quinta-feira, 8 de setembro de 2022

 

Programa de emergência para a soberania digital

Em carta aberta a Lula, pesquisadores, intelectuais e ativistas digitais apontam: ciência e inteligência coletiva do país não podem continuar reféns das Big Techs. Documento propõe nove ações para um ecossistema tecnológico nacional robusto

Se o governo Bolsonaro persistir, por óbvio, a marcha de destruição sobre a ciência e a tecnologia continuará. Mas, mesmo com uma possível vitória progressista, os desafios são imensos. Não só vai ser preciso reconstruir muito, como o momento é de ataque das Big Techs contra as estruturas dos Estados. A Europa fala abertamente em regular e investir para garantir sua soberania digital. A China já faz isso há anos.

Entendendo o tamanho desses desafios, um grupo de professores, pesquisadores, intelectuais e ativistas escreveu uma carta dirigida ao líder nas pesquisas pelo campo da esquerda, Lula. No documento, consta um diagnóstico do quadro atual, os desafios futuros e algumas propostas pontuais a serem implementadas em caráter emergencial. No horizonte está tirar o Brasil do atual papel subalterno, restabelecendo seu papel de líder regional na adoção de políticas de tecnologia da informação que busquem pela justiça social. Leia o documento, que está aberto para novas assinaturas aqui.

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AO CANDIDATO LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA: PROGRAMA DE EMERGÊNCIA PARA A SOBERANIA DIGITAL

As tecnologias digitais não podem servir para ampliar as desigualdades e a dependência do país ao grande capital internacional.

Nosso país não pode continuar tendo seu rumo tecnológico ditado pelas consultorias internacionais ligadas às Big Techs. As lutas no campo do desenvolvimento científico e digital não podem se resumir à mera garantia de alguns poucos direitos, “gentilmente” ofertados por plataformas e grandes empresas tecnológicas que se tornam a cada dia mais poderosas. A concentração das ofertas de tecnologia por empresas transnacionais cria uma relação de dependência que reduz a diversidade do mercado e limita as ofertas produzidas no Brasil.

Dados sensíveis e de grande valor econômico de diversos segmentos da nossa população não podem continuar sendo extraídos do país para alimentar os sistemas algorítmicos das grandes plataformas digitais, que os utilizam para nos vender produtos e serviços em condições assimétricas e abusivas. Na raiz dos arranjos de vigilância e coleta de dados, que guiam o modelo de negócio das grandes plataformas internacionais de tecnologia, estão processos de extração de conhecimentos e informações, os quais acentuam e potencializam relações de exploração do trabalho e de contratos comerciais.

Nossas universidades, e muitas escolas, entregaram suas estruturas de informação, dados, e-mails, armazenamento de interações e documentos para empresas estrangeiras, que vivem do tratamento de dados. Este cenário é um reflexo mais imediato do desinvestimento na infraestrutura e em recursos humanos na área de tecnologia de informação, gerando um cenário de dependência crescente de corporações estrangeiras no setor. Assim, o que se entende como redução de custos na utilização de serviços, mascara funestas consequências a médio e longo prazos. O conhecimento e as informações produzida pelos cientistas brasileiros hoje correm pelas veias fechadas que irrigam o coração das empresas de tecnologia do Vale do Silício, colocando em grande risco a produção científica e o ecossistema tecnológico do país.

É preciso romper com a crença neoliberal de que não importa mais ser desenvolvedor e inventor de tecnologias, de que o importante é ser um bom comprador de serviços e produtos. Cabe ao Brasil se inserir internacionalmente de maneira soberana, desenvolvendo de forma plena as capacidades e as potencialidades de sua população. A agenda de transformação digital brasileira precisa ser orientada ao bem-estar e ao florescimento humano de seus cidadãos, assim como ao enfrentamento da desigualdade, do racismo algorítmico e dos novos meios de segregação.

Não podemos nos contentar com o bloqueio tecnocientífico de nossas capacidades criativas. Temos que colocar no centro de nossa proposta a expansão da tecnodiversidade, da luta contra o epistemicídio, do desbloqueio da inventividade de nosso povo.

Temos consciência da profunda crise que assola o país e dos desafios orçamentários diante da política de terra arrasada implementada pelo governo atual.

Por isso, propomos algumas poucas, mas imprescindíveis medidas que atuem nesse cenário, com o efeito de energizar e potencializar nossos arranjos tecnocientíficos voltados ao digital:

1- Criar uma infraestrutura federada para a hospedagem dos dados das universidades e centros de pesquisa brasileiros conforme nossa LGPD.

2- Formar, nessa infraestrutura federada, frameworks para soluções de Inteligência Artificial, seja para o setor público ou privado.

3- Incentivar e financiar a criação de datacenters que envolvam governos estaduais, municípios, universidades públicas e organizações não-governamentais, que permitam manter dados em nosso território e aplicar soluções IA que estimulem e beneficiem a inteligência coletiva local e regional.

4- Promover a instalação, no MCTI, de equipes multidisciplinares para a prospecção de tecnologias e experimentos tendo como princípios a tecnodiversidade e em busca de promover avanços em áreas estratégicas ao desenvolvimento nacional. Em articulação com o MEC, promover também a formação de recursos humanos criando mecanismos para que permaneçam no setor público de maneira a nos afastar da dependência das grandes corporações.

5- Incentivar e financiar a criação de arranjos tecnológicos locais para desenvolver soluções que visem superar a precarização do trabalho trazidas pelas Big Techs.

6- Garantir recursos para apoiar e financiar a criação de cooperativas de trabalhadores, que possam desenvolver e controlar plataformas digitais de prestação de serviços, assim como outros arranjos que evitem a concentração de poder tecnológico, tanto em empresas estrangeiras como nacionais.

7 – Lançar um extenso programa interdisciplinar de formação, inclusive ética, e de permanência de cientistas e técnicos, implantando e financiando centros de desenvolvimento para a criação e desenvolvimento de soluções de IA, de automação, robótica, computação quântica, desenvolvimento local de chips, redes de comunicação de alta velocidade entre outros.

8 – Utilizar o poder de compra da União para incentivar o atendimento das necessidades tecnológicas do país, bem como fomentar soluções interoperáveis com software livre, e outras formas abertas de desenvolvimento e compartilhamento de tecnologia.

9 – Resgatar e recuperar a Telebras, organizando um levantamento dos bens reversíveis que estão subvalorizados e em poder das teles e implementando uma política de redução das assimetrias e desigualdades digitais. Esta pode ser feita em parcerias de modo coordenado com estados, municípios e organizações não-governamentais, com tecnologias consolidadas mas também desenvolvendo opções de conexão inovadoras.

POR QUE DEFENDEMOS ISSO?

A extração de dados do país gera perdas econômicas que poderiam ser evitadas. Segundo relatório da consultoria RTI chamado The Impact of Facebook’s U.S. Data Center Fleet 2017–2019, para cada US$ 1 milhão em despesas de capital em data centers foram gerados US$ 954 mil adicionais em massa salarial (labor income) e US$ 1,4 milhão em PIB. Além disso, para cada US$ 1 milhão em despesas operacionais em data centers, a economia norte-americana registrou US$ 1,3 milhão adicionais na massa salarial e US$ 2,2 milhões em PIB. É perceptível que a extração de dados da sociedade brasileira drena a base de negócios para fora do país, desprepara nossas infraestruturas digitais e enfraquece as possibilidades de treinamento de modelos de aprendizado de máquina controlados por empreendedores e organizações brasileiras.

Atualmente, segundo pesquisa do Observatório Educação Vigiada, 79% das Instituições Públicas de Ensino Superior do país têm seus e-mails institucionais alocados em servidores privados, localizados fora do país, e que são gerenciados por empresas envolvidas no lucrativo mercado de coleta, análise e comercialização de dados pessoais. A Google (Alphabet, Inc.), o maior player desse mercado, armazena 72% dos e-mails institucionais das universidades públicas do país.

Nós acreditamos que esse cenário aponta para uma situação de extrema vulnerabilidade em relação à segurança da produção científica e tecnológica do Brasil. A maior parte das comunicações acadêmicas e de pesquisa produzidas nas instituições públicas brasileiras estão em data centers fora de seu controle institucional, boa parte nos Estados Unidos da América, alimentando um sistema de inteligência e lucros a partir de análise de dados que fragilizam nossa soberania e a própria autonomia universitária.

