sexta-feira, 29 de julho de 2022

EXTREMOS E FREQUENTES

 

A percepção dos indígenas de que a previsibilidade dos ciclos ambientais está alterada coincide com o registro mais frequente de eventos climáticos extremos no Amazonas. 

A medição dos níveis do rio Negro em Manaus começou em 1902, e em 1953 foi registrada a maior cheia do período. Esse recorde foi batido apenas em 2009. A expectativa era que grandes enchentes como essa ocorressem no prazo aproximado de 50 anos. Entretanto, o recorde foi batido em 2012 e, novamente, em 2021, conforme dados do Serviço Geológico do Brasil (CPRM). Em 2022, o rio chegou a 29,76 metros, sendo a quarta maior cheia desde o início da medição. 

Paulo Desana/Agência Pública

Regime de chuvas intenso inunda roças e prejudica sustento de comunidades

Segundo a pesquisadora Luna Gripp, do CPRM, eventos extremos estão aumentando em frequência e em magnitude, e a situação no Amazonas é um exemplo disso. “No Amazonas, as populações ribeirinhas já convivem com as cheias, mas não com inundações tão frequentes. Ainda nem se recuperaram do último evento e estão sendo atingidos novamente. Isso afeta a resiliência da população, principalmente das pessoas mais vulneráveis”, diz Luna.


Ela defende soluções regionais, com consulta aos povos indígenas e populações ribeirinhas na definição de políticas públicas para reduzir impactos e construir propostas de adaptação. “Os indígenas sabem o que fazer quando o rio sobe muito. É necessário apoiar as decisões que eles tomarem.”  

Assim como ela, a cientista social Júlia Menin, que tem mapeado uma série de práticas de adaptação e enfrentamento das mudanças climáticas em Manaus e municípios vizinhos, também aponta a sabedoria das populações tradicionais como um caminho. “As soluções passam pelo protagonismo dessas populações. Essas pessoas podem não saber explicar exatamente sobre mudanças climáticas, mas sabem como o clima mudou e sabem dizer exatamente o ano que houve cheia, que houve seca, qual casa alagou, quem não teve acesso a saúde. São os que mais sentem e os que mais percebem e sabem como pensar estratégias, que devem ser adotadas pelo governo”, diz. 

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Entre outros alertas, o sexto relatório do IPCC traz a informação de  que as emissões nocivas de carbono de 2010-2019 foram as mais altas na história da humanidade, com aumento de emissões registrado “em todos os principais setores do mundo”. O mundo caminha para o aquecimento global de mais que o dobro do limite de 1,5 grau Celsius acordado em Paris em 2015, com impactos na produção agrícola. 

Ainda assim, os cientistas ressaltam que é possível reduzir pela metade as emissões até 2030 e evitar os piores cenários, sendo os sistemas agrícolas apontados como uma alternativa de produção sustentável. 

Nesse caso, o relatório, em conjunto com as observações dos indígenas, aponta para uma encruzilhada: os sistemas agrícolas tradicionais aparecem como alternativa, mas também já sentem os impactos dos extremos climáticos. “Não precisa ser estudioso para saber que o clima está mudando. Isso afeta diretamente na alimentação das famílias, na geração de renda, porque os agricultores indígenas não conseguem mais planejar direito”, resume o indígena Pastor Tuyuka.  

Os tempos de arrumação, plantio e colheita da roça — definidos pelos indígenas da região segundo as constelações — já não são mais previsíveis. “Antigamente era bem detalhado, a orientação do ciclo climático era através das estrelas. Hoje em dia nem toda vez está batendo certo. Não está dando muito para planejar, porque antigamente tinha cada época — da plantação, colheita e tudo mais. Só que agora, mesmo chegando na época, nem todas as frutas carregaram. São coisas que podemos perceber”, reflete. 

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