Como evitar que a direita ganhe a batalha das ruas
Dois fatores – um de longo prazo, outro conjuntural – explicam por que o bolsonarismo parece mais capaz de mobilização popular que a esquerda. Sem reverter o processo, a ameaça fascista persistirá – e poderá levar ao cerco de um governo Lula
Que Jair Bolsonaro ainda sonha com a vitória em outubro, é evidente – inclusive por temer a investigação de seus múltiplos crimes, assim que afastado do poder. Que ele tentará o golpe, se tiver condições para tanto, também é claro. Mas talvez tenha escapado à maior parte das análises sobre o 7 de setembro bolsonarista um terceiro objetivo, complementar aos dois primeiros e muito mais factível que ambos. Começou na quarta-feira, a quatro semanas do primeiro turno, a tentativa de emparedar nas ruas um possível governo Lula.
Quem a promove é a ultradireita, mas ela poderá, mais tarde, interessar a outras forças do arco conservador. Por isso, é preciso compreendê-la, reconhecer sua gravidade e iniciar, desde já, as ações que permitirão desarmá-la. A equação pode ser descrita em três termos: a) o bolsonarismo tornou-se, momentaneamente, mais capaz de promover a mobilização política das multidões que a esquerda; b) se esta situação perdurar, ela minará as forças de um governo Lula, levando-o ou ao desastre, ou à descaracterização; c) o cenário pode ser revertido, mas para isso é preciso buscar, na história recente do país, o que levou a ele.
O objetivo deste texto é responder ao terceiro ponto do problema. Mas vale examinar, mesmo que rapidamente, os dois primeiros. Nos últimos meses, o mosaico da política brasileira assumiu um desenho incomum. Parte das estruturas tradicionais de poder – Judiciário e mídia, em especial – deixou de ser conivente com os atentados do bolsonarismo à democracia, aproximando-se objetivamente de Lula.
Nada indica, porém que estes poderes manterão a postura se o ex-presidente, ao assumir, realizar as esperanças que suscita entre seus apoiadores. Ao contrário: a tentativa de impor limites a Lula já está delineada. Fala-se que, após o período de medidas eleitoreiras de Bolsonaro, será preciso “apertar os cintos” e “arrumar a casa” – como se a população devesse pagar pelos desvarios do atual presidente, aprovados aliás pelo Congresso. Tenta-se, em especial, convencer Lula a se manter distante (como em seus primeiros governos) das reformas estruturais indispensáveis a reconstruir o Brasil em novas bases.
Estas mudanças podem se dar sem ruptura com a ordem institucional – mas não sem tensioná-la. Para realizá-las, não bastará, por exemplo, contar com a boa vontade de um Congresso deformado, e dominado pelo Centrão. Será preciso reclamar que o Legislativo enxergue a devastação do país e aja para revertê-la. Mas como fazê-lo se, entre a sociedade, a força mais mobilizada for o fascismo? Este cenário conduzirá a derrota certa: ou a um governo que se divorcia rapidamente de suas bases (como Dilma 2) e abre brechas para o golpismo, ou à adoção de uma agenda que, em essência, repete a dos liberais, passa a ter neles sua base principal de apoio e renega seus compromissos.
Para evitar qualquer dos dois desastres, será preciso recuperar as ruas. Mas por que as perdemos? Um dos fatores – o de mais longo prazo – costuma ser descrito, de forma um tanto simplória, como “falta de trabalho de base”. Não se trata de algo relacionado a suposta preguiça, mas à institucionalização e à mudança do perfil socioeconômico e etário da antiga “militância”. Para um exame em profundidade do fenômeno, vale ler um ensaio provocador, intitulado “Em busca da funda de Davi”, do filósofo, professor e ativista Maurício Abdalla.
No texto, Abdalla descreve um notável movimento em xis ocorrido há cerca de 35 anos e que resultou na perda, por parte da esquerda latino-americana, de antigas fortalezas que tinha entre os setores populares – em especial nas periferias. A marca do deslocamento são as chamadas reuniões de Santa Fé, realizadas nesta cidade mexicana nos anos 1980. Sob orientação de consultores apontados pelo Estado norte-americano (particularmente a CIA), forças políticas de direita redefinem o foco de sua atuação junto às maiorias.
Já não basta, dizem em síntese os Documentos de Santa Fé (de 1988) atuar nas instituições. É preciso ir às franjas gigantescas das metrópoles, onde vivem as multidões empobrecidas que estão sendo conquistadas pelos partidos de esquerda e pela Teologia da Libertação. E o instrumento decisivo para agir nestes territórios é a guerra cultural de cunho conservador. É fácil deduzir que o instrumento de excelência para operar este combate são as igrejas evangélicas ou o conservadorismo católico. Abdalla descreve como ambos serão, nas décadas seguintes, fartamente financiados, para que reúnam, por meio de tentativas e erros, o conhecimento necessário para atuar com desenvoltura nas periferias.
