quinta-feira, 21 de julho de 2022

SENADO PODE AUTORIZAR A VENDA DE MILHÕES DE KM² DE ÁREAS NA BEIRA DE RIOS, LAGOS E PRAIAS.

 

Tânia Rêgo/Agência Brasil

PEC dos terrenos da marinha foi desengavetada por Arthur Lira e está em linha com plano de Bolsonaro de criar Cancúns no Brasil


21 de julho de 2022

12:00

Felipe Betim

 ESPECIAL: EMERGÊNCIA CLIMÁTICA

PEC tem apoio do setor de jogos de azar 

Especialistas veem medida como forma de grilagem marinha 

Texto atual dá espaço à criação de praias privadas 

Países têm reestatizado seus litorais de olho no aumento do nível do mar 

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Assim como seu bisavô, seu avô e seu pai, Carlos Alberto Pinto dos Santos vive da pesca artesanal de ariocó, guaiuba, cioba, dentão e outros peixes do mar. Ele mora em uma comunidade à beira da praia que forma parte da Reserva Extrativista (Resex) de Canavieiras, onde 2.100 famílias vivem e trabalham, no sul da Bahia. 


“Meu avô era jangadeiro, e lembro que na minha época [de criança] havia muitas jangadas. A vida na nossa reserva é baseada na pesca de pequena escala. Um terço das famílias do município de Canavieiras [30 mil habitantes] dependem direta ou indiretamente da pesca”, conta.


No entanto, Carlos assiste com preocupação o Congresso Nacional se debruçar sobre legislações que alteram a titularidade de áreas de União — como a que ele vive — e o direito ao acesso livre às praias. A mais recente movimentação relevante foi a aprovação da PEC 39/11 na Câmara dos Deputados. O projeto acaba com os chamados terrenos de marinha, que se estendem pelos quase 7.500 quilômetros de costa brasileira, além do contorno das ilhas e das margens de rios e lagoas que sofrem influência das marés. 


Arquivo pessoal/Carlos Alberto


Arquivo pessoal/Carlos Alberto


A pesca artesanal faz parte da família de Carlos Alberto (à esquerda) há gerações

Algumas dessas áreas já são ocupadas por empreendimentos e imóveis privados que têm uma espécie de concessão pública e pagam taxas de foro, ocupação e um laudêmio — tarifa que é paga ao proprietário do terreno em caso de venda do imóvel — para o governo. Outras abrangem comunidades tradicionais, como a de Carlos, ou são áreas de interesse público, como zonas portuárias e militares. E também há enormes áreas preservadas. 


A PEC, que agora tramita no Senado e está nas mãos do relator Flávio Bolsonaro (PL), prevê a transferência da titularidade desses terrenos para estados e municípios ou para proprietários privados em até dois anos após sua promulgação. Conforme apurou a Agência Pública, entre os principais interessados em fazer com que esses territórios se tornem propriedade privada estão o setor imobiliário, o de turismo e até mesmo o do jogo de azar. Desejam fazer seus empreendimentos com segurança jurídica e garantia da titularidade do terreno. 


A PEC 39/11 foi apresentada ainda em 2011, mas somente em 2015 foi para a Comissão de Justiça e Cidadania, onde passou a contar com a relatoria do deputado gaúcho Alceu Moreira, do MDB. Em seguida passou a ser analisada por uma Comissão Especial, que deu parecer favorável ao projeto em 2018. Desde então permaneceu na gaveta, apesar de alguns requerimentos nos anos seguintes para que a presidência da Câmara colocasse o projeto em pauta no plenário. 


No entanto, em 22 de fevereiro deste ano, a PEC foi repentinamente levada ao plenário pelo atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), no mesmo momento em que se discutia a liberação dos jogos de azar no Brasil. Não foi mera coincidência. Na ocasião foi amplamente noticiado que os defensores da liberação dos jogos viam, com a privatização desses terrenos de marinha, uma possibilidade de as atividades do setor em hotéis, resorts e cassinos no litoral. 


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Essa motivação foi confirmada à Pública por pessoas que acompanharam de perto as articulações de bastidores. “Não tem lógica permanecer com a cobrança de laudêmio, é fora da realidade, uma subjetividade absurda”, afirmou Lira na ocasião.


Para Carlos, trata-se de “mais uma ação institucional, do Legislativo, para mais uma vez tentar dilapidar o que é público e expropriar o território dos povos e comunidades tradicionais nesse país”. Ele forma parte da resistência contra a medida junto com outras comunidades tradicionais, ambientalistas e especialistas de outras áreas, que enxergam um risco para a biodiversidade e para a criação de praias privadas, além de brechas para a grilagem de terras públicas. 


“Sem os peixes não existe pescador. Sem os territórios não existem os quilombolas. Sem a floresta amazônica não existem os indígenas nem as comunidades extrativistas. Sem o Pantanal não existe o pantaneiro, sem a caatinga não existe o catingueiro, sem o cerrado não tem o veredeiro. Então, quem defende esses ambientes é quem está nele e vê como uma ação fundamental de defesa da vida. Quando destroem a natureza, os territórios das comunidades tradicionais, a gente sente como se aquilo tivesse sido feito no próprio corpo da gente”, diz Carlos, que também é coordenador da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas.


Arquivo pessoal/Carlos Alberto

Para pescador artesanal e coordenador do CONFREM, PEC seria “mais uma ação institucional, do Legislativo, para expropriar o território dos povos e comunidades tradicionais”

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