Qual sua função na Funai hoje? Assim como o Bruno, você também foi perseguido dentro do órgão?
Sim. Foi uma retaliação direta ao meu trabalho na Terra Indígena Ituna-Itatá, no Pará. Eu era ponto focal nessa região do médio Xingu há quatro anos, mais ou menos. A gente fez uma expedição lá, achamos vestígios dos indígenas isolados na região, eu elaborei um relatório contextualizando a presença dos índios isolados na região, denunciando o esquema criminoso de grilagem, desmatamento, de esbulho territorial na terra indígena.
Em retaliação a esse meu trabalho, um dia eu chego na minha mesa na CGIIRC para trabalhar e o Geovânio Pantoja, meu coordenador, me avisa que eu não trabalho mais lá, que eu fui removido de ofício, sem a minha anuência, sem ter acesso anterior ao processo. Eu não fiquei sabendo de nada. Quando ele me chamou, o processo da minha remoção já estava pronto, assinado pelo coordenador da CGIIRC, e eu fui transferido para o setor de RH, de folha de ponto. Quando eu fui pedir explicações sobre o motivo dessa transferência, o então coordenador-geral da CGIIRC disse explicitamente que foi em retaliação ao meu trabalho em Ituna-Itatá que o presidente da Funai “pediu minha cabeça”. Então é isso, eu tenho dez anos de indigenismo, de experiência de campo nas aldeias, eu sou antropólogo de formação, eu nunca na vida trabalhei em nada referente à área administrativa e cá estou, validando folha de ponto.
Tudo isso num contexto em que a Funai carece de servidores, especialmente servidores qualificados para as ações finalísticas em campo. Inclusive, isso é um argumento oficial da gestão da Funai, de que falta gente para trabalhar: quando há pressão para realizar certos trabalhos, os gestores se defendem dizendo que “a Funai tem escassez de servidores” – o que é mesmo verdade. Mas, se há carência de servidores em campo, como é que você coloca um dos poucos técnicos com experiência de campo “na geladeira”, no setor burocrático?
Isac Nóbrega/PR
“Desde o primeiro dia do desaparecimento os servidores da Funai pediram segurança e apoio, e Xavier não viabilizou nenhuma das duas coisas”, afirma Martins
Conforme você relatou, em reunião de negociação com os servidores da Funai em estado de greve no dia 13 de junho, o coordenador-geral da CGIIRC, Geovânio Pantoja Katukina, disse que abriu apenas um processo no SEI relacionado ao desaparecimento do Bruno e do Dom. O que ele poderia ter feito, no cargo que ocupa, em relação às buscas?
A CGIIRC é composta hoje de 17 servidores sediados em Brasília, e é a coordenação que centraliza todas as demandas e também coordena as 11 Frentes de Proteção Etnoambiental na Amazônia Legal. As frentes têm um canal direto de comunicação com o coordenador-geral, elas são coordenadas por ele. Num momento grave como esse, os servidores da CGIIRC em Brasília ajudam tanto no processo de orientação técnica das Frentes de Proteção como também apoiando ações finalísticas quando é necessário. Como a coordenação-geral atende toda a Amazônia Legal, de fato não é possível deslocar todos os servidores de lá para o Vale do Javari, mas é um absurdo que nenhum servidor da CGIIRC de Brasília tenha sido deslocado para acompanhar o caso diretamente.
Mesmo do escritório em Brasília, os servidores poderiam ter elaborado peças técnicas sobre o desaparecimento, feito um consolidado das denúncias dos crimes ambientais, inclusive aquelas encaminhadas pelo próprio Bruno para entregar à polícia. Poderiam também ter ajudado na elaboração de mapas e análises de sensoriamento remoto, poderiam ter ajudado a equipe da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari na elaboração de relatórios e documentos, já que a equipe da frente estava toda concentrada nos trabalhos das buscas em campo.
