Na semana do bicentenário da independência, não houve apenas alusões do presidente da República ao seu suposto desempenho sexual. Em um esforço por relacionar a pesquisa científica ao debate público real, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realizou uma série de conferências. Intitulada “Contagem Regressiva para o Bicentenário: Rumos à Independência”, a sequência reuniu pesquisadores e especialistas para refletir sobre meio ambiente, desenvolvimento industrial, educação, segurança pública, sustentabilidade ambiental e saúde. Vale assistir, em particular, à exposição realizada em 5/9 pela presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, que teve a companhia de Paulo Niemeyer Soares Filho, diretor médico do Instituto Estadual do Cérebro. Nísia traçou um panorama da ciência e sua relação com a saúde ao longo dos dois últimos séculos: sua contribuição para a formação de uma nação, as crises sanitárias, a criação de institutos e universidades públicas, o papel da saúde para alavancar o desenvolvimento. Destacou os desafios que a ciência brasileira enfrenta hoje: da falta de financiamento até sua urgente democratização. “Entendo que os cientistas deram contribuições cruciais ao debate sobre constituição do Estado, identidade nacional, cidadania, visão sobre as populações, políticas públicas de saúde e educação, projetos de formação de universidades, circulação internacional de saberes e a inserção do Brasil no mundo”, afirmou. Nísia fez uma comparação do momento atual com as comemorações que foram feitas durante o primeiro centenário da independência, em 1922. Naquele momento, o presidente Epitácio Pessoa organizou uma grande exposição internacional que buscava apresentar um país moderno que buscava progresso. Essa visão, que tinha a Europa como modelo, teve contrapontos importantes. Era o momento em que o Partido Comunista estava sendo criado. Também emergia o modernismo brasileiro, que buscava criar estéticas próprias para o país. A construção do Museu Nacional, do Museu do Ipiranga e de museus nas províncias expressou um esforço de busca da autossuficiência científica, mas também da formação de uma identidade nacional. Na virada para o século XX, diante de um período de crise sanitária, causada pela peste bubônica, foram criados o Instituto Soroterápico Nacional (1900) – que se tornaria a Fiocruz – e o Instituto Butantan (1901). Na época, prosseguiu Nísia, os cientistas e pesquisadores tinham uma visão do Brasil, especialmente de seus interiores, como um “país doente” que precisava ser curado pela medicina. Nesse contexto, a própria Fiocruz fazia viagens científicas aos rincões do país, como parte de um projeto de desenvolvimento econômico e social. A imagem do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, o caipira preguiçoso e doente, e a célebre frase da obra Macunaíma, de Mário de Andrade, “pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são”, contribuíam com essa noção de país que deveria ser curado. Nas décadas seguintes, em especial após a Segunda Guerra, acreditava-se que a ciência e a tecnologia tinham papel decisivo no processo de elevação dos níveis socioeconômicos da América Latina e na superação do então chamado “subdesenvolvimento”. Mas o processo foi interrompido, de certa maneira, com o golpe de 1964. A fase foi marcada por perseguição política de cientistas e a descontinuidade de investimentos na ciência. Nísia destaca, então, o papel crucial da reforma sanitária na década de 1970, com ênfase na 8ª Conferência Nacional de Saúde que deu as bases para a construção do SUS. Foi então que Sérgio Arouca, o líder mais conhecido do processo, pronunciou uma frase célebre, muito atual ainda hoje: “saúde é democracia e democracia é saúde”. Nísia reflete: “é impossível pensar em democracia sem pensar em inclusão social, sem combater a fome, a destruição do meio ambiente”. E qual a situação atual da ciência e da saúde no Brasil? Em meio à crise política, econômica, institucional, há ainda novos desafios, como as mudanças climáticas, o advento às vezes disruptivo das tecnologias de comunicação e informação, o esgotamento do antigo modelo de desenvolvimento. Para ela, é urgente retomar a democratização das universidades, de modo que a ciência faça parte da vida dos brasileiros – e também como forma de combater o fenômeno organizado das fake news, do anticientificismo e do negacionismo. Para isso, a questão do financiamento da saúde e da ciência precisa entrar em pauta – a começar pela revogação do chamado “teto de gastos” que limita investimentos sociais. E há ainda outro papel que Nísia vê para a saúde, aliada à ciência, no Brasil de 2022. O de vetor de desenvolvimento, com a promoção de inovação, bem-estar e sustentabilidade. O SUS é o maior sistema universal do mundo. A saúde é responsável por 9% do PIB nacional. O investimento no Complexo Econômico-Industrial da Saúde tem alto potencial de estimular o emprego e a economia, e pode ser a área-chave da 4ª revolução tecnológica no país. Essa é uma das diretrizes que a Fiocruz expõe em seu documento para os candidatos à presidencia da República. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário