Os bilionários e seus bunkers para o apocalipse
Convidado a conhecer abrigos do fim do mundo, escritor conta o que viu. Blindados subterrâneos com piscinas de luxo. Medo de hordas famintas e dos seguranças. A busca da fuga espacial. O colapso civilizatório como videogame
Por Douglas Rushkoff, no The Guardian | Tradução: Maurício Ayer
Este é um trecho, editado pelo The Guardian, do novo livro de Douglas Rushkoff: Survival of the Richest, publicado neste ano pela Editora Scribe
Como humanista que escreve sobre o impacto da tecnologia digital em nossas vidas, muitas vezes sou confundido com um futurista. As pessoas mais interessadas em me contratar para ouvir minhas opiniões sobre tecnologia geralmente estão menos preocupadas em construir ferramentas que ajudem todos a viver uma vida melhor no presente do que em identificar qual será o Próximo Grande Segredo que ajudará a dominá-los no futuro. Não costumo responder aos seus questionamentos. Por que ajudar esses caras a arruinar o que resta da internet, ou ainda da civilização?
Mas às vezes uma combinação de curiosidade mórbida com um bom dinheiro vivo é suficiente para me colocar em um palco de frente para uma elite da tecnologia, situação em que tento falar sobre como os negócios deles estão afetando nossas vidas aqui no mundo real. Foi assim que me peguei aceitando um convite para me dirigir a um grupo misteriosamente descrito como “stakeholders ultra-ricos”, no meio do deserto.
Uma limusine estava me esperando no aeroporto. Quando o sol começou a descer no horizonte, percebi que estava no carro há três horas. Que tipo de ricaço especulador de fundos de hedge viajaria de carro até um lugar tão distante do aeroporto para uma conferência? Foi aí que eu vi: em uma via paralela, ao lado da rodovia, como se estivesse correndo contra nós, um jatinho acabava de pousar em um aeródromo particular. Claro.
Na manhã seguinte, dois homens vestindo uniformes de lã da Patagônia vieram me buscar em um carrinho de golfe e me transportaram através de rochas e arbustos até um salão de reuniões. Eles me deixaram ali a tomar um café, imaginei que aquele lugar seria uma espécie de sala de preparação. Mas em vez de ser conectado com um microfone ou levado a um palco, meu público foi trazido até mim. Eles se sentaram ao redor da mesa e se apresentaram: cinco caras super-ricos – sim, todos homens – do alto escalão do mundo dos investimentos em tecnologia e fundos de hedge. Pelo menos dois deles eram bilionários. Depois de um pouco de conversa, percebi que eles não tinham nenhum interesse no discurso que eu havia preparado sobre o futuro da tecnologia. Vieram fazer perguntas.
Eles começaram de forma bastante inócua e previsível. Bitcoin ou ethereum? Realidade virtual ou realidade aumentada? Quem conquistará a computação quântica primeiro, China ou Google? Finalmente, entraram em seu verdadeiro tema de preocupação: Nova Zelândia ou Alasca? Qual região seria menos afetada pela próxima crise climática? A partir daí, só piorou. Qual era a maior ameaça: aquecimento global ou guerra biológica? Quanto tempo se deve planejar para poder sobreviver sem ajuda externa? Um abrigo deve ter seu próprio suprimento de ar? Qual era a probabilidade de contaminação das águas subterrâneas? Por fim, o CEO de uma corretora explicou que estava quase terminando de construir seu próprio sistema de bunker subterrâneo e perguntou: “Como mantenho a autoridade sobre minha força de segurança após o evento?”. O evento. Esse era o eufemismo deles para o colapso ambiental, sublevação social, explosão nuclear, tempestade solar, vírus irrefreável ou um ataque hacker malicioso que derrube tudo.
Esta última pergunta, sozinha, nos ocupou pelo resto do tempo. Eles sabiam que precisariam de guardas armados para proteger seus complexos de invasores ou de multidões enfurecidas. Um deles já havia garantido uma dúzia de Navy SEALs [soldados da Marinha estadunidense treinados para agir no mar, ar e terra] para correr até o complexo ao receber a senha certa. Mas como ele pagaria os guardas quando mesmo a sua criptomoeda não tiver mais nenhum valor? O que impediria os guardas de decidir escolher seu próprio líder?