Além disso, você tem toda uma demanda burocrática de articulação interinstitucional. Esse é o principal, a meu ver, porque você precisa oficiar a Polícia Federal, Exército, Marinha, Ibama, Polícia Militar Ambiental, as outras instâncias da Funai. E é um absurdo que, passada mais de uma semana das buscas, a CGIIRC só tenha instruído um processo e esse processo é de locação de embarcação. É um desrespeito completo com a história do Bruno. Bruno foi coordenador-geral da CGIIRC, sem dúvida, um dos maiores de todos os tempos. A cadeira em que Geovânio Pantoja hoje está sentado é a mesma cadeira em que Bruno sentou. E Geovânio não se dignificou nem mesmo a instruir um processo para ajudar a salvá-lo.
Qual a importância do processo no SEI? Por que deveriam ter sido instruídos outros processos, além do de locação de embarcação?
O SEI é o Sistema Eletrônico de Informações – o sistema oficial do poder Executivo que centraliza todos os processos. Então, para que um documento exista oficialmente perante o Estado brasileiro, ele precisa ser formalmente materializado em um processo no SEI.
O fato de não terem instruído nenhum processo específico significa que o atual coordenador-geral da CGIIRC, Geovânio Pantoja, não mobilizou nenhum dos seus 17 servidores para atuar especificamente sobre o caso, o que é grave.
Além disso, existe uma institucionalidade necessária nas comunicações interinstitucionais. Você não pode, por exemplo, ficar conversando só por WhatsApp com o comandante do Exército – se é que até mesmo isso foi feito pela CGIIRC. Se a CGIIRC não instruiu processos específicos no SEI sobre as buscas ao Bruno, como a Funai a nível central conversou com o Exército, conversou com a Marinha, conversou com a Polícia Federal? Sem os processos não é possível saber. Ao que tudo indica, se esse diálogo aconteceu, até onde se sabe ele se deu a nível informal, o que é um absurdo.
Algum servidor da CGIIRC foi enviado de Brasília para Atalaia do Norte (AM) para acompanhar o caso? Em casos de urgência como esse, isso costuma acontecer?
Os servidores da CGIIRC que ficam em Brasília também atuam diretamente em campo quando é necessário. Eu, por exemplo, já fui várias vezes em campo, já fiz expedições de localização de indígenas isolados, já fiz operações de fiscalização ambiental. A CGIIRC apoia as Frentes de Proteção, pois, às vezes, falta pessoal para as atividades de campo, ou porque a atividade necessita de um trabalho mais técnico. Às vezes, é preciso fazer um mapeamento, alguma coisa mais detalhada, e a gente vai. Sabemos que tiveram pessoas da CGIIRC que se habilitaram, se prontificaram em caráter emergencial para ajudar nas buscas, mas os gestores da Funai não mandaram. Soube que teve gente da própria equipe da CGIIRC em Brasília que falou ‘quero ir lá ajudar meus colegas no Vale do Javari, quero ir lá ajudar o Bruno’, e não emitiram a passagem para esse cara ir. A CGIIRC foi totalmente omissa no caso.
Hoje (7 de julho) faz um mês desde que Bruno foi assassinado. Nada foi feito, os servidores e indígenas do Vale do Javari seguem ameaçados e sem nenhum apoio concreto. Há uma greve nacional na Funai. Podemos dizer que essa é a maior crise da história recente da Funai. No meio de tudo isso, acabamos de tomar conhecimento que o senhor Geovânio Pantoja Katukina entrou de férias! Férias num momento desses! É um desrespeito tão grande que me faltam palavras pra descrever. Bruno mal foi enterrado, todos indigenistas e indígenas no Vale do Javari temendo por suas vidas, a maior crise da história recente da Funai, servidores, indígenas, parlamentares, sociedade civil, todos empenhados inteiramente em tentar resolver a crise, e o coordenador-geral da CGIIRC, uma das peças centrais de toda a questão, acha que é um bom momento para descansar. É um completo desprezo com nossas vidas! É um escárnio com a morte do Bruno!
José Medeiros/Agência Pública
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