Porém, o artigo é ainda mais provocador ao frisar que tal esforço foi enormemente facilitado pela trajetória de sentido oposto percorrida pela esquerda. Ao obterem suas primeiras vitórias eleitorais, a partir dos anos 1980, as forças progressistas apressam-se a ocupar o aparelho de Estado. São milhares de postos nos parlamentos, secretarias de Estado ou de Município e, mais tarde, prefeituras e governos. Ocupá-los era necessário, e não se pode culpar moralmente os militantes, que vinham de lutas em condições extremamente adversas sob a ditadura, por desejar atuar na política com algum conforto. O que faltou foi visão de todo, estratégia. Partidos interessados em transformações sociais profundas – algo muito maior que a mera conquista de governos – teriam combinado a presença institucional com a manutenção das bases junto aos setores populares.
Por sua própria natureza, este primeiro problema não pode ser resolvido a curto prazo. Enfrentá-lo exigirá muitos anos de reflexão e trabalho, em esforço que precisa ser iniciado tão logo o bolsonarismo seja batido. Mas a perda das ruas, por parte da esquerda, deriva também de uma questão conjuntural, que pode – e precisa – ser enfrentada sem demora. É a dupla resistência da campanha Lula: a acenar com uma visão clara sobre o futuro do país e a engajar seus apoiadores na luta por este horizonte.
Levar o povo às ruas não depende de “trabalho de base” prévio. Jean-Luc Mélenchon esteve a ponto de passar ao segundo turno das eleições presidenciais francesas, e liderou uma campanha que obteve o maior número de votos para o Parlamento (quase 1/3 do total), sem que seu partido, (a França Insubmissa) tivesse raízes ou capilaridade. Ele foi capaz de empolgar a população com uma ideia potente: é possível superar a crise civilizatória por meio de um choque de igualdade e de novas relações entre o ser humano e a natureza. Desta matriz derivavam propostas concretas para os problemas que mais afligem a sociedade francesa: pobreza, precarização, desemprego, encolhimento das classes médias, inflação, medo ds mudanças climáticas, por exemplo. Além disso, os comícios se multiplicaram (muitas vezes, o candidato falou simultaneamente em várias cidades, por meio de telões). E em todos eles havia apelos diretos aos presentes para que espalhassem a mensagens, além de sugestões concretas sobre como fazê-lo.
A mesma combinação entre uma visão de futuro e um apelo a construí-lo em luta de todos esteve presente em quase todas as disputas anteriores protagonizadas por Lula – por isso, sua ausência agora é tão chocante. O tema tem sido tratado na própria mídia comercial: não é concebível que a campanha do ex-presidente o ignore. Se resiste, é porque teme assumir compromissos.
As consequências podem ser muito graves. Na disputa eleitoral, o bolsonarismo não está batido. A crise civilizatória produz instabilidade extrema e, entre vastos setores da sociedade, a busca de uma saída e alguma forma de pertencimento para escapar do desamparo – seja ela qual for. Daí o enorme crescimento das igrejas evangélicas. Se no campo político a esquerda desperdiça a chance de despontar como alternativa de projeto de futuro e de forma de estar no mundo, abre um enorme vácuo, que o fascismo tem sido hábil em ocupar, não apenas no Brasil.
Na hipótese hoje mais provável – a da vitória de Lula –, a reconquista das ruas será ainda mais crucial. Ela não deve ser vista como uma tarefa do governo. Este, como se vê já na fase da campanha, tenderá a hesitar demais, ou a se manter paralisado em meio à vasta rede de interesses presentes em seu espectro de alianças. Melhor seria se um arco de movimentos sociais, de importância reconhecida pela sociedade, se propusesse a formular propostas relacionadas a uma pauta do povo e às mudanças estruturais indispensáveis para assegurá-la. Estes movimentos poderiam contar com apoio de pensadores comprometidos com a reconstrução do país em novas bases – numa aliança que já está sendo construída, embrionariamente, em processos como as Conferências Livres das Saúde, das Cidades e da Economia Solidária. Uma construção de tal tipo será naturalmente heterogênea, mas poderá se dar sob um nome comum, que funcione como guarda-chuvas político capaz de sinalizar o sentido compartilhado por todas as iniciativas. Por exemplo, Poder Popular.
Todo o Ocidente parece envolto em turbulências políticas. A ameaça fascista espalha-se. A crise civilizatória, porém, abre espaço para uma mudança de sentido oposto. É preciso construí-la desde já – e retomar as ruas terá, neste processo, caráter estratégico…
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