Os bilionários consideraram usar, no suprimento de alimentos, fechaduras cuja combinação especial só eles conheçam. Ou obrigar os guardas usar algum tipo de coleiras disciplinares em troca de sua sobrevivência. Ou talvez construir robôs para servir como guardas e trabalhadores – se essa tecnologia puder ser desenvolvida “a tempo”.
Tentei raciocinar com eles. Fiz uma defesa pró-social de que parceria e solidariedade são as melhores abordagens para nossos desafios coletivos de longo prazo. A maneira de fazer seus guardas demonstrarem lealdade no futuro era tratá-los como amigos agora, expliquei. Não invista apenas em munições e cercas elétricas, invista em pessoas e relacionamentos. Eles reviraram os olhos, aquilo deve ter soado para eles como filosofia hippie.
Este era provavelmente o grupo mais rico e poderoso que eu já havia encontrado. No entanto, aqui estavam eles, pedindo conselhos a um teórico marxista da mídia sobre onde e como configurar seus bunkers apocalípticos. Foi aí que me ocorreu: pelo menos no que dizia respeito a esses senhores, esta era efetivamente uma conversa sobre o futuro da tecnologia.
Seguindo as sugestões do fundador da Tesla, Elon Musk, colonizar Marte, de Peter Thiel, da Palantir, reverter o processo de envelhecimento, ou dos desenvolvedores de inteligência artificial Sam Altman e Ray Kurzweil, carregar suas mentes em supercomputadores, eles estavam se preparando para um futuro digital que tinha pouco a ver com tornar o mundo um lugar melhor e tudo a ver com a possibilidade de transcender por completo a condição humana. Sua extrema riqueza e privilégio serviram apenas para torná-los obcecados por isolar-se do perigo real e presente das mudanças climáticas, elevação do nível do mar, migrações em massa, pandemias globais, pânico nativista e esgotamento de recursos. Para eles, o futuro da tecnologia é apenas uma coisa: escapar do resto de nós.
São esses homens que encheram o mundo com planos de negócios loucamente otimistas sobre como a tecnologia pode beneficiar a sociedade humana. Agora eles reduziram o progresso tecnológico a um videogame em que um deles ganha se encontrar a escotilha de fuga. Será Jeff Bezos migrando para o espaço, Thiel para seu complexo na Nova Zelândia ou Mark Zuckerberg para seu metaverso virtual? E esses bilionários catastrofistas são supostamente os vencedores da economia digital – os supostos campeões do ambiente de negócios do tipo sobrevive-o-mais-apto que, para começar, é o que está alimentando a maior parte dessa especulação.
O que percebi foi que esses homens são realmente os perdedores. Os bilionários que me convidaram ao deserto para avaliar suas estratégias de bunker não são os vencedores do jogo econômico, tal como as vítimas de suas regras perversamente limitadas. Mais do que tudo, eles sucumbiram a uma mentalidade em que “vencer” significa ganhar dinheiro suficiente para se isolar dos danos que eles causam ao ganhar dinheiro justamente dessa maneira. É como se eles quisessem construir um carro que fosse rápido o suficiente para escapar de seu próprio escapamento.
No entanto, esse escapismo do Vale do Silício – vamos chamá-lo de A Mentalidade (The Mindset) – incentiva seus adeptos a acreditar que os vencedores podem de alguma forma deixar o resto de nós para trás.
Nunca antes os atores mais poderosos de nossa sociedade presumiram que o principal impacto de suas próprias conquistas seria tornar o próprio mundo inabitável para todos os outros. Eles também nunca tiveram as tecnologias para programar as sensibilidades no próprio tecido de nossa sociedade. O ambiente está vivo com algoritmos e inteligências encorajando ativamente essas perspectivas egoístas e isolacionistas. Os que são sociopatas o bastante para aderir são recompensados com dinheiro e controle sobre o resto de nós. É um ciclo de estímulo de auto-reforço. Isso é novo.
Amplificada pelas tecnologias digitais e pela desigualdade de riqueza sem precedentes que elas proporcionam, a Mentalidade permite a fácil externalização dos danos causados aos outros e inspira um anseio correspondente por transcender e se separar das pessoas e lugares que foram violentados.
