Ed. #9 | Segunda-feira, 19 de setembro de 2022. |
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Virei um voto Eu nunca fui de tentar convencer os outros a mudarem seu voto, primeiro, porque sinto que o trabalho do jornalista é informar o público para que ele decida; e segundo porque sou uma republicana das mais caretas e acho, sim, que as posições políticas têm que ser respeitadas, desde que dentro do jogo democrático. Mas é justamente disso que se trata o momento atual, e também esta nossa newsletter: já saímos, há muito, da normalidade democrática.
Na última terça-feira eu participei da bancada do Roda Viva, que foi gravada no estúdio da TV Cultura em uma tarde chuvosa em São Paulo. Na noite anterior, a apresentadora do programa, Vera Magalhães, fora assediada de maneira violenta pelo deputado estadual Douglas Garcia, da base do presidente Jair Bolsonaro, que a filmou para “engajar” seus seguidores em redes sociais proferindo mentiras sobre o seu salário, no Memorial da América Latina; o diretor de jornalismo da TV, Leão Serva, agarrou o telefone e atirou-o para longe.
No dia seguinte, sorridente e inabalável, Vera estava comandando o Roda Viva que entrevistaria o professor de Harvard Steven Levitsky, coautor do livro Como as Democracias Morrem (ed. Zahar), já um clássico para entender os autocratas de hoje em dia como Trump e Bolsonaro. Durante a entrevista, um colega da bancada perguntou a Steven Levitsky se ele estaria sendo “irresponsável” ao votar no que chamou de “terceira via” no primeiro turno, deixando para votar no segundo turno para derrotar o atual presidente. A resposta foi magistral, como as demais do professor. Para não dar spoiler, resumo: “é arriscado”, disse ele.
Era nisso, e em mais esse ataque à jornalista, que eu estava pensando quando entrei no Uber a caminho do trabalho no dia seguinte. Depois de um bom dia alegre, decidi perguntar ao motorista em quem ele ia votar. “Acho que voto no Bolsonaro”, disse, numa resposta mais que esperada. Mas naquele dia, decidi entender o que o levava a votar no presidente mais mal avaliado dentre todos os que tentaram um segundo mandato.
— Eu nunca votei no PT – respondeu – Até votaria no Ciro, mas ele é meio maluco.
Achei boa a deixa:
— Mas o atual presidente também é maluco, né? Você não viu ele agredindo a jornalista no debate? Ele não consegue se segurar.
— É, realmente, ele não tem assim autocontrole.
— O senhor não acha que um pai de família tem que ter autocontrole? A pessoa pode perder a paciência e ser violento com qualquer coisa?
Ele foi raciocinando: “A senhora tem razão, não dá. E se o cara ouve uma coisa que não gosta, por exemplo, aqui no meu Uber, se o passageiro fala algo que eu não gosto eu não vou ser grosso com ele”.
Achei que estava avançando, quando ele me perguntou: “o que a senhora faz”? Pensei que tinha pedido a parada. Afinal, hoje em dia, infelizmente, se dizer jornalista pode despertar raiva ou desconfiança imediata, em especial de quem gravita pelas redes bolsonaristas ou é influenciado por elas, como era o caso dele. Já chego lá.
— Pois é – disse ele – se a jornalista pergunta uma coisa que ele não gosta, ele tem que responder né? Se o cara é autoridade. Ou então, ficar quieto.
“Sim”, respondi, “poderia ficar quieto”. E aproveitei pra fazer um desabafo que quase nunca faço em público. Sem me exaltar, fui explicando como, por causa dos ataques de Bolsonaro às jornalistas mulheres, todas nós somos assediadas e ameaçadas cotidianamente nas redes sociais, diante das nossas famílias, que ligam, preocupadas e muitas vezes nos imploram pra pararmos de exercer a nossa profissão. Relembrei o caso de uma colega querida, que recebeu uma mensagem sobre “merecer ser derretida no ácido”. Lembrei que já me mandaram “procurar uma rola” no Twitter. Ele ficou chocado:
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“É. Se a pessoa é autoridade, ela deveria dar exemplo pros outros. Se ele é violento, os outros também ficam violentos." |
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Depois disso, ele me contou o mesmo que os jornais noticiavam naquele mesmo dia: ele agora tem medo de discutir política, “porque as pessoas estão se matando”. Refletia uma pesquisa do Datafolha que revelou que 67% dos brasileiros dizem ter medo de violência política – um legado indelével da era bolsonarista. Tal violência é algo que a Agência Pública monitora desde as eleições de 2018 (aliás, se souber de algum caso, mande o relato aqui).