Assinam

Sergio Amadeu da Silveira – UFABC

Rafael Evangelista – Unicamp

Leonardo Ribeiro da Cruz – UFPA

Jerônimo Pellegrini – UFABC

Marta M. Kanashiro – Unicamp

Nelson De Luca Pretto – UFBA

Marcos Dantas – UFRJ

Daniel Miranda Machado – UFABC

Eduardo Guéron – UFABC

Bruno de Vasconcelos Cardoso – UFRJ

Henrique Parra – Unifesp

Rodolfo Avelino – INSPER

Tarcízio Silva – UFABC

Fernanda Bruno – UFRJ

Rodrigo Firmino – PUCPR

Filipe Saraiva – UFPA

Carlos Vogt – Unicamp (ex-reitor e ex-presidente da Fapesp)

Alcides Peron – Unicamp

Letícia Cesarino – UFSC

Diego Vicentin – Unicamp

Miguel Said Vieira – UFABC

Paulo Meirelles – UFABC

Tel Amiel – UnB

Carolina Cantarino – Unicamp

Marcelo Buzato – Unicamp

Flávia Lefèvre Guimarães – Coalização Direitos na Rede

Daniel Queiroz – UFRGS

André Lemos – UFBA

Edmea Santos – UFRRJ

Lynn Alves – UFBA

Laymert Garcia dos Santos – Unicamp

Claudete Alves – UFBA

Ivana Bentes – UFRJ

Débora Abdala – UFBA

Vinicius Ramos – UFSC

Fábio Malini – UFES

Laís Silveira Fraga – Unicamp

Maria Helena Bonilla – UFBA

Anna Bentes (LAVITS)

Mauro Cavalcante Pequeno – UFCE

Alessandra dos Santos Penha – UFSCar

Janaína do Rozário Diniz – UEMG

Henrique Antoun – UFRJ

Douglas Esteves – Laboratório Hacker de Campinas

Andrea Lapa – UFSC

Beá Tibiriçá – Coletivo Digital

Wilken Sanches – Coletivo Digital

Joyce Souza – UFABC

Amanda Yumi Ambriola Oku – Garoa Hacker Clube

Paulo José Lara – Lavits

Jader Gama – FUNBOSQUE/Pará

Aracele Lima Torres – Unifesp

André Filipe de Assunção e Brito – Ativista

Simone Lucena – UFS

Rafael Grohmann – UNISINOS

Alexandre Costa Barbosa – Núcleo de Tecnologia do MTST

Renata Gusmão – Tecnocríticas

Brenda Cunha – CDR

Messias Guimarães Bandeira – UFBA e Digitalia

Lula Pinto – Unicap

Sarita Albagli – IBICT

Gisele da Silva Craveiro – USP

Karina Menezes – UFBA

Rafael H. Bordini – PUCRS

Maria Helena Silveira Bonilla – UFBA

Bia Barbosa – representante do 3o setor no CGI.br

Marcos Vinicius Ferreira Mazoni – FGV

João Cassino – BB Tecnologia e Serviços

Jonas Valente – Oxford Internet Institute

Ewout ter Haar – USP

Andrea Harada – Sinpro Guarulhos

Salete Noro – UFBA

Priscila Gonsales – Iniciativa Educação Aberta – Instituto Educadigital

Bruna Mendes – UFABC

Eugenio Trivinho – PUC-SP

Diego Vergaças de Sousa Carvalho – Núcleo de Tecnologia do MTST

Deivi Lopes Kuhn – Calango Hacker Clube

Alan Freihof Tygel – Cooperativa EITA

Daniel Tygel – Cooperativa EITA

Rosana Kirsch – Cooperativa EITA

Lucas Lago – Cooperativa EITA

Fábio Piovam – Cooperativa EITA

Victor Ferreira – Cooperativa EITA

Alessandra Silveira – Cooperativa EITA

Bianca Rubim – Cooperativa EITA

Giovani Hober Ghiggi – Cooperativa EITA

Camilla de Godoi Pacheco – Cooperativa EITA

Pedro Henrique Gomes Jatobá – Cooperativa EITA

Leonardo Lazarte – Inn (aposentado)

Marijane Vieira Lisboa – PUCSP

Alexandre Garcia Aguado – IFSP

Nelson Lago – USP

Geisa Santos Silva – Coletivo Periféricas

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