Grilagem marinha
Os terrenos de marinha foram estabelecidos nos anos do Império para garantir a segurança da costa e são regulados pelo Decreto-lei 9.760, de 1946. A legislação determina que essas áreas possuem “uma profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio [maré alta] de 1831”. Esses 33 metros foram fixados com base no alcance de um tiro de canhão, mas, hoje, a distância pode chegar a até 80 metros da maré alta em cidades litorâneas.
Essas áreas — que não pertencem à Marinha, mas sim à União — estão sob responsabilidade da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), vinculada ao Ministério da Economia. Cabe a esse órgão fazer as demarcações dos territórios inalienáveis da União e, nos casos dos terrenos de marinha, as medições das linhas a partir de plantas, mapas, documentos históricos, dados de ondas e marés. Para ocupá-las é preciso uma concessão pública e o pagamento anual de taxas de foro, ocupação ou laudêmio.
Essas taxas geraram uma arrecadação de R$ 613 milhões em 2021, segundo os dados do Tesouro Nacional consultados pela Pública. A cifra sobe para R$ 695 milhões quando somados dívidas, multas e juros arrecadados. Uma lei de 2015 obriga a União a repassar 20% desse montante para os municípios onde estão localizados esses imóveis.
No caso de comunidades tradicionais, como a Resex de Canavieiras, os habitantes estão isentos de pagar qualquer tarifa e têm o direito ao uso desses territórios. Em áreas urbanas consolidadas, os proprietários possuem escritura, mas a propriedade do imóvel é compartilhada com a União. É necessário pagar uma taxa anual e 5% de laudêmio em caso de venda da propriedade.
Especialistas e ambientalistas consultados pela Pública reconhecem que as regras dos terrenos de marinha são muito antigas e defasadas e precisam de uma revisão. Já existe um projeto da SPU para repassar para os proprietários a titularidade completa dos imóveis na faixa litorânea, mediante o pagamento da parcela que corresponde à União.
O problema maior é que, apesar da defasagem da legislação, os terrenos de marinha permitem que a União possua o controle sobre um território sensível, com imensas áreas preservadas na costa brasileira, o que pode ser especialmente estratégico em um momento de contenção de danos das emergências climáticas. O Ministério do Meio Ambiente considera toda a zona costeira e marinha como área prioritária para a conservação, uso sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade.
Reprodução Ministério do Meio Ambiente
Mapa da zona costeira e marinha do Brasil
“Áreas de manguezais, apicuns, restingas, dunas, costão rochoso, as ilhas… Tudo isso são terrenos de marinha, e são zonas vulneráveis. Os manguezais e apicuns são chamados de ambientes de carbono azul e são imprescindíveis na questão climática. Uma das metas é, inclusive, restaurar esses ambientes”, explica a ecóloga marinha Ana Paula Prates, do Instituto Talanoa, e conselheira da Liga das Mulheres pelo Oceano. “Existe um risco de acabar permitindo ainda mais o desmatamento dessas áreas.”
Seu temor não é em vão. O texto aprovado da PEC 39/11 determina que sigam sob o domínio da União as unidades ambientais federais e as áreas não ocupadas. No entanto, o texto fala também que áreas devem passar “ao domínio dos ocupantes não inscritos, desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos cinco anos antes da data de publicação desta Emenda Constitucional e seja formalmente comprovada a boa-fé”. São pessoas que não estão cadastradas na SPU e que poderiam reivindicar áreas ocupadas irregularmente. Esse trecho, segundo Prates, abre brecha para a grilagem. “Pra mim essa PEC é uma grilagem marinha. Uma forma de tomar posse dessas áreas da União.”
No Pará, por exemplo, a Controladoria-Geral da União (CGU) apontou, em 2018, a falta de informação sobre os responsáveis pela ocupação de mais de 628 quilômetros quadrados de terrenos de marinha e acrescidos em 15 municípios, entre eles Belém. “A inconsistência destes dados impossibilita a identificação dos responsáveis por essas ocupações e impacta diretamente no recolhimento das receitas patrimoniais pertinentes”, afirma o relatório. Na Amazônia, o risco é o de se intensificar a construção nas margens e praias de rios, em lugares que estão no radar da construção civil e do turismo, como Alter do Chão (Santarém)
Muitas áreas ainda nem sequer foram demarcadas como terrenos de marinha pela SPU e poderiam ser pleiteadas por grileiros. Segundo uma reportagem do portal Infoamazonia, o organismo calcula que uma área de 19 mil quilômetros de extensão, considerando os contornos da influência das marés, são passíveis de demarcação como terrenos de marinha. Outros 106 mil quilômetros ao longo de rios e lagos também poderiam ser demarcados. Entre 2018 e 2020, a grilagem na Amazônia aumentou 274% em Unidades de Conservação (UCs) de uso sustentável, como as Resex, segundo um estudo do Instituto Socioambiental (ISA).
No caso de territórios de comunidades tradicionais, como no caso da Resex de Canavieiras, a titularidade deve ser passada de forma gratuita “no caso das áreas ocupadas por habitação de interesse social”. Mas o pescador Carlos não vê a iniciativa com bons olhos. O fato de as terras pertencerem à União, diz, cria uma proteção à especulação imobiliária e à implantação de grandes projetos. A Resex, criada em 2006, “deu segurança jurídica para os pescadores e diminuiu os conflitos no território”, além de abrir as portas para políticas públicas mais efetivas voltadas para as 14 comunidades que formam a reserva, segundo conta ele.
Os pescadores possuem o domínio sobre os territórios, podem construir casas e empreendimentos e passá-los para seus descendentes. Caso queiram se desfazer de seus imóveis e vendê-los, só é possível passar para outra família de pescadores. “Existe uma gestão do espaço, feito através de um conselho deliberativo, com representação da comunidade, dos órgãos públicos e de outros atores da região”, explica.
O que vai acontecer caso a titularidade seja passada para os pescadores, como prevê a PEC? Carlos acredita que abrirá margem para o avanço de outros agentes privados e a pressão sobre o território. “Na verdade, o que eles estão fazendo com essa PEC é facilitar uma negociação desigual entre um megaempresário rico com comunidades tradicionais. O que parece ser uma coisa boa na verdade só está facilitando uma troca desigual”, argumenta.
Arquivo pessoal/Carlos Alberto
“Sem os peixes não existe pescador”, reflete Carlos
Ele afirma que há famílias de comunidades tradicionais em situações de extrema vulnerabilidade. “Antes da criação da Resex, já aconteceu de alguém chegar oferecendo R$ 200 mil por um terreno prometendo mudar a vida da família. E sabe o que acontece? As famílias pegam esse dinheiro e vão para as periferias das cidades”, explica o pescador. “A pessoa que mora na beira da praia é uma trabalhadora e produtora de alimentos. Vai para a cidade e acaba nesse moinho de carne sem nenhuma preparação, e acaba caindo num processo de fragilidade econômica e de depressão, entende?”
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