Ele disse que soube no Whatsapp da família que “um sujeito apoiador do Lula matou a mulher e o filho” – um indicador das tintas bolsonaristas do seu Whatsapp da família, uma vez que esse caso se trata de um feminicídio, embora o criminoso tivesse a cara do Lula tatuada no braço, e não de violência política. Mas, claro, as redes bolsonaristas estão compartilhando alvoroçadas a notícia, na tentativa de equiparar a violência dos seus – que já assassinaram pelo menos duas vidas nessa campanha – com o que eles chamam de “outro lado”.
Chegamos, enfim, ao tema central: Lula. Foi ele quem começou.
— Na época do Lula era bom. Mas o Lula deveria ser um homem assim admirável, respeitado, e ele jogou isso tudo fora. Ele roubou, quer dizer, mesmo que não roubou ele deixou roubar muito.
Eu tive que concordar com ele. Também me incomoda não só o volume de corrupção, bem documentada, da era PT, como o fato de que a candidatura petista não traz uma proposta concreta de como evitar que isso se repita. Ele se virou e me olhou nos olhos:
— Você que é jornalista, o Lula não roubou? O Lula não é rico?
Respondi da melhor maneira que pude: não há nenhuma prova que Lula tenha roubado. O ponto principal da condenação dele era um apartamentinho no Guarujá que ele nunca usou.
A essa altura, passávamos pelo meio do Morumbi, com suas mansões gigantescas. Aproveitei para dizer: “o apartamento não chega nem aos pés dessas casas aqui”. Mas arrematei: “o Lula tem 5 milhões em previdência privada, que ele guarda lá na poupança dele, pra se um dia se aposentar. Então, para os padrões brasileiros, ele é rico sim”.
Expliquei que ele recebeu muito dinheiro dando palestras quando ele saiu da presidência, assim como outros presidentes, seja Barack Obama ou Bill Clinton. Também disse que o Lula foi provavelmente o político mais investigado da história do Brasil. E o que se achou foi isso: um apartamento que ele nunca usou e um sítio que era de um amigo e ele ia sempre em Atibaia.
Estávamos nessa quando paramos em um farol e, no meio daquela riqueza obscena do Morumbi, um homem pedia dinheiro. Um homem em cadeira de rodas, que mal movia os braços subdesenvolvidos e sem mãos. Apontava com o queixo um tubo com um furo em cima, onde se podia inserir uma cédula ou moeda. Pedi para ele parar e repassar uma nota, mas o farol abriu. Ficamos em silêncio por dois quarteirões, ambos impactados pela imagem daquele brasileiro ali, na chuva fininha e fria. Pedi pra estacionar em cima da calçada. Ele concordou: “melhor a senhora ir senão vai ficar pensando nele”. Era verdade. Fui correndo até o pedinte, para completar a oferenda.
Voltei esbaforida.
— A senhora tem um bom coração.
Arrematei: “A gente precisa de um presidente que se importe com os pobres. Tem tanta gente precisada nesse país”.
Ele ficou em silêncio, pensativo. Acho que não há muita dúvida sobre qual dos dois candidatos se importa, de fato, com o povo.
Eu sei que esse diálogo pode ser uma bobagem e que ele pode decidir, assim mesmo, informado pelos seus familiares, votar em Bolsonaro. Mas quando ele estacionou na Faria Lima para me deixar para uma reunião, eu senti – ambos sentimos – que tínhamos vivido uma hora memorável. Um pouco impactado, e talvez para tentar averiguar se eu era mesmo alguém em qual ele poderia confiar, ele me desafiou:
— Se a senhora é jornalista, quando eu vou te ver na televisão?
E, por uma dessas coincidências raras e imprevisíveis, eu, que nunca apareço na TV, tinha a resposta pronta:
— Vou estar na segunda-feira à noite no Roda Viva na Cultura, pode ligar lá que o senhor vai me ver.
Espero que o senhor Orlando se conecte ao Roda Viva hoje à noite, assim como você, leitor. Quero que ele ouça a resposta de Steven Levitsky para a questão que mais me atormenta nessa campanha eleitoral: por que tem sido tão difícil explicar às pessoas que estas eleições não são normais, que estamos decidindo entre manter a democracia ou destroçá-la de vez?
É claro que eu não vou dar spoiler por aqui. Assista, e depois me conte o que achou. |
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Natalia Viana Diretora Executiva da Agência Pública |
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