Ed. #8 | Segunda-feira, 12 de setembro de 2022. |
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E nós com isso? Na última semana, o presidente conseguiu, com ampla ajuda da imprensa, praticar um inédito e inigualável crime eleitoral ao longo de todo um dia, o 7 de setembro. Usou verbas públicas para promover sua reeleição, atacou o seu concorrente, pediu coro para o próprio falo, o que foi apenas um dos muitos autoelogios que ecoaram na quarta-feira. Também recebeu diversos investimentos por fora, que poderiam até ser enquadrados como Caixa 2, como o desfile de tratores que foram enviados para Brasília, os carros de som no Rio de Janeiro, o palco montado pelo movimento Brasil Verde e Amarelo, fundado pelo empresário Antônio Galvan. Em um dia de importância histórica, ganhou enorme tempo na TV com cenas de brasileiros, vestidos de verde e amarelo, adorando-o.
Pouco importa se a massa era bem menor do que no ano passado: no jogo eleitoral, a cobertura supervalorizou um dos candidatos sobre os outros. Um dos resultados viu-se no Datafolha do dia seguinte, um aumento de 2 pontos percentuais em relação a apenas uma semana anterior.
Se cobrir eleições é tarefa difícil, cobrir um pleito em que a imprensa é usada como método de manipulação da opinião pública é um desafio hercúleo. (Lembremos que chegar à imprensa é parte da terceira etapa no “ciclo da manipulação” segundo o Media Manipulation Casebook). E, acreditem, nós da imprensa sabemos disso e temos mudado muitas práticas, tentando evitar, justamente, funcionar como peça de uma engrenagem que pretende manipular a percepção da população usando o estômago e não o debate racional.
Já houve muitos avanços na cobertura jornalística dos atos do atual mandatário. Eu me lembro, por exemplo, do excelente editorial da Agência Lupa, especializada em fact-checking, quando decidiu, em janeiro de 2021, adotar pela primeira vez o termo “mentira”, ou seja, “afirmação contrária à verdade a fim de induzir a erro”.
O tema era a deliberada negação da pandemia de Covid-19 pelo governo federal e seus apoiadores. “A overdose de notícias e de checagens sobre o assunto nos permite dizer que, em território nacional, há — sim — quem minta deliberadamente sobre a pandemia e seus efeitos e que é hora de falar claramente sobre isso”, dizia.
De lá pra cá, todos os principais jornais passaram a acusar as mentiras do presidente, apontando-as como tais. A escolha não é trivial; ela rompe com décadas do que ficou conhecido como “jornalismo declaratório”, em que a prática corrente era expor o que diziam as autoridades, sem críticas. Da mesma forma, no fact-checking lá dos idos de 2014, evitávamos inserir julgamentos morais quando apontávamos que uma informação era falsa. Nunca vou esquecer do que disse Laura Zommer, fundadora do site argentino Chequeado, num evento certa vez: “pouco me importa que um político errou porque é mau caráter ou porque é burro”. Com o tempo, entendemos que isso faz, sim, diferença.
Pra quem ainda insiste que fact-checking é algo ineficaz, vale lembrar também que hoje a checagem de fatos tornou-se um serviço público, um subsídio usado pela imprensa, academia e formadores de opinião como uma baliza em diversos outros tipos de cobertura. Por exemplo, seria muito difícil fiscalizar os agentes de desinformação no Sentinela Eleitoral, se não fossem as checagens. Como saber quais sites são criadores compulsórios de fake news, cujos meios financeiros merecem ser investigados? Simples, basta ver os que têm mais conteúdos falsos devidamente checados e denunciados como tal.
Aqui na Pública, acabamos por adotar um mecanismo de “neutralização” de desinformação sugerido por acadêmicos que pesquisam o assunto: nunca, jamais, publicamos uma mentira sem ter o seu desmentido logo abaixo. Por exemplo, recentemente nossa repórter viu um candidato afirmar, em um evento católico ultraconservador em Contagem, MG, que Lula prometeu legalizar o aborto. Tivemos que publicar as aspas já com a correção a seguir.
Diversas fórmulas, mais ou menos eficazes, têm sido adotadas pelos jornalistas nessa nova era da desinformação militarizada, transformada em arma por agentes que querem destruir a democracia. Ao perceber que o ritual diário de manter apoiadores fanáticos no “cercadinho” do Planalto servia apenas para que estes xingassem a imprensa que ia para lá fazer perguntas normais sobre os atos de governo – uma função básica do jornalismo noticioso – , rendendo imagens, vídeos e memes para as redes sociais usarem em campanhas de assédio, o site Congresso em Foco decidiu deixar de comparecer àquele circo. Jornais da grande imprensa seguiram essa decisão, um marco no jornalismo brasileiro.
É mais ou menos isso, guardadas as devidas proporções, que fizeram os canais de TV dos EUA ao suspender, em pleno ar, a transmissão do discurso de Donald Trump em 6 de novembro de 2020, quando percebeu que perderia no voto e passou a atacar as eleições americanas alegando, sem nenhum fundamento, “fraude”. Foi uma decisão histórica, com enorme peso político. Não é fácil, leitor, decidir silenciar a autoridade máxima do poder Executivo.
Mas quando se fala no papel dos jornalistas na era da infodemia, o buraco, caro leitor, é ainda mais embaixo.