Em vez de apenas nos dominar para sempre, no entanto, os bilionários no topo dessas pirâmides virtuais buscam ativamente o fim do jogo. De fato, como o enredo de um blockbuster da Marvel, a própria estrutura da Mentalidade requer um fim de jogo. Tudo deve se resolver em uma alternativa de zero ou um, vencedor ou perdedor, salvo ou condenado. As catástrofes reais e iminentes, da emergência climática às migrações em massa, dão suporte a essa mitologia, oferecendo a esses pretensos super-heróis a oportunidade de jogar a etapa final do jogo durante suas próprias vidas. Pois a Mentalidade também inclui uma certeza baseada na fé do Vale do Silício de que eles podem desenvolver uma tecnologia que de alguma forma quebrará as leis da física, da economia e da moralidade para oferecer a eles algo ainda melhor do que uma maneira de salvar o mundo: um meio de escapar do apocalipse de sua própria autoria.
***
Quando embarquei no meu voo de volta para Nova York, minha mente ficou às voltas com as implicações da Mentalidade. Quais eram seus princípios? Quem eram seus verdadeiros crentes? O que devemos fazer, se é que podemos fazer algo, para resistir a isso? Antes mesmo de pousar, publiquei um artigo sobre meu estranho encontro – com um efeito surpreendente.
Quase imediatamente, comecei a receber perguntas de empresas que atendem os bilionários que se preparam para o apocalipse, todos na esperança de que eu levasse algumas propostas em nome deles aos cinco homens sobre os quais eu havia escrito. Recebi mensagens de um corretor de imóveis especializado em propriedades à prova de desastres, uma empresa que faz reservas para seu terceiro projeto de moradias subterrâneas e uma empresa de segurança que oferece várias formas de “gestão de risco”.
Mas a mensagem que chamou minha atenção veio de um ex-presidente da Câmara de Comércio Americana na Letônia. J.C. Cole testemunhou a queda do império soviético, bem como o que foi necessário para reconstruir uma sociedade trabalhadora quase do zero. Ele também foi locador de imóveis das embaixadas dos EUA e da União Europeia e aprendeu muito sobre sistemas de segurança e planos de evacuação. “Você certamente despertou um enxame de abelhas”, começou ele no primeiro e-mail que me enviou. “É bastante preciso – os ricos escondidos em seus bunkers terão um problema com suas equipes de segurança… Eu acredito que você está correto com seus conselhos de ‘tratar essas pessoas muito bem, agora mesmo’, mas também o conceito pode ser expandido e acredito que existe um sistema melhor que daria resultados muito melhores.”
Ele tinha certeza de que o “evento” – um “cisne cinza” ou uma catástrofe previsível desencadeada por nossos inimigos, a Mãe Natureza, ou apenas por acidente – era inevitável. Ele havia feito uma análise SWOT – pontos fortes, pontos fracos, oportunidades e ameaças – e concluiu que a preparação para a calamidade exigia que tomássemos as mesmas medidas que tentamos evitar. “Aliás”, explicou ele, “estou montando uma série de fazendas de refúgio seguro na área de Nova York. Elas são projetadas para melhor lidar com um ‘evento’ e também beneficiar a sociedade como fazendas semi-orgânicas. Ambas a três horas de carro da cidade – perto o suficiente para se chegar lá quando acontecer.”
Ali estava um “preparador” com habilitação em segurança, experiência de campo e conhecimento em sustentabilidade alimentar. Ele acreditava que a melhor maneira de lidar com o desastre iminente era mudar a maneira como hoje tratamos uns aos outros, a economia e o planeta – enquanto também desenvolvemos uma rede de comunidades agrícolas residenciais secretas e totalmente autossuficientes para milionários, guardadas por Navy SEALs armados até os dentes.
J.C. está atualmente desenvolvendo duas fazendas como parte de seu projeto de refúgio seguro. A fazenda um, nos arredores de Princeton, é seu modelo que pode ser visitado e “funciona bem enquanto a linha fina azul estiver funcionando”. O segundo, em algum lugar de Poconos, deve permanecer em segredo. “Quanto menos pessoas conhecerem os locais, melhor”, explicou ele, junto com um link para o episódio de Twilight Zone em que vizinhos em pânico invadem o abrigo antiaéreo de uma família durante um susto nuclear. “O principal valor do porto seguro é a segurança operacional, apelidada de OpSec pelos militares. Se/quando a cadeia de suprimentos quebrar, as pessoas não receberão sua comida. A Covid-19 nos deu o alerta quando as pessoas começaram a brigar por papel higiênico. Quando se tratar de escassez de alimentos, será cruel. É por isso que os que são inteligentes o bastante para investir têm que ser discretos.”
J.C. me convidou para ir a Nova Jersey para ver a coisa de perto. “Use botas”, disse ele. “O chão ainda está molhado.” Então ele perguntou: “Você sabe atirar?”
