quinta-feira, 8 de setembro de 2022

 

Notas baixas sem explicação

outrasmidias

por: the intercpt Brasil

O motorista Marcondes Junior, de Recife, Pernambuco, trabalhou como Uber por um ano. Em 2018, ele foi notificado por e-mail sobre “o fim da parceria”. O motivo: sua nota. De acordo com o Código da Comunidade Uber, cada cidade tem uma avaliação média mínima. Usuários e motoristas parceiros que não se mantenham acima dela podem perder o acesso à plataforma (e, consequentemente, ao seu ganha-pão). Marcondes Junior atribui a baixa pontuação a problemas na hora do pagamento e a sua cor de pele.

O sistema de ranqueamento é feito de motoristas para passageiros e vice-versa. Ambos podem ser avaliados anonimamente em notas que variam de 1 a 5. A nota é calculada com uma média das avaliações, e motoristas e passageiros mal avaliados podem ser banidos da plataforma. Os motoristas melhor avaliados podem ter benefícios, como bônus financeiros.

Sem volta: e-mail em que a empresa comunicou o desligamento de Junior da plataforma.

Na minha pesquisa, no entanto, constatei que entre motoristas e passageiros negros as notas baixas sem explicação são comuns. São vários os casos de usuários e motoristas que recebem notas baixas, mesmo com comportamentos de acordo com os esperados no Código de Conduta estabelecido internamente pela empresa.

Augusto, usuário da Uber que se autodeclara negro, por exemplo, não concorda com a sua nota no aplicativo: 4,75. “Pego Uber todo dia. Sou educado com os motoristas e não vejo comportamento para uma nota baixa”, diz ele. Pela média de avaliações, é possível perceber que Augusto recebeu algumas avaliações negativas de motoristas.

Notas entre 5 e 4,8 são consideradas boas. A nota 4,7 é mediana. Abaixo de 4,6, a nota é considerada baixa – e pode motivar expulsão. O objetivo, para a empresa, é “fomentar o respeito mútuo e melhorar cada vez mais as experiências de todos os envolvidos na plataforma”.

O sistema, no entanto, pode reproduzir a dinâmica do racismo estrutural – e aplicá-la a uma lógica de punição dentro da plataforma. Pedro, também negro e usuário da Uber, afirma acreditar que critérios como gênero e raça interferem diretamente nas notas: “Percebo isso em comparação com as notas de amigos próximos”. A nota dele é 4,72.

A Uber afirma não ter em suas métricas variáveis de raça e gênero para avaliações negativas, pois não questiona a origem étnica dos motoristas. Mas, para Bianca Kremer, professora, pesquisadora e ativista de direitos digitais da população negra no Brasil, o sistema de avaliação da empresa para a população negra é uma forma de reforçar o ideário social racista, e ele apresenta vieses discriminatórios. Na sua perspectiva, a população negra é mais marginalizada na Uber por conta dos estereótipos, já que a pontuação é abstrata e subjetiva de quem está avaliando.

“Se não houver cuidado com uma ferramenta que avalia a qualidade de serviço, se abre um leque de possibilidades para que o subjetivo e imaginário racista que permeia as relações sociais no Brasil sejam reforçados no uso da ferramenta de avaliação. E, assim, as notas podem reproduzir esses ideários”, enfatiza Kremer.

Denise Carvalho, pesquisadora em Estudos da Mídia e membro do Grupo de Pesquisa Laboratório de Identidade Digital e Diversidade da UFRJ, diz que as tecnologias “podem perpetuar estruturas ideológicas e de subjugação de gênero, raça, classe e território”.

A pesquisadora também evidenciou que o sistema de avaliação e classificação de indivíduos, como o usado pela Uber, pode reproduzir exclusões, assimetrias e desigualdades em relação aos indivíduos que não se encaixam no perfil lido como compatível com uma avaliação positiva; nesse caso, as pessoas negras.

Assim, pessoas de grupos que são historicamente excluídos socialmente podem deixar de ter acesso a bens específicos – a crédito, por exemplo e, no caso da Uber, ser banido do aplicativo e perder sua fonte de renda. Carvalho diz que é preciso treinar os profissionais envolvidos no tratamento desses dados – muitos deles sensíveis – para que os envolvidos estejam cientes do impacto social que eles podem causar. Assim, podem evitar que essas tecnologias reproduzam opressões.

Para o motorista Marcondes Junior, a empresa deveria aplicar treinamentos e dar uma chance para os motoristas melhorarem suas notas. “Tem pessoas que dependem disso para sobreviver. Me sinto muito mal, como se tivesse cometido um crime. A Uber nunca me deu a oportunidade de voltar”, afirmou.

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Ilustração: Gustavo Magalhães para o Intercept Brasil

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