Atacar os jornalistas é parte da estratégia. Nisso, o próprio Donald Trump foi mestre – e deixou sua cartilha para os demais autocratas. Vale relembrar um diálogo que aconteceu em novembro de 2016 na Trump Tower, em Nova York, pouco após a eleição. O futuro presidente dos Estados Unidos ainda não havia tomado posse e recebia em seu famoso escritório, no 26º andar do edifício em Manhattan, a jornalista Lesley Stahl, que o entrevistaria para o programa 60 minutes, um dos mais importantes da TV americana.
Em um certo momento, Trump começou a criticar a cobertura das eleições e os jornalistas. Lesley o interpelou: “Sabe, isso está ficando cansativo. Por que você continua fazendo isso, tantas vezes? É entediante e já está na hora de parar com isso. Você venceu… Por que continua martelando isso?”
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“Trump respondeu: “Sabe por que eu faço isso? Eu faço isso para desacreditar todos vocês e depreciar todos vocês; assim, quando vocês escreverem histórias negativas sobre mim, ninguém vai acreditar”, contou Lesley dois anos depois. |
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Trata-se não apenas de achincalhar jornalistas, como o bizarro ataque no debate da TV Bandeirantes contra Vera Magalhães. E nem apenas das turbas de seguidores cegos que ampliam o assédio através de hashtags, memes machistas e escandalosos. Não bastasse tudo isso, há ainda membros da ultradireita que trabalham dia e noite para destruir reputações de repórteres que questionam o governo. E a reputação de um jornalista é, ainda, seu principal bem. É isso que faz o Projeto Veritas, por exemplo, operação montada nos EUA por direitistas próximos a Trump para “denunciar” a “tendência de esquerda” da mídia americana. O projeto Veritas – cujo representante esteve no Brasil e se reuniu com apoiadores do presidente – já foi responsável por gravar conversas com jornalistas sem que eles soubessem, pedir que funcionários conservadores de jornais gravem seus colegas e os exponham, e até por uma tentativa de plantar uma notícia falsa no Washington Post.
O que leva à triste realidade que, para nós jornalistas que cobrimos um governo de um homem que se sonha ditador, todo cuidado é pouco. “Dicas” que aparecem do nada podem ser armadilhas, assim como pedidos de resposta e outros lados podem ser vazados na internet como forma de perverter os questionamentos e criminalizar nosso trabalho. Navegar nessas águas turbulentas não é nada fácil. Com o simples gesto de permitir perguntas abertas em um evento online ou presencial, pode-se abrir o microfone para um agente infiltrado destilar suas mentiras – aconteceu recentemente em um Spaces da Agência Pública no Twitter, quando um perfil sem foto, anônimo, se dedicou a espalhar desinformação e teve boa parte da sua fala checada e corrigida ali mesmo, ao vivo. Não é sempre que os jornalistas conseguem ter a presença de espírito demonstrada por Paula Bianchi e Rubens Valente, revertendo ao vivo a propagação de fake news.
Existe, ainda, mais uma armadilha contra nós, talvez a mais difícil de driblar. Trata-se da ambiguidade no uso das palavras. Conscientes que há maneiras de criminalizar o discurso de ódio, a homofobia, a incitação à violência e os ataques frontais às instituições, os agentes desinformantes usam, de maneira meticulosamente planejada, palavras que não possam lhes imputar crime algum. Foi o que fez Donald Trump, ao insuflar a turba para invadir o Capitólio sem jamais ter dito claramente: “vão lá, invadam o congresso e ameacem os senadores, e se encontrarem Mike Pence, pau nele”. Não. Trump disse o seguinte: “Eu sei que todo mundo aqui vai em breve marchar para o Capitólio para fazer suas vozes serem ouvidas, pacificamente e patrioticamente”. Ele também disse: “Nós lutamos como o inferno. E se vocês não lutarem como o inferno, vocês não terão mais um país”. E o resultado, todos sabemos.
Navegar esse vernáculo dúbio tornou-se, agora, parte do trabalho do jornalista. Como a fala, repetidas duas vezes no 7 de setembro, de que se houver reeleição, o presidente trará “para as quatro linhas” quem “ousar ficar fora delas”. Trata-se de uma ameaça velada de interferência em um dos três poderes, que foi flagrada apenas por algumas analistas – lembro-me de Vera Magalhães e Renata Lo Prete. O que isso significa? A resposta veio de outro jornalista, Guilherme Amado, que na sua coluna adiantou a pretensão do mandatário de apresentar uma PEC (proposta de emenda constitucional) para ampliar de 11 para 15 os membros do STF, permitindo a si mesmo nomear 8 ministros, no total. É um caminho conhecido, utilizado por diversos autocratas latino-americanos, de Fujimori a Chávez, passando por Nayib Bukele, presidente de El Salvador. Mas a ameaça apareceu pela primeira vez claramente nos dois discursos do 7 de setembro, e tem pipocado aqui e ali em faixas nas manifestações da sua base eleitoral, através de um termo recém-inventado nessa novilíngua: é preciso “sanear o STF”. Um eufemismo, no mínimo, estampado pelos mesmos que pediam o fechamento do Supremo ano atrás. E por isso, estratégia mais eficiente.
É assim que vai se plantando a semente de uma nova narrativa, mais uma cartada para detonar nossa democracia.
Para terminar, observo mais abertamente que não usei nenhuma vez, neste texto, o nome do senhor que governa nossa República. Isso é fruto de um grande esforço, depois de refletir sobre como, no final, o bicentenário do Brasil ficou amarrado àquelas nove letrinhas e, dependendo dos algoritmos de busca e de redes sociais – máquinas burras – vai ficar assim registrado na história. Não é muita coisa, mas vale para lembrar que é sempre possível subverter o reinado dos algoritmos. |
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Natalia Viana Diretora Executiva da Agência Públic |
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