***
A própria fazenda servia como centro equestre e centro de treinamento tático, além de abrigar criação de cabras e galinhas. J.C. me mostrou como segurar e atirar com uma Glock em uma série de alvos ao ar livre em forma de bandidos, enquanto ele resmungava sobre como a senadora Dianne Feinstein havia limitado o número máximo de cartuchos legalmente permitido para um pente de pistola. J.C. conhecia seu metiê. Perguntei a ele sobre vários cenários de combate. “A única maneira de proteger sua família é com um grupo”, disse ele. Esse era realmente o objetivo de seu projeto – reunir um time capaz de se abrigar no local por um ano ou mais e, ao mesmo tempo, defender-se daqueles que não se prepararam. J.C. também esperava treinar jovens agricultores em agricultura sustentável e garantir pelo menos um médico e dentista para cada local.
No caminho de volta para o prédio principal, J.C. me mostrou os protocolos de “segurança em camadas” que aprendera ao projetar imóveis para embaixadas: uma cerca, placas de “proibido invadir”, cães de guarda, câmeras de vigilância… tudo para desencorajar confrontos violentos. Ele parou por um minuto enquanto olhava para o caminho. “Honestamente, estou menos preocupado com gangues com armas do que com a mulher na calçada segurando um bebê e pedindo comida.” Ele fez uma pausa e suspirou: “Eu não quero estar nesse dilema moral”.
É por isso que a verdadeira paixão de J.C. não era apenas construir instalações isoladas e militarizadas de retiro para milionários, mas criar protótipos de fazendas sustentáveis de propriedade local que possam ser modeladas por outros e, finalmente, ajudar a restaurar a segurança alimentar regional nos EUA. O sistema de entrega “imediata” preferido pelos conglomerados agrícolas torna a maior parte do país vulnerável a qualquer pequena crise, como uma falta de energia ou interrupção do transporte. Ao mesmo tempo, a centralização da indústria agrícola deixou a maioria das fazendas totalmente dependentes das mesmas longas cadeias de suprimentos que os consumidores urbanos. “A maioria dos criadores de ovos não consegue nem criar galinhas”, explicou J.C. enquanto me mostrava seus galinheiros. “Eles compram pintinhos. Eu tenho galos.”
J.C. não é um ambientalista hippie, mas seu modelo de negócios é baseado no mesmo espírito comunitário que tentei transmitir aos bilionários: a maneira de impedir que as hordas famintas invadam os portões é garantindo-lhes segurança alimentar agora. Assim, por US$ 3 milhões, os investidores não apenas obtêm um complexo de segurança máxima para enfrentar a próxima praga, tempestade solar ou colapso da rede elétrica. Eles também obtêm uma participação em uma rede potencialmente lucrativa de franquias agrícolas locais que podem reduzir, em primeiro lugar, a probabilidade de um evento catastrófico. Sua empresa faria o possível para garantir que haja o menor número possível de crianças famintas no portão quando chegar a hora de fechar o bloqueio.
Até agora, J.C. Cole não conseguiu convencer ninguém a investir em suas Fazendas do Patrimônio Americano. Isso não significa que ninguém esteja investindo em esquemas como este. Só que os que atraem mais atenção e dinheiro geralmente não têm esse componente cooperativo. Eles são mais voltados para pessoas que querem ir sozinhas. A maioria dos bilionários “preparadores” não quer ter que aprender a conviver com uma comunidade de agricultores ou, pior, gastar seus ganhos financiando um programa nacional de resiliência alimentar. A mentalidade que exige refúgios seguros está menos preocupada em evitar dilemas morais do que simplesmente mantê-los fora de vista.
Muitos daqueles que procuram seriamente um refúgio seguro simplesmente contratam uma das várias empresas de construção especializadas nesse tipo de preparação para enterrar um bunker pré-fabricado revestido de aço em algum lugar em uma de suas atuais propriedades. A Rising S. Company no Texas constrói e instala bunkers e abrigos contra tornados por apenas US$ 40 mil para um esconderijo de emergência de 3m por 4m até a série de luxo de US$ 8,3 milhões “Aristocrat”, com piscina e pista de boliche. A empresa originalmente atendia famílias que procuravam abrigos temporários contra tempestades, antes de entrar no negócio do apocalipse de longo prazo. O logotipo da empresa, que inclui três crucifixos, sugere que seus serviços são mais voltados para os cristãos evangélicos nos EUA dos estados dominados pelo Partido Republicano do que para os bilionários da tecnologia que jogam em cenários de ficção científica.
