Na contramão
O texto do relator Alceu Moreira foi aprovado em primeiro turno por 377 votos a 93. No segundo, o placar foi de 389 votos a favor e 91 contrários. A PEC tramita agora no Senado com o número 3/2022 e se encontra na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, nas mãos do relator Flávio Bolsonaro.
Em entrevista à Pública, Moreira refutou ter recebido pressão de setores dos jogos de azar. No entanto, admitiu que o projeto busca alavancar investimentos privados na costa brasileira. “As áreas mais valorizadas estão margeando mares, rios e oceanos, mas como as pessoas não têm documento definitivo, estamos num processo de subocupação, atrofia do processo de urbanização. Áreas lindas e supervalorizadas em alguns casos são verdadeiros cortiços”, afirma ele. “Com essa PEC, teremos um volume gigantesco de investimento, gerando emprego e renda para todos sem gerar mal”, defende.
Ele admite que reservas de pescadores, como a de Carlos, de fato poderão ter uma valorização imobiliária. Mas ele enxerga como um benefício que pescadores e outros habitantes de comunidades tradicionais passem a ter a titularidade dessas áreas. “Do contrário teríamos que dizer que temos um cidadão brasileiro que merece ser tutelado e não tem direito de vender o que é dele. Essa pessoa, que ficou ali 60 anos preservando, no dia em que tiver a escritura pública do imóvel, poderá ser considerado um cidadão brasileiro como qualquer outro”, argumenta.
Arquivo pessoal/Carlos Alberto
Especulação imobiliária pode causar impactos ambientais, além dos sociais
Moreira admite também a probabilidade de que interesses privados avancem sobre comunidades tradicionais, como teme Carlos. “Certamente os investidores vão lá comprar a área dos pescadores para transformá-la. Isso é absolutamente verdade. Se a pessoa vai pegar uma área subvalorizada, porque está sendo ocupada por pescadores, primeiro, o pescador vai sair de lá com muito mais recursos e vai poder morar com sua família em um lugar muito mais qualificado. E o investidor terá que fazer seu investimento de acordo com o plano de urbanização da cidade”, explica.
Ele refuta o argumento de que a venda ou concessão dos terrenos de marinha são um risco ambiental. “É completamente infundado. Todas as áreas, independentemente de quem seja o proprietário, seja a União ou particular, são regidas pela mesma legislação ambiental. As regras que determinam a ocupação do solo estão em outra legislação, não estão nessa”, afirma. “Todo mundo que defende área preservada quer ter, na verdade, um direito sobre a vida do outro”, opina.
Para ele, um dos principais objetivos do projeto é acabar com a bitributação que incide hoje sobre proprietários de imóveis em terrenos de marinha, os quais, além de pagar as taxas da União, precisam arcar também com o IPTU municipal.
A votação dividiu mais uma vez a oposição de esquerda e membros do Centrão e do governo, como em outras matérias relacionadas à proteção do meio ambiente e dos povos tradicionais. “Esse texto não se trata da extinção deste tributo, mas se trata da possibilidade de privatização de terras de marinha, o que, na prática, são terras da União e, consequentemente, um ataque ambiental gigantesco, porque são áreas estratégicas do ponto de vista da preservação da vegetação costeira”, afirmou a deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP).
Por sua vez, o deputado Nilto Tatto (PT-SP) argumentou que o Brasil vai na contramão de países que estão reestatizando suas zonas costeiras para conter desastres ambientais. “O mar já vem crescendo e, portanto, em vários lugares já há impacto do crescimento do mar. Se nós abrirmos esses terrenos para a especulação imobiliária, que é quem está por trás pressionando a mudança, com a transferência desses terrenos para estados e municípios e para o setor privado, vão se intensificar as edificações e construções em áreas sensíveis”, argumentou.
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Já a deputada Joenia Wapichana qualificou a PEC como “um desmonte da legislação ambiental, novamente colocando a situação do meio ambiente em risco”.
Apesar de a PEC 39/11 não ser uma iniciativa do governo, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendem a privatização de áreas públicas para estimular o investimento do setor de turismo. Bolsonaro publicamente já falou de transformar Angra dos Reis e outras regiões de costa em novas Cancúns, cidade mexicana com vários resorts.
No entanto, técnicos do governo e da SPU enxergaram riscos na PEC aprovada pela Câmara. Além da possibilidade de grilagem de áreas públicas desocupadas, como foi mencionado por Prates, o Executivo acredita que o projeto vai gerar ainda mais insegurança jurídica para, por exemplo, empresas que operam terminais portuários privados. Com a aprovação da PEC, se veriam obrigadas a desembolsar cifras bilionárias pelas áreas que ocupam. “O problema é a velocidade de demarcação e a avaliação do valor do imóvel”, explicou à Folha de S.Paulo o ex-secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Diogo Mac Cord, em abril deste ano.
A secretaria, vinculada ao Ministério da Economia, começou então a elaborar uma proposta para contornar a PEC aprovada, automatizando o processo de privatização e concedendo desconto de 50% sobre o valor venal dos imóveis em terrenos de marinha. A Pública entrou em contato e enviou perguntas para o atual secretário, Pedro Maciel Capeluppi. Não houve respostas até o fechamento desta reportagem. Histórias como essa precisam ser conhecidas e debatidas pela sociedade. A gente investiga para que elas não fiquem escondidas por trás de interesses escusos. Se você acredita que o jornalismo de qualidade é necessário para um mundo mais justo, nos ajude nessa missão. Seja nosso Aliado
*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.
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