sexta-feira, 29 de julho de 2022

PESCARIA ALTERADA

 Se as mulheres cuidam das roças, os homens ficam responsáveis pela pesca — e nem os peixes escapam às mudanças. O agricultor e vigilante Alcir Ricardo, do povo Baniwa, marido de Carine, diz que as alterações no regime de chuvas não estão deixando os peixes engordarem.

Paulo Desana/Agência Pública

Alcir Ricardo, do povo Baniwa

“Na nossa cultura, quando a chuva começa a cair, vem a piracema [período de reprodução de alguns peixes caracterizada pela migração, contra a correnteza, rio acima]. Aí no mês de junho os peixes estão gordos.” O problema, explica, é que, com o regime de chuvas alterado, musgos que só apareciam em junho apareceram no mês de maio, antes do esperado. Os peixes, segundo ele, passam a se alimentar dessas plantas e não engordam. “Então, ele ainda não está gordo e já vai fazer o regime antes do tempo e vai ficar magro”, resume.   

Paulo Desana/Agência Pública

Um dos mais importantes alimentos da dieta indígena, os peixes também estão sendo afetados pelas mudanças climáticas

No baixo rio Uaupés, também na bacia do rio Negro, Rosivaldo Miranda, da etnia Piratapuya, notou outra mudança importante. Morador da comunidade de Açaí-Paraná, na Terra Indígena (TI) Alto Rio Negro, ele observou que até as minhocas encontradas dentro de bromélias estão diminuindo. 


Normalmente elas vivem nos barrancos e, quando o rio está para encher, refugiam-se nas bromélias que ficam nas partes altas das árvores. A instabilidade no regime de chuvas e cheias parece estar interferindo nesse processo, percepção possível apenas para quem convive com a floresta. No caso de Açaí-Paraná, essa alteração é mais relevante, pois a comunidade não tem muitas roças devido ao tipo de solo, mas é abundante em peixes.

Rosivaldo Miranda/Arquivo Pessoal

Rosivaldo Miranda, do Povo Piratapuya, procura minhocas nas bromélias, mas não encontra

Rosivaldo é agricultor, pesquisador do Programa de Agente Indígena de Manejo Ambiental (Aima) e integrante da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas. Em 2021, ele gravou imagens das inundações de roças na comunidade, com perdas que deixaram as famílias em insegurança alimentar. 

Em abril deste ano, ele falou com a reportagem sobre seu temor de a situação se repetir. “Está muito instável. O rio começa a encher, depois volta a secar. Não sabemos como vai ser.” Em maio, o medo de Rosivaldo se concretizou. As roças voltaram a inundar e ele fez um vídeo mostrando a situação. 

Na região do rio Içana, a liderança indígena Juvêncio Cardoso, o Dzoodzo, do povo Baniwa, divulgou em suas redes sociais um vídeo mostrando mulheres mergulhando para salvar parte da plantação de mandioca em roças inundadas. Segundo o relato de Dzoodzo, este ano o nível do rio ultrapassou a marca de 2021, quando havia sido registrada cheia recorde: as famílias enfrentaram eventos extremos por dois anos seguidos.  

“Aldeia Canadá, rio Ayari, Terra Indígena Alto Rio Negro, 11 de maio de 2022. Estamos vivendo novamente uma onda de extrema cheia nessa região. O ano passado vivemos essa mesma situação, porém o que registramos hoje é que o nível já ultrapassou cerca de 50 centímetros  acima do que foi ano passado”, relata Dzoodzo no vídeo. 

Vídeo publicado nas redes sociais por Dzoodzo Baniwa

Trabalhando diretamente com programas de agricultura familiar junto à Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Pastor Cenaide, do povo Tuyuka, estima que a maioria da população de São Gabriel da Cachoeira tem roças. Junto com os familiares, ele criou a Associação Indígena da Etnia Tuyuka — Moradores de São Gabriel da Cachoeira (Aietum), que se estruturou para fornecer produtos da floresta para programas públicos, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Hoje, o principal produto fornecido por eles é a farinha amarela. 

Parte da produção é para consumo próprio e parte é escoada, inclusive nas viagens de voadeiras — como as pequenas embarcações com motor são chamadas — carregadas com produtos da floresta para serem trocados entre as comunidades ou vendidos nas feiras dos núcleos urbanos da região, sendo o principal deles São Gabriel da Cachoeira. Ele vem escutando dos produtores relatos sobre os impactos das mudanças no clima. 

Paulo Desana/Agência Pública

Paulo Desana/Agência Pública

Ana Amélia Hamdan/Agência Pública

Feiras são realizadas semanalmente para a venda de produtos das roças

O que antes era planejado de acordo com as constelações, diz, hoje já não é mais possível: “O impacto é grande”.



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