Há algo muito mais extravagante nas instalações nas quais a maioria dos bilionários – ou, mais precisamente, aspirantes a bilionários – realmente investe. Uma empresa chamada Vivos está vendendo apartamentos subterrâneos de luxo em instalações adaptadas de armazenamento de munições da Guerra Fria, silos de mísseis e outros locais fortificados em todo o mundo. Como os resorts Club Med em miniatura, eles oferecem suítes privativas para indivíduos ou famílias e áreas comuns maiores com piscinas, jogos, filmes e restaurantes. Abrigos de ultra-elite, como o Oppidum na República Tcheca, afirmam atender à classe bilionária e atentar à saúde psicológica dos moradores a longo prazo. Eles fornecem imitação de luz natural, como uma piscina e uma área que simula um jardim iluminado pelo sol, uma adega e outras comodidades para fazer os ricos se sentirem em casa.
Em uma análise mais detalhada, no entanto, a probabilidade de um bunker fortificado realmente proteger seus ocupantes da realidade da… bem… realidade, é muito pequena. Por um lado, os ecossistemas fechados das instalações subterrâneas são absurdamente frágeis. Por exemplo, um jardim hidropônico interno e lacrado é vulnerável à contaminação. Fazendas verticais com sensores de umidade e sistemas de irrigação controlados por computador ficam ótimas em planos de negócios e nos telhados das startups da Bay Area; quando um palete de solo superficial ou uma fileira de cultivo dá errado, ela pode simplesmente ser retirada e substituída. O “espaço de cultivo” do apocalipse hermeticamente fechado não permite tais reposições.
Considerando apenas as incógnitas conhecidas já basta para destruir qualquer esperança razoável de sobrevivência. Mas isso não parece impedir que os preparadores ricos tentem. O New York Times informou que os agentes imobiliários especializados em ilhas privadas ficaram sobrecarregados com consultas durante a pandemia de covid-19. Os clientes em potencial estavam até perguntando se havia terra suficiente para algum cultivo agrícola, além de instalar uma plataforma de pouso de helicóptero. Mas enquanto uma ilha particular pode ser um bom lugar para esperar passar uma praga temporária, transformá-la em uma fortaleza oceânica autossuficiente e defensável é mais difícil do que parece. Pequenas ilhas são totalmente dependentes de entregas aéreas e marítimas de produtos básicos. Painéis solares e equipamentos de filtragem de água precisam ser substituídos e mantidos em intervalos regulares. Os bilionários que residem nesses locais são muito mais – e não menos – dependentes de complexas cadeias de suprimentos do que nós que estamos inseridos na civilização industrial.
Certamente os bilionários que me pediram conselhos sobre suas estratégias de fuga estavam cientes dessas limitações. Poderia tudo ter sido algum tipo de jogo? Cinco homens sentados ao redor de uma mesa de pôquer, cada um apostando que seu plano de fuga era o melhor?
Mas se eles estivessem nisso apenas por diversão, não seria eu que estaria ali. Eles teriam chamado o autor de uma história em quadrinhos de apocalipse zumbi. Se quisessem testar seus planos de bunker, teriam contratado um especialista em segurança da Blackwater ou do Pentágono. Pareciam querer algo mais. Sua linguagem ia muito além das questões de preparação para desastres e beirava a política e a filosofia: usavam palavras como individualidade, soberania, governança e autonomia.
Por isso digo que não eram tanto suas estratégias reais de bunker que eu fui trazido para avaliar, mas sobretudo a filosofia e a matemática que eles estavam usando para justificar seu compromisso com a fuga. Eles estavam trabalhando no que passei a chamar de equação do isolamento: eles poderiam ganhar dinheiro suficiente para se isolar da realidade que estavam criando ganhando dinheiro dessa maneira? Havia alguma justificativa válida para se esforçar para ser tão bem-sucedido que eles pudessem simplesmente deixar o resto de nós para trás – havendo apocalipse ou não?
Ou essa era realmente a intenção deles o tempo todo? Talvez o apocalipse seja menos algo que eles estão tentando escapar do que uma desculpa para realizar o verdadeiro objetivo da Mentalidade: superar meros mortais e executar a estratégia final de fuga.
Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROSQUINHENTOS
Nenhum comentário:
Postar um comentário