segurança e Geopolítica” que existe um tópico exclusivo para política externa e defesa nacional.
O plano parte de uma análise da conjuntura internacional em que se destaca a crise inflacionária e energética, especialmente face aos impactos da guerra da Ucrânia e da pandemia, e um cenário no qual as necessidades de desenvolvimento sustentável, em que se conectam preservação do meio ambiente e crescimento econômico, são considerados tendências. O diagnóstico de como o Brasil encontra-se nesse cenário, contudo, é fantasioso. A avaliação exposta no programa é de que tanto as políticas domésticas como as internacionais perseguidas por Bolsonaro no primeiro mandato fortaleceram o Brasil diante desse cenário.
O programa avalia que o perfil internacional do Brasil na defesa de uma política externa baseada no direito internacional, na atuação em organizações internacionais, com vocação universalista e capacidade de projetar o país com base em ativos como a democracia, o agronegócio, a produção de alimentos, a matriz energética limpa e as riquezas naturais foram bem-sucedidas. Ignora-se que a realidade da atuação internacional do Brasil tenha sido marcada, nos últimos anos, pelo desgaste de imagem externa do país devido a violações ambientais e no campo dos direitos humanos, bem como pelas ameaças à democracia patrocinadas por Bolsonaro, e pela volta da fome.
Para os próximos anos, as ideias sobre política externa e relações internacionais, conforme expostas no documento, propõem políticas de orientação neoliberal, mas que são contraditórias com outros compromissos assumidos no programa. Vejamos. O primeiro ponto a se destacar é o foco na aproximação do Brasil com países capitalistas desenvolvidos. Apesar de se falar na defesa da multipolaridade e da busca em manter o máximo de parceiros possíveis ao país de forma pragmática, o principal objetivo da política externa é a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e na Área de Livre Comércio Europeia (EFTA), dois espaços integrados e dirigidos por Estados imperialistas. Pressupõe-se então que ou há uma percepção de que Brasil faça parte desse grupo de Estados, ou aceita-se uma posição subalterna em relação aos mesmos.
Ressalta-se no documento, ainda, uma visão pouco crítica da ordem internacional. Mesmo quando se coloca em destaque a atuação do país em Organizações Internacionais (como a ONU) e outros grupos como G20 e BRICS, não se evidencia que a ação histórica do Estado foi muitas vezes crítica às assimetrias de poder do sistema internacional. No plano de Bolsonaro, estas atuações são destacadas apenas como fato de conformidade do Brasil com a ordem externa, que aparece no documento como uma realidade dada, à qual o Estado brasileiro deve se submeter, perseguindo políticas – e pagando os custos – com vistas a melhorar sua posição. O documento não atribui papel de importância à relação do Brasil com os Estados dependentes.
O programa reforça como positivo o fato de que a incorporação do Brasil à OCDE está ligada à adoção de novas práticas e condutas internas. Isto é: as reformas neoliberais. O que inclui, além do aprimoramento do sistema previdenciário, uma reforma administrativa e do sistema tributário, um plano de desestatizações e desinvestimentos de empresas estatais. De tal modo, o programa de desenvolvimento mostra preocupação com as credenciais externas do país, vislumbrando a aceitação do Brasil na OCDE como sinal de legitimidade do governo. A continuidade de políticas liberalizantes com a proposta de “deixar a cargo do Estado somente aquilo que ele pode realizar” “concentrando seus esforços em exercer sua função estabilizadora por meio de ações imediatas”, pressupõe que o plano de desenvolvimento nacional está ligado à atração de investimento externo, especialmente para a área de infraestrutura visando a melhoria do transporte de commodities, e o fortalecimento do agronegócio e da mineração, destacando a possibilidade de o Brasil se tornar também um exportador de energia, mas sem perspectivas para a superação do papel agrário exportador que o país assumiu nas últimas décadas.
Uma contradição que aparece no programa é com relação às propostas voltadas para Direitos Humanos e Meio Ambiente. Ambos os temas são caros para a conformidade do Brasil com instituições internacionais – algo que o plano parece considerar importante –, no caso da OCDE, por exemplo, a temática ambiental é relevante. É sabido também que as políticas adotadas pelo Brasil nesse setor têm gerado críticas dos Estados Unidos e da União Europeia. Deve-se dizer que considerando o que está escrito, há compromisso no programa com a sustentabilidade e a respeito de minorias (citam-se indígenas, quilombolas e mulheres, não se fala em outras minorias como LGBTQIAPN+), contudo a realidade das políticas nos últimos anos fala mais alto do que as propostas do plano de governo, apontando-se então para um paradoxo que pode inviabilizar a conformidade internacional que Bolsonaro quer vender como solução para os problemas domésticos.
O segundo eixo a partir do qual é possível ler as propostas de política externa de Bolsonaro é o campo dos valores, no qual há uma contradição entre, de um lado, o compromisso assumido por uma vocação universalista e pragmática e, de outro, o foco em fundamentar as relações externas em valores que são excludentes a vários países, inclusive a China, principal parceira comercial do Brasil. O programa deixa claro que o Brasil privilegiará o desenvolvimento de relações com países capitalistas desenvolvidos que possuem valores semelhantes ao país: “Para o próximo mandato, será buscada interação ainda maior com países que defendam e respeitem valores que são caros aos brasileiros e se encaixem no ambiente democrático, como eleições livres e transparentes; liberdade de associação; de opinião e de imprensa; segurança jurídica; igualdade e respeito aos poderes constituídos e sua independência constitucional”. De forma contraditória, contudo, há de se apontar que nos últimos anos, Bolsonaro, isolado após a eleição de Joe Biden, colocou o Brasil em alianças com países conservadores, entre os quais vários que desrespeitam os valores assumidos por ele como importantes.
No documento, aparece ainda uma menção ao Oriente quando se afirma que é o fato de “a população do Oriente estar saindo da miséria” que está “pressionando o crescimento e os custos no Ocidente”, o que indica, de um lado, que há um pensamento que divide o mundo entre Ocidente e Oriente, e coloca o Brasil naquele espectro e, de outro, que o Oriente é visto de forma desatualizada de suas potencialidades, ainda pela ótica da pobreza, contribuindo para a visão – clara no documento – de que o Brasil deve focar suas relações externas em aliados ocidentais e em países desenvolvidos.
O terceiro eixo das propostas de política externa de Bolsonaro diz respeito à defesa nacional. De forma mais ampla, o texto chama atenção para o risco de o Brasil ficar dependente de certos recursos essenciais, o que deve ser evitado. Citam-se as dificuldades que se passou durante a pandemia, com a carência de insumos, equipamentos, etc., necessários para o sistema de saúde, e a carência de fertilizantes no contexto da guerra da Ucrânia. Assume-se que é necessário que o país estude o que é estratégico e promova um plano para diminuir a dependência daquilo que dessa forma for considerado. Contudo, o único setor para o qual o documento coloca propostas é para o desenvolvimento de uma Base Industrial da Defesa, o que evidencia uma estratégia de soberania calcada em uma política de defesa ativa, com aumentos em investimentos militares, especialmente em salários e remuneração das forças armadas, e na busca pelo envolvimento desses setores na segurança doméstica (o que, inclusive, é uma clara ameaça à democracia). O plano assume ainda que o desenvolvimento da indústria da defesa deve ter papel na mediação da relação do Brasil com outros países, através da troca e aquisição de conhecimentos, e também que a participação do Brasil na OCDE deve facilitar